Quantcast
Viewing all 217 articles
Browse latest View live

Você, que lê o Cientista Que Virou Mãe e NÃO é mãe: QUEM É VOCÊ?

Quem acompanha a fanpage do blog Cientista Que Virou Mãe já deve ter lido as notícias sobre a transformação que estamos idealizando e trabalhando para operacionalizar aqui. Este blog, que começou sem qualquer pretensão de se tornar uma referência em assuntos sobre maternidade, que começou apenas com a minha intenção de compartilhar as coisas que eu ia/vou aprendendo ou refletindo em meu processo constante de me tornar mãe, acabou crescendo muito além do esperado, muito além do imaginado, além do que eu poderia supor.
Quando, há 4 anos, percebi que a ele estavam chegando cerca de 400 a 500 pessoas por dia, percebi a grande responsabilidade que tinha em mãos: produzir conteúdo que estava sendo acessado por pessoas em busca de apoio em suas dúvidas como cuidadores, especialmente MÃES na grande maioria dos casos. A partir de então, decidi assumi-lo como um blog focado em questões relacionadas à mulher que se torna mãe, ao respeito ao parto e nascimento e ao respeito integral à infância. E assim, ele se tornou o blog Cientista Que Virou Mãe. Hoje, tenho a imensa alegria (e espanto, como não dizer?) de ver que todos os dias chegam, em média, entre 6 e  8 mil pessoas até ele, em busca de informação e reflexão sobre cuidado com a infância, maternidade, empoderamento materno, entre outras questões, isso sem falar nas mais de 67 mil pessoas que compõem sua fanpage.

Até este momento, o blog ocupava um espaço extremamente importante em minha vida e na da minha filha, pois que meu caminhar como mãe, minhas descobertas e reflexões acontecem especialmente na interação que ele me permite viver com tantas pessoas. Papel importante, mas secundário, uma vez que a elaboração da minha tese de doutorado e os próprios cuidados com minha filha me ocupam quase todo o tempo, restando um tempo bastante reduzido para me dedicar à produção de textos que possam ser utilizados para benefício do coletivo. Ainda assim, quando os produzo, o imenso aporte que o blog recebe me serve como motivação e incentivo. E, especialmente, me mostra algo extremamente importante: as pessoas, especialmente as mulheres mães, precisam de informação de qualidade, que prime pela busca ativa de fontes, que esteja desvinculada do grande mercado e, portanto, que não sofra conflitos comerciais de interesse. A grande mídia que aí está não produz informação de qualidade. Produz informação que vende, que navega no senso comum, que de fato não está comprometida com a mudança social e, especialmente, não contempla mulheres mães, a infância, as transformações necessárias de paradigma como deveria contemplar. E aí acabamos ou sem informação que nos estimule a refletir sobre nossa realidade e nossas práticas, ou dependentes de boa informação produzida por gente muito boa, mas que também não tem condições de se manter escrevendo e produzindo sem que isso gere renda...

Estou em processo de finalização do doutorado em saúde coletiva e isso me estimulou a pensar em meus caminhos futuros. Em função de tudo o que vivi na interação com mulheres mães e com a infância nos últimos 4 anos, mediada tanto pelo blog quanto por minha própria tese, percebi como a produção de informação é de fundamental relevância para decisões embasadas e para a promoção da autonomia. Na verdade, isso vai muito além de uma percepção individual: está contemplado e previsto como questão estratégica em muitos documentos de organizações internacionais, que veem no empoderamento materno uma ferramenta das mais eficazes no combate à iniquidade e à violência. Assim, inserir-me novamente na academia, novamente como docente, diminuiria em muito minha atividade junto a mães, famílias e crianças. E não quero que isso aconteça. Já há muita ciência sendo produzida no interior das universidades e que não alcança quem a financia: nós. É preciso que aquelas e aqueles que a isso estão dispostos façam o movimento inverso: saiam em direção ao coletivo.
E foi isso o que decidi fazer.

Ter uma ferramenta com a dimensão do alcance do Cientista Que Virou Mãe, com grande potencial para ter ainda mais, e tratar de temas que geralmente não são tratados na mídia formal, me faz crer que é por aí que devo ir. Na verdade, não ME faz crer. NOS faz crer.


O blog foi considerado, por alguns grupos que trabalham com fortalecimento de negócios sociais, voltados para a promoção do bem estar coletivo e do empoderamento social, como uma ferramenta estratégica. E sem que eu pudesse sequer planejar (de novo...), eu, ele e nossa equipe (tenho a imensa alegria de poder contar, hoje, com uma equipe incrível), fomos selecionados para receber mentoria especializada e para participar de programas visando uma coisa só: seu crescimento, a amplificação de seu raio de ação e sua sustentabilidade. Mais que isso: o envolvimento de ainda mais pessoas, em um trabalho pautado pelos valores que defendo aqui e pela reflexão contínua sobre maternidade, empoderamento feminino, infância respeitada e tantos outros assuntos. É por isso que, hoje, estamos recebendo mentoria - gratuita e absolutamente dedicada e eficiente - de instituições como o SEBRAE, em seu Programa de Apoio a Negócios Sociais, o Impact Hub Floripa, o Semente Negócios e o Social Good Brasil. Todo esse apoio está exigindo de nós muito envolvimento, dedicação, aprendizado e criatividade, a fim não só de ampliar as atividades do Cientista Que Virou Mãe quanto de envolver todas e todos que participam dele, de forma que todas as pontas da relação sejam beneficiadas pelo processo, que resultará em um benefício coletivo maior. Estamos focadas em: 1) produzir informação independente voltada para a maternidade e para o empoderamento materno; 2) fortalecimento e respeito à infância; 3) sair do paradigma da escassez em direção ao paradigma da abundância. Nós acreditamos que há lugar para todos e há recursos para todos, basta que nos conectemos de maneira diferente do que fizemos até agora.


Em função disso, há pouco mais de 1 mês, nós entrevistamos mais de 100 mães leitoras para saber um pouco mais sobre quem são as pessoas que chegam ao Cientista Que Virou Mãe. Perguntamos a elas sobre suas alegrias, suas dores, suas dificuldades, sua interação com a mídia formal, entre outras questões. Esse material está nos ajudando a pautar a transformação que o blog está sofrendo tendo como centro o elemento humano, especialmente as mulheres que viram mães. No entanto, uma grata surpresa nos foi apresentada: embora a grande maioria das pessoas que o acessam sejam mulheres mães, há muita gente que chega até aqui e não é mãe. Gente em busca de informação e que acaba se identificando com as discussões propostas, seja no próprio blog, seja em sua fanpage no Facebook. Isso nos levou também a querer incluir essas pessoas na construção da nova plataforma, bem como seus anseios e expectativas. Teremos sempre as mães e as crianças no centro do debate. Sempre. Porque é para esses grupos que produzimos informação. Mas não podemos deixar de fora todas as demais pessoas que se preocupam com o que divulgamos.

Assim, hoje, pedimos a participação e a interação de vocês, que não são mães e frequentam o Cientista Que Virou Mãe (blog e fanpage). Queremos conhecê-las e conhecê-los melhor. Queremos saber quem são vocês, o que fazem, como chegaram até aqui, o que buscam, o que pensam sobre a mídia tradicional, entre outras informações que nos ajudarão a construir uma plataforma representativa. Abaixo, há o questionário de entrevista. Você não gastará mais que 10 minutos para respondê-lo. Pode responder aqui mesmo no corpo do texto. Caso não apareça para você, basta clicar aqui e será redirecionado ao formulário.

Toda essa transformação está sendo cuidadosamente planejada e desenhada. E nesta sexta-feira, 03 de julho, já mostraremos um primeiro resultado de todo esse trabalho, que estamos fazendo com tanta dedicação, empenho e amor.

Novamente, agradeço por todo carinho, apoio, incentivo e motivação que recebo há 4 anos. Nós não crescemos sozinhas ou sozinhos. Crescemos é na interação.

Grande abraço!




ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA - Precisamos (muito e sempre) falar sobre isso


No texto anterior, falei de maneira geral sobre as transformações pelas quais o blog Cientista Que Virou Mãe está passando, idealizadas por nós, sua equipe, e impulsionada e potencializada por pessoas que o veem como uma ferramenta estratégica de empoderamento materno e valorização da infância (Programa Negócios Sociais do SEBRAE, Impact Hub Floripa, Semente Negócios e Social Good Brasil). Um grupo de cerca de 100 mães leitoras está participando da fase de testes da ideia que irá nortear o novo funcionamento do blog, que dará origem a uma Plataforma múltipla e versátil pautada pelos mesmos princípios que o nortearam até agora: produção de informação de qualidade, focada nas mães e nas crianças, e sem conflito de interesse causado por patrocinadores. Nós pretendemos, com essa transformação, modificar também a forma de produzir conteúdo para mães, pais, cuidadores, educadores, fazendo com que se torne financeiramente sustentável sem que, para isso, nos vendamos para patrocinadores que veem nas mães não um grupo estratégico para a mudança social, mas apenas uma forma mercadológica de atingir as crianças.

O texto que segue hoje é o primeiro fruto desta transformação, que se encontra ainda em fase de testes. E, para nossa imensa satisfação, foi considerado um grande sucesso, tanto pelas mães que estão participando da prototipagem da nova Plataforma - que já tiveram acesso a esse texto - quanto por nossos mentores de negócios sociais. 

Abaixo, de livre acesso para todas e todos - como sempre será o Cientista Que Virou Mãe- você encontrará um texto sobre uma temática que as leitoras e leitores deste blog vêm pedindo há anos, tanto por sua relevância e urgência quanto por sua pertinência. Mas que eu não havia escrito, até então, porque demandaria grande dose de dedicação e tempo de pesquisa para produzir algo que pudesse realmente servir de apoio e orientação para mães, pais e cuidadores. Procuro sempre me pautar pelo princípio contido na expressão hipocrática Primum Non Nocere, que significa "primeiro, não fazer o mal", ou em outras palavras, não produzir algo que faça mais mal do que bem. E algumas temáticas, quando abordadas de maneira displicente ou superficial, podem produzir exatamente isso. A nova forma de produção de textos da nova Plataforma à qual o blog Cientista Que Virou Mãe dará origem permitirá isso: a produção contínua de textos relevantes focados nos cuidadores - mães sempre no centro - e nas crianças



ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA
Precisamos (muito e sempre) falar sobre isso



O material a seguir foi produzido mediante apoio e contribuição espontânea e coletiva das 36 leitoras citadas ao fim. Trata-se de um texto financiado coletivamente por mães e que estará gratuitamente disponível a todos no site CIENTISTA QUE VIROU MÃE.
Acreditamos que podemos produzir informação de qualidade, financiada coletivamente e de livre acesso a todos. Acreditamos que o acesso à boa informação é questão estratégica para o empoderamento de mulheres mães e para o respeito à infância.

(Os conteúdos produzidos por Ligia Moreiras Sena e disponibilizados no site CIENTISTA QUE VIROU MÃE são protegidos por copyright e não podem ser reproduzidos, total ou parcialmente, sem autorização expressa da autora, mesmo citando a fonte)


Image may be NSFW.
Clik here to view.
Abuso sexual na infância: eis uma questão delicada. Delicada na mesma intensidade de sua profundidade, complexidade e relevância. E que precisa ser discutida sempre, de maneira séria e premente. Tornar-se mãe, pai, cuidadora, cuidador, interessado em uma infância respeitada, traz de maneira imediata a preocupação sobre como podemos proteger as crianças contra possíveis abusadores, como identificar que elas estão sendo desrespeitadas no direito à sua integridade física, emocional e moral, como conseguir identificar sinais, entre tantas outras questões que vêm à mente quando o assunto é abuso sexual. Especialmente nos dias de hoje, em que sobra informação e falta conhecimento. Em que sobra barulho e falta reflexão.
Como mães, pais e cuidadores não especialistas no tema, acreditamos que sabemos muito sobre isso. Que sabemos identificar, que sabemos observar as crianças, que sabemos como protegê-las de “estranhos mal intencionados”, de gente perversa. Não é verdade? E devorar dezenas de links, páginas, imagens e reportagens sobre o tema só aumenta a nossa falsa sensação de controle. Quando, na verdade, não sabemos tanto assim, não conhecemos tanto assim, não controlamos tanto assim. Uma das maiores provas disso é justamente o conceito errado que acabo de ressaltar: gente mal intencionada ou perversa que assume o papel de abusador sexual de crianças não é um estranho. Não mora no bairro ao lado ou será encontrado de supetão na rua. Não é isso o que acontece em mais de 80% dos casos de abuso sexual contra crianças. O abusador, na grande maioria dos casos, mora dentro de casa, ou a frequenta como pessoa de confiança. Ele está dentro da casa das crianças. E somente este fato já ajuda a explicar em grande parte o motivo de ser um assunto tabu, ou que se mostra cercado por segredo, ocultação, medo, entre outras práticas que ajudam a manter o ciclo da violência sexual contra a criança. Mas não podemos permitir que ele continue a ser tabu. Isso contribui para que, no Brasil, a cada dia, 165 crianças ou adolescentes sejam abusados sexualmente, ou 7 a cada hora. Precisamos falar sobre isso, precisamos discutir o assunto, precisamos tirar as vendas dos olhos e estar incondicionalmente ao lado das crianças.
Para tornar este texto mais prático e útil, ele se encontra dividido em tópicos, cujos subtítulos julguei importante existir em função da relevância de sua abordagem nos diferentes materiais que consultei para elaborá-lo. Procurei atentar para questões que, em minha interação com mães, pais e cuidadores, bem como no estudo que venho desenvolvendo há 4 anos sobre violência em saúde, parecem ser os mais passíveis de dúvidas e angústias. Esta é minha primeira incursão formal ao tema, e espero continuar a abordá-lo de maneira mais aprofundada e estabelecendo novos links e vínculos com diferentes profissionais. Assim, agora, conversaremos sobre:

1) O que é o abuso sexual na infância? Ele atinge mais meninas ou mais meninos?
2) E quem são os abusadores? Como a sociedade é conivente mesmo sem querer ser?
3) Quais são os principais tipos de abuso sexual contra as crianças?
4) Como identificar possíveis sinais de que a criança está sendo abusada ou foi abusada sexualmente?
5) O que fazer após a suspeita ou descoberta do abuso sexual contra a criança? A quem recorrer, para onde ir?
6) Todo caso é notificado? Todo caso é denunciado?
7) O que uma família e a sociedade podem fazer para amparar uma criança que foi abusada de forma a contribuir para sua resiliência?
8) Breves considerações sobre prevenção


1) O QUE É O ABUSO SEXUALNA INFÂNCIA? ELE ATINGE MAIS MENINAS OU MAIS MENINOS?

 O abuso ou violência sexual não implica apenas no contato sexualizante com os genitais das crianças ou destas com os genitais dos adultos e, de fato, grande parte dos abusos ocorrem sem que isso aconteça. De acordo com a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência, uma situação de abuso ou violência sexual na infância é aquela que envolve a criança como objeto de satisfação erótica e sexual de um adulto ou adolescente mais velho e envolve não apenas contato com os genitais, mas também toques em regiões inapropriadas, insinuações verbais, exposição à pornografia, prática de voyeurismo, exposição a locais e situações com apelo erótico ou sexual, exibicionismo, entre outras condições em que a criança esteja sujeita à presença de elemento sexualizante. Quando essas práticas acontecem tendo como alvo crianças menores de 14 anos, configura-se a prática do abuso sexual na infância.

É, sem qualquer dúvida, uma das formas mais graves e complexas de violência contra as crianças, atingindo-as quase de maneira universal, presente em todos os níveis sociais, em todas as culturas, religiões, etnias e gêneros. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o abuso sexual contra crianças é um dos maiores problemas de saúde coletiva no mundo. No entanto, em função da grande disparidade entre as diferentes regiões, e também da dificuldade de reunir todas as informações científicas disponíveis, a frequência de ocorrência entre as crianças varia de maneira acentuada. Hoje, aceita-se como representativo que entre 7 e 36% das meninas e entre 3 e 39% dos meninos passem por algum tipo de abuso sexual. No entanto, acredita-se que esses sejam números muito aquém da realidade e que, de fato, um número muito maior de crianças sejam vítimas sexuais, uma vez que grande parte delas não conta que está passando por isso. Ou, quando contam, os casos não são notificados ou levados a outras instâncias, permanecendo no interior das famílias, que ou os negam, ou os escondem, ou os cercam de uma aura de medo, segredo e tabu que somente ajuda a perpetuar a violência contra a criança.

Aqui já surge um primeiro dado importante: meninas são o grupo preferencial quando o assunto é abuso sexual na infância e sobre isso há uma consideração importante que precisa ser feita. Alguns estudiosos do tema acreditam que essa relativamente maior frequência de vitimização se deve a um fator extremamente relevante de ser discutido: a aceitação cultural. De maneira geral, em diferentes culturas, a coletividade tende a ser mais conivente, ainda que esse não seja seu objetivo consciente, com o assédio sexual contra meninas e mulheres. E isso é bastante fácil de ser observado no discurso coletivo, como por exemplo nas frases e opiniões que atribuem o estupro de mulheres a comportamentos, tipos de roupas e outras condições que não ao próprio estuprador. Assim, é muito importante que a gente lembre que, ao reforçar nosso comportamento social minimizador com relação ao assédio sexual contra mulheres – do fiu-fiu na rua aos casos mais ostensivos de violência sexual consumada – estamos também contribuindo para que meninas, crianças, sejam vitimizadas. Pois o que é visto como socialmente natural não é problematizado como real violência.

A maior prevalência entre as meninas não diminui a grande ocorrência entre os meninos, e neste ponto também há uma questão importante a ser discutida: enquanto a naturalização cultural do assédio sexual contra mulheres contribui para que meninas sejam vitimizadas com maior frequência, a existência de um tabu a respeito das relações entre homens também torna os meninos vítimas. Porque aquilo que é visto preconceituosamente como errado – a relação entre dois homens – tende a ser mantido em segredo pela criança, senão por medo, por vergonha. E isso dá ainda mais poder aos abusadores para que mantenham seus abusos contra meninos na dimensão do secreto. Pois, para um menino que é criado em ambiente onde a relação sexual entre homens é vista como errada, pecaminosa, abominável, ter sido vítima de um abusador faz com que ele se sinta ainda mais envergonhado do que viveu, por vezes culpado, e mantenha o segredo sobre a violência sofrida, o que o vitimiza ainda mais.

Muita gente acredita, reforçada pelo que a mídia sensacionalista retrata, que os abusos sexuais contra crianças tendem a ocorrer mais no interior de famílias com menor poder aquisitivo. No entanto, muitos estudos mostram que isso não procede como regra geral. E não porque não aconteça com maior frequência entre as famílias mais pobres. Mas porque não sabemos, de fato, seu grau de ocorrência entre as famílias mais ricas, que possuem maiores condições de silenciamento, acobertamento e outras medidas que evitam a notificação, o escândalo e impedem que o caso venha a público. Isso exige que as políticas de acolhimento utilizem diferentes abordagens para acolher/identificar casos de abuso sexual contra crianças na dependência de onde são originados, e dediquem um olhar diferenciado às estratégias dos abusadores.

2) E QUEM SÃO OS ABUSADORES? COMO A SOCIEDADE É CONIVENTE MESMO SEM QUERER SER?

Eis aí uma questão que aumenta a complexidade do assunto. Não, os principais abusadores não são os estranhos. Eles vivem com as crianças, ou têm livre acesso a elas, geralmente recebendo confiança por parte da família. Muitos deles utilizam exatamente a questão da confiança para se aproximar das crianças sem levantar suspeitas, passando de maneira às vezes desapercebida. Em função de serem adultos, de geralmente terem a admiração das crianças ou de seus familiares, eles estabelecem com elas uma relação de poder, de subordinação, de “eu sei o que é bom para você e, se eu sei o que é bom para você, então tenho aval para fazer o que eu achar que precisa ser feito”. Logicamente, nem sempre isso é dito de maneira tão clara. Mas pode ser percebido pelas crianças como sendo uma relação de dominação, de “ele, ou ela, é adulto, ele manda em mim, eu preciso dele”.

Os abusadores tendem a assediar com mais frequência crianças que vivem em lares onde impera um estilo de parentalidade autoritário, inclusive utilizando-se disso para aumentar a simpatia da criança por si. Onde falta carinho e acolhimento, pode haver um abusador pronto para oferecê-los às crianças... Onde falta carinho e acolhimento, há, geralmente, uma criança insegura, carente de atenção e cuidado, com baixa autoestima, e isso as vulnerabiliza perante abordagens, além de dificultar a relação de confiança entre a criança e cuidadores que poderiam protegê-la. E o abusador sabe disso. E é ali que ele irá tentar tirar proveito, no laço de confiança enfraquecido entre a criança e seus cuidadores.

O abuso sexual contra crianças também é uma forma de violência doméstica e, de fato, representa mais de 70% dos casos, o que é um índice altíssimo. O abuso sexual contra a criança ocorre fora do seu lar em apenas 25% dos casos notificados. E, ainda assim, a grande maioria desses casos de abuso é cometida por pessoas que recebiam a confiança das crianças. Isso mostra algo extremamente grave: a sociedade acredita que abusadores sexuais de crianças são estranhos e grande parte da estratégia de prevenção dos cuidadores está focada para fora, para a rua, para desconhecidos. Quando, na verdade, ela acontece preferencialmente dentro de casa e/ou praticada por pessoa externa mas de confiança. Em algumas circunstâncias, toda a família é levada a crer que o abuso sexual sofrido pela criança foi praticado no exterior da família, por pessoa estranha, e, de fato, as crianças podem estar sendo induzidas a acusar estranhos pela violência sofrida. Essa falsa acusação externa é facilmente aceita pelos familiares, que preferem acreditar que o criminoso não pertence à sua família. Afinal, é muito difícil aceitar uma realidade tão dura, que transformará todas as relações construídas. É evidente que esse tipo de comportamento apenas reforça e mantém o ciclo de vitimização ao qual a criança está sujeita. Neste contexto, é bastante frequente que as crianças vítimas de abusos cresçam acompanhadas por seus abusadores e, somente na adolescência ou idade adulta, quando recebem algum tipo de apoio profissional, revelam relacionamentos abusivos de longa duração dentro de sua própria família.

Independentemente do grau de ligação com a criança – se familiar ou externo à família – há dois fatores marcantes que caracterizam a relação entre o abusador e sua vítima: o estabelecimento de uma relação de poder entre adultos e crianças e a grande desvalorização da infância na sociedade atual. Em uma sociedade onde crianças são criadas para obedecer cegamente, de maneira autoritária e não empática, é cedo que aprendem que um adulto tem legitimidade para mandar em sua vida, decidir o que ela viverá, controlar seu comportamento, dizer o que pode ou não fazer com ela. Soma-se a isso o fato de que ainda há muito pouca problematização cultural sobre a violência contra a criança e há grande aceitação do uso de práticas violentas contra elas. Esse cenário funciona como um pano de fundo para que abusos sexuais contra crianças encontrem terreno fértil, sejam acobertados e, algumas vezes, naturalizados. Portanto, combater a violência sexual contra as crianças passa por não aceitar a violência contra elas, seja qual for seu tipo, frequência, intensidade ou duração. Em uma sociedade que rejeita veemente a violência contra a criança, qualquer sinal de abuso torna-se mais evidente e, portanto, mais fácil de ser identificado e combatido.

3) QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS TIPOS DE ABUSO SEXUAL CONTRA AS CRIANÇAS?

Image may be NSFW.
Clik here to view.
Pensar que o abuso sexual mais frequente contra as crianças seja a consumação do ato sexual, não só é equivocado como também bastante perigoso, pois contribui para que todas as demais formas permaneçam ocultas ou disfarçadas. A forma mais frequente de abuso sexual cometido contra as crianças são os atos libidinosos, que insinuam a sexualidade na vida da criança de maneira ostensiva, que a introduzem em um mundo de erotismo, contra seu preparo emocional e desrespeitando sua integridade.

Os abusos sexuais podem ocorrer com ou sem contato físico. Entre os tipos de abuso sem contato físico, incluem-se: 1) o abuso sexual verbal, quando o adulto estimula conversas de natureza sexual com a criança; 2) o voyeurismo, quando a criança é ostensivamente observada, especialmente seu corpo e seus genitais, pelo adulto, que geralmente se mantém escondido (prática infelizmente bastante comum entre abusadores na internet, por isso é tão importante que selecionemos com bastante cautela as fotos que publicamos das crianças nas redes sociais); 3) exibicionismo, quando o adulto exibe seus órgãos sexuais intencionalmente para a criança, com o objetivo de amedrontá-la, assustá-la ou ameaçá-la; 4) exibir intencionalmente imagens ou vídeos pornográficos às crianças; entre outras práticas. Com relação aos abusos sexuais com contato físico, incluem-se: 1) o toque em regiões genitais da criança, ou fazer com que a criança toque o adulto nas mesmas regiões; 2) tentativas ou consumação do ato sexual propriamente dito com a criança; 3) pornografia e exploração sexual infantil.

4) COMO IDENTIFICAR POSSÍVEIS SINAIS DE QUE A CRIANÇA ESTÁ SENDO ABUSADA OU FOI ABUSADA SEXUALMENTE?

Esta parece ser a principal angústia das mães, pais e cuidadores com relação ao tema. E não é de se espantar, pois se queremos proteger as crianças, precisamos saber identificar adequadamente os sinais. No entanto, é talvez um dos mais complexos pontos de tensão, tanto em função do silêncio que existe sobre, quanto por sua dificuldade. Crianças se comportam de maneira muito diferente umas das outras e não é possível esperar que os mesmos sinais estejam presentes em todas. Ainda assim, é possível identificar padrões que parecem se repetir entre as crianças que sofreram abusos de ordem sexual.

Para entender essa e outras questões sobre abuso sexual na infância, conversei com um dos psicólogos que mais admiro atualmente, pessoa dotada de uma sensibilidade impar e um total envolvimento com a questão humana, da gestação à idade adulta, Alexandre Coimbra Amaral. Alexandre é mestre em Psicologia pela Pontificia Universidad Católica do Chile, terapeuta familiar e de casais, professor de graduação e pós-graduação na área de Psicologia, fundador e ex-diretor do Instituto Humanitas, em Salvador (BA), e fundador do Instituto Roda Viva. Perguntei para ele se, do ponto de vista do comportamento da criança, há alguma forma de identificar sinais indicativos de que ela esteja sendo ou tenha sido vítima de abuso sexual. Alexandre me disse que sim, que sem dúvida há maneiras de identificar, baseado na mudança de comportamento da criança. Ela pode mostrar-se mais retraída, ou apresentar uma erotização precoce– como tentativa desesperada de elaborar a cena primária do abuso. Ela vai procurar pares para fazer o mesmo, tentando reproduzir o que viveu. Freud dizia que, para elaborarmos o que vivemos, fazemos três coisas: recordar, repetir e então elaborar. Ela repete, repete, repete. Costuma dizer algumas frases de baixo calão, que são facilmente repreendidas pelos pais como sendo feias. Também de acordo com ele, a criança pode reproduzir algumas cenas do abuso sexual por meio de suas brincadeiras, ou querer tocar nos genitais dos amigos, ou reproduzir com eles o que fizeram com ela. Ou ainda, de acordo com Alexandre, Simplesmente o retraimento, como maneira de controlar qualquer tipo de expressão que revele o abuso e, consequentemente, a coloque em vulnerabilidade, já que está provavelmente sob ameaça do agressor”. Os desenhos mudam radicalmente, expressando raiva ou medo, retratam muita chuva e lágrimas, usam cores mais frias e símbolos de desproteção e opressão. Há uma diferença significativa entre a erotização da cultura e a erotização do abuso sexual stricto sensu, embora possamos inclusive considerar a cultura como abusiva, uma vez que expõe a criança a conteúdos sobre a sexualidade humana adulta, para os quais ela não está preparada, afirma Alexandre.

Vejam que esses são sinais que mães, pais, cuidadores e educadores têm condições de observar. Porém, do ponto de vista dos profissionais da saúde, há outros sinais que são indicativos de possível abuso sexual. O profissional de saúde que atende uma criança com suspeita de abuso sexual deve proceder a uma anamnese cautelosa e detalhada, preocupando-se muito mais em poupar a criança do que em identificar mais e mais sinais. É sempre preciso lembrar que qualquer abordagem desastrada ou feita sem cuidado fará a criança lembrar e reviver a dor de ter sido violada, o que também representa uma forma de violência contra ela.
Em função da grande complexidade de identificação presente na maioria dos casos, é de fundamental e insubstituível importância que as equipes de acolhimento sejam multidisciplinares, pois não só a criança como toda sua família precisará de apoio médico, psicológico e jurídico após a descoberta do abuso sexual.

5) O QUE FAZER APÓS A SUSPEITA OU DESCOBERTA DO ABUSO SEXUAL CONTRA CRIANÇA? A QUEM RECORRER, PARA ONDE IR?

De modo geral, os dois principais caminhos a serem seguidos após a suspeita ou descoberta são: via sistema de saúde ou via Conselhos Tutelares ou órgãos de proteção à infância.
A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência recomenda que a família ou o cuidador que identificou possíveis sinais de abuso sexual contra a criança procure imediatamente o Conselho Tutelar da sua região, também para receber maiores informações sobre os procedimentos a serem tomados a partir de então. Esse caminho é recomendado, inclusive, pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Artigo 13, que afirma: Os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos contra a criança ou o adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. A partir daí, o caminho a ser percorrido depende da confirmação da ocorrência do caso. Confirmada a suspeita, a criança e sua família podem ser encaminhadas para os serviços de acolhimento, saúde e apoio social, pertencentes a uma ampla rede de apoio multiprofissional.

Outra porta de entrada para o encaminhamento da criança e sua família é via sistema de saúde. E como meu foco aqui não é falar sobre o acolhimento que existe no sistema privado de saúde, mas, sim, no sistema público, via SUS, conversei com o psicólogo Leonardo Mendonça, que durante 4 anos trabalhou no atendimento de crianças, adolescentes e suas famílias na Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente. Leonardo me informou que a porta de entrada, neste contexto, é via Unidade Básica de Saúde. Muitas mães, pais e cuidadores não procuram o Conselho Tutelar em caso de suspeita de abuso, mas, sim, buscam orientação médica. Neste caso, os profissionais da saúde, integrados com a estratégia Saúde da Família, procederão à anamnese, acolhimento da situação de dor emocional, encaminhamento ao Conselho Tutelar e todo o suporte necessário, bem como desencadeamento posterior de toda a rede que precisa ser articulada para acolher, proteger e garantir o cumprimento da lei. O Artigo 245 do Estatuto da Criança e Adolescente, inclusive, afirma: “Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra a criança ou adolescente. Pena: multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”.

Atualmente, há protocolos a serem obedecidos pelos profissionais do sistema de saúde que visam identificar os sinais de abuso, acolher a criança e sua família e encaminhar os casos de suspeita ou confirmação à Delegacia de Polícia, Conselho Tutelar e/ou Juizado da Infância e Juventude. A notificação, pelo profissional de saúde, à Secretaria Municipal de Saúde é, hoje, obrigatória, e a equipe de saúde precisa comunicar o cuidador responsável sobre a obrigatoriedade da notificação, seus objetivos, sua importância na proteção à criança e os desdobramentos subsequentes. Em casos em que há marcas físicas, isso se torna mais fácil. Mas quando não há – o que é a grande maioria dos casos – é necessária uma abordagem profunda e, ao mesmo tempo, cuidadosa e delicada, feita por profissionais treinados que incluem clínicos gerais, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. Após a confirmação, há o encaminhamento ao Conselho Tutelar. Em regiões onde a população ainda não dispõe desta instância, encaminha-se diretamente ao Juizado da Infância e Juventude.

O importante é ter em mente que há três objetivos principais com o encaminhamento da denúncia: o primeiro sempre será de proteger a criança, para que a situação de abuso seja imediatamente interrompida, e acolhê-la emocionalmente. A comunicação aos órgãos competentes, bem como as medidas para que a lei seja cumprida e o abusador punido, são de fundamental importância e precisam acontecer, mas posteriormente à proteção e acolhimento.
É também muito importante ressaltar o seguinte: não é só a criança quem precisará de apoio psicológico e emocional para lidar com esta situação dolorosa e traumática, mas toda a sua família. O acolhimento e encaminhamento que as equipes de saúde procurarão dar, irá justamente neste sentido: apoiar e amparar a família cuja criança foi abusada.

6) TODO CASO É NOTIFICADO? TODO CASO É DENUNCIADO?

Não. Infelizmente não. Grande parte dos casos não chega às instâncias que precisariam chegar. E isso se deve ao silenciamento que existe no interior das famílias. Erramos quando culpabilizamos as famílias pelo silêncio produzido. É preciso lembrar que esta é uma situação extremamente dolorosa, traumática e que marca rupturas de diferentes ordens na estrutura familiar. Assim, aquilo que pode parecer fácil ou óbvio de ser feito, muitas vezes não é. É preciso, portanto, destinar um olhar acolhedor e empático à família que está vivendo situação de abuso sexual contra criança em seu íntimo. Inclusive porque isso também pode ser elemento de fortalecimento para que a família busque os desdobramentos necessários e denuncie.

E por que tanto silêncio? É preciso lembrar que em grande parte dos abusos sexuais contra a criança, há o envolvimento de um familiar supostamente respeitado, algumas vezes caracterizando relações incestuosas. Como o abuso sexual também é uma forma de violência doméstica, que acontece muitas vezes de maneira repetitiva, em grande parte dos casos a criança se sente muito culpada pelo abuso sofrido. Ela se vê ou como cúmplice, ou como promotora, e isso faz com que não tenha coragem para relatar a violência a outros cuidadores. Quando a criança adquire mais maturidade e relata o que está vivendo, ou apenas insinua que vai relatar, o abusador lança mão de estratégias para desqualificá-la, gerando um elemento de dúvida que, muitas vezes, privilegia a si mesmo, desacredita a criança e a condena ainda mais à perpetuação do ciclo da violência.

O silêncio por parte da criança também pode ser oriundo de ameaças feitas pelo abusador, que frequentemente diz que algo de muito ruim irá acontecer com quem ela ama, caso conte aos outros “o segredo” que “ambos mantêm”. Pesquisadores da violência sexual contra a criança parecem ser unânimes em afirmar: quanto maior o medo da criança, maior o prazer do agressor e, consequentemente, maior a violência. Neste ponto, mais uma vez, é importante salientar o papel fundamental que uma criação empática pode ter na vida de uma criança. Quando ela se sabe amada e respeitada, quando a ela são transmitidos valores claros de cumplicidade, parceria, respeito e amor, ela sabe que, seja qual for a situação, será ouvida e acolhida. Quando a criança se sente desprotegida, insegura, ou sabe que não será ouvida, ela dificilmente contará o que está vivendo... E, assim, como as pesquisadoras Luci Pfeiffer e Edila Pizzato Salvagni afirmam, em seu artigo “Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência”, publicado em 2005, “...insegura por imaginar que realmente não seria ouvida ou acreditada, envergonhada tanto pelo que passa como pela sua impossibilidade de denunciar, por seu amor próprio reduzido e, ainda, ameaçada por aquele de quem habitualmente depende física e emocionalmente, ela se cala, muitas vezes para toda sua vida”.

Muitas vezes, o silêncio não parte da criança, mas de um dos seus cuidadores, com frequência a mãe. E há também inúmeras explicações de ordem social e emocional para isso, desde o medo da ruptura familiar e da exposição pública, quanto a inexistência de uma rede social de apoio que possa acolher aquela mulher e aquela(s) criança(s),  quanto pelo próprio sistema patriarcal, que força e subjuga mulheres e crianças.

As mesmas autoras mencionadas acima afirmam algo extremamente importante, no contexto do silêncio familiar sobre o abuso sexual das crianças: “Em algumas situações, quando o incesto é revelado, a mãe reage com ciúmes, como rival e passa a colocar na filha a responsabilidade pelo ocorrido. Para corroborar com essa prática, estaria a dificuldade de a mãe reconhecer o incesto, pois seria o reconhecimento de seu fracasso como mãe e esposa, enquanto que o abusador usa de todos os meios para manter seus atos em silêncio e encobertos”. Mais uma vez, portanto, é preciso que a sociedade se dispa de seu papel julgador. Todo esse grupo precisa de acolhimento e força para afastar-se e denunciar o seu abusador. O simples comportamento culpabilizante das vítimas atua como cúmplice da violência que elas sofrem, e não contribui para libertá-las deste ciclo pernicioso. Apoio, acolhimento, empatia, não julgamento: são fatores decisivos para a família que está vivendo uma situação tão crítica quanto essa.

7) O QUE UMA FAMÍLIA E A SOCIEDADE PODEM FAZER PARA AMPARAR UMA CRIANÇA QUE FOI ABUSADA DE FORMA A CONTRIBUIR PARA SUA RESILIÊNCIA?

Image may be NSFW.
Clik here to view.
Essa pergunta, assim, na íntegra, fiz para o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral. A resposta dele foi muito clara: buscar ajuda psicológica e emocional. “É muito difícil lidar com isso sozinho. Os sinais de que a criança foi violada em sua infância sagrada são muito dolorosos, deprimem e retiram dos adultos a sua capacidade de tomada de atitude mais lúcida e resiliente. Todos são abusados quando há um abuso sexual. É a vida de uma criança tão amada que é violada. E, portanto, os pais vivem o mesmo luto daquela criança”. Alexandre afirma que, embora não se possa apagar as marcas do abuso, é possível trabalhar o retorno da criança ao seu mundo lúdico. E que todos os envolvidos, que a amam, que se preocupam com ela, podem ajudar a elaborar a cena com amor, respeito, carinho, auxiliando para que ela se identifique como vítima e não permita nunca mais que seu corpo seja tocado sem a sua permissão. Para Alexandre, um dos efeitos mais deletérios da forma traumatizada de uma família lidar com o abuso é o total fechamento para o tema do corpo e da sexualidade.
“A melhor coisa que a família pode fazer é não encarcerar a criança na sua sexualidade erotizada precocemente. Não é proibir, dizer que é feio. Não é negar que aconteceu. Mas dizer que ela vai entender aos poucos o que aconteceu. Que o corpo é dela. Pedir licença todas as vezes que for tocar no corpo da criança, sobretudo na hora da limpeza genital. Isso deveria ser uma praxe de toda família, deixando claro para a criança desde sempre o protagonismo sobre o seu corpo e o direito de não deixar ninguém tocar nele – do asseio ao beijo na tia que não quero dar, por exemplo”, diz Alexandre.

Alexandre, eu, e tantas pessoas que trabalham ou com acolhimento de crianças ou com o estudo da violência e seus efeitos sobre a saúde, sobre a vida adulta, sobre as histórias de vida, somos contundentes ao lembrar, neste contexto, dos efeitos das palmadas. Palmadas são formas de violência socialmente aceitas. São formas de violação de direitos socialmente aceitas. São formas de violação do corpo da criança. E, sim, por mais que seja difícil para a sociedade aceitar e admitir, ela “abre portas para a criança admitir que seu corpo é violável por um adulto”, nas próprias palavras de Alexandre. Com as quais concordo em sua totalidade.

8) BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE PREVENÇÃO

Dizer que tais práticas hediondas podem ser prevenidas em sua totalidade é condenar as famílias que  as viveram à falta de empatia, ao julgamento externo, ao embotamento ainda maior e à autoculpabilização. Infelizmente, tem coisas que por mais que estejamos atentos, alertas e vigilantes não temos o poder de controlar. Práticas hediondas desta natureza, muito lamentavelmente, estão presentes em nossa cultura e sociedade desde sempre, e é também por isso que precisamos combatê-las com cada vez maior intensidade e assertividade. Não se trata, apenas, de ter olhos para prevenir, mas de entender que o papel da prevenção não é de um indivíduo, de um cuidador, de um responsável por aquela criança, mas de toda a sociedade. Da denúncia de uma suspeita ao amparo social oferecido. Do trabalho bem feito na rede de proteção ao afeto destinado à família que atravessa um problema como esse. Do amparo familiar à criança ao envolvimento dos educadores, dos amigos, de todas as esferas do apoio social. Prevenir depende de todos nós, não apenas dos responsáveis pela criança.

Sem dúvida nenhuma, o estabelecimento de laços empáticos, a valorização do clima de confiança familiar mútua, o fortalecimento da autoestima das crianças, o diálogo sempre amoroso e franco, as fartas e carinhosas explicações sobre a vida, sobre a realidade, sobre as pessoas, as orientações explícitas de condutas para as crianças – do conhecimento sobre as partes de seus corpos à orientação de recusa a aceitar qualquer presente dado por estranhos – podem ajudar a proteger a criança contra a abordagem de possíveis abusadores. Ainda assim, é preciso ter a devida noção de que não conseguimos abraçar tudo, não conseguimos controlar todos os fatores, e é aí que entra a importância do olhar atento para diferentes pessoas, diferentes abordagens, os esforços ativos para preservar o ambiente social da criança, a recusa em permitir que ela viva em ambientes que, de alguma forma, introduza elementos erotizantes ou sexualizantes. Crianças são esponjas que absorvem tudo ao seu redor, inclusive aquilo que você acha que ela não percebeu...

Abaixo, seguem algumas pequenas e simplórias atitudes que talvez possam ajudar a protegê-las de situações possivelmente ameaçadoras do ponto de vista do abuso sexual da infância, elencadas a partir de conversas com diferentes mães, cuidadores e profissionais. E se você tiver alguma dica que não esteja aqui contemplada, não se furte a mencioná-la. Lembre-se: é de todos nós o dever de zelar por nossas crianças:

- Assim que possível, e que a maturidade cognitiva e emocional da criança permitir, ensine a ela os nomes das partes de seu corpo, especialmente os nomes de seus órgãos genitais, para que ela possa se referir a eles com assertividade.

- Oriente-a para que não permita que ninguém além das figuras principais do cuidado toquem em seu corpo.

- Evite que a criança durma no mesmo recinto onde dormem desconhecidos. Mesmo que não sejam desconhecidos para você, lembre-se que podem ser para ela.

- Incentive-a a contar o que fez durante o dia. Faça disso um hábito. Assim, ela saberá que há o momento de contar o que viveu.

- Não permita, na medida do possível, que diferentes pessoas deem banho ou troquem a criança.

- Mantenha sempre uma postura de diálogo com a criança. Esteja aberto a ouvi-la e às suas histórias. Não duvide do que ela contar. Ao invés disso, estimule-a a contar o que viveu, para que você possa distinguir elementos possivelmente fictícios das situações reais. Lembre-se que apenas cerca de 6% dos casos são fictícios. Geralmente, elas estão falando a verdade.

- Não deixe passar situações que te eliciem dúvidas sobre a integridade física e emocional da criança. Vá, pergunte, sonde, investigue. É preferível que você descubra que não era nada do que ficar sem saber que era.

- Evite ambientes e pessoas que estimulem a erotização precoce das crianças. Porque, sim, isso representa malefício a elas. Muitos estudos já mostraram a influência que um ambiente rico em elementos sexualizantes têm sobre o despertar precoce do interesse sexual ou a aceitação de abordagens inapropriadas. Onde há criança não pode haver menção à erotização. Seja radical nisso. Lembre-se de que uma sociedade que aceita uma cultura de erotização da infância torna-se conivente com a aceitação do assédio contra mulheres e meninas.

- Se você souber ou desconfiar que uma criança próxima de você está vivendo situação de abuso, procure ajuda para ela. As equipes são treinadas para identificar situações reais de abuso sexual. Jamais ignore ou encare como “problema da família”. Todos temos responsabilidade pela infância. Quando você sabe e não se manifesta, você se torna cúmplice da violência praticada contra a criança.

- Evite o comportamento paranoico. Enxergar violência sexual em tudo faz com que você não veja as reais ameaças. Discernimento e tato são fundamentais para proteger as crianças. Trabalhe com elementos concretos, pergunte, telefone, visite, converse.

- Leia, sempre que possível, material de origem confiável sobre abuso sexual na infância. Ler todo e qualquer texto disponível na internet pode fazer você se senti bem informado quando, na verdade, não está. O Ministério da Saúde, a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência, as Sociedades de Pediatria, os Conselhos Tutelares, as Secretarias Municipais de Saúde, todas essas instituições disponibilizam material para te apoiar e informar.

- Passe o máximo de tempo possível com as crianças, ligado nelas, não conectados a outras coisas. Só assim você conseguirá notar diferenças sutis de comportamento que podem ser indicativos de algum problema mais sério.

- Procure conhecer ou estabelecer contato com todos os adultos que convivem com sua criança. Faça-os saber que você está atento, vigilante, consciente de todas as nuances comportamentais da criança. Faça-se presente. Mostre-se ativo e atuante.

- Mudou a professora ou o professor? Vá lá conhecer. Seja a escola formal, a aula de natação, de música, tudo o que estiver ao seu alcance.

- Aceite o NÃO que a criança emitir, ou a oriente conscientemente sobre a importância do NÃO.

- Não permita que estranhos, ou mesmo conhecidos, peguem a criança no colo, ou a beijem, ou a acariciem SEM QUE ELA ASSIM O DESEJE. O corpo é dela, é dela também a autonomia de decidir. Quanto antes ela aprender isso, mais facilmente o conceito de autonomia sobre o próprio corpo será introjetado. Substitua o “Dê um beijo na tia Maria” por “Você gostaria de dar um beijo na tia Maria?” ou “Posso te dar um beijo?”. E aceite o NÃO, quando ele vier... Elas têm direito a isso.



A PRODUÇÃO DESTE TEXTO SOMENTE FOI POSSÍVEL MEDIANTE APOIO E CONTRIBUIÇÃO COLETIVA DAS SEGUINTES LEITORAS:

Alessandra Fischer
Ana Castilha
Ana Lúcia Dias da Silva Keunecke
Ana Paula Mirapalheta
Andrea Lamberts
Ariane Osshiro
Bruna Betoli
Camila Lima
Denise Araújo Espinola
Elidiane Szimanski
Elisa Costa Vale de Oliveira
Elisiane Magnus Hendler
Fábia Neves Gonçalves
Fernanda Winiawer Znamensky
Glau Paixão
Ila Brognoli
Jamila Maia
Jerusa da Silva Horário
Jucelha Carvalho
Karla Freitas
Lia Flávia Savaris Prokisch
Lúcia Souza D´Aquino
Lyanne Rehder
Maitê Andrade da Silva Brambilla
Mariana Amaral Costa
Mariana Tezini
Naíme Silva
Nina de Carvalho Schubart
Patricia Nazaré Campaner
Priscila Fortunato Barreto de Souza
Renata Teixeira
Silvia Regina Pavesi
Zioneth Judith Garcia Galeano
E mais 3 apoiadoras que preferem permanecer anônimas


MATERIAL CONSULTADO

- Abuso sexual: mitos e realidade. Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência. - http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Abuso_Sexual_mitos_realidade.pdf

- Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência. Renata Dejtiar Waksman e Mário Roberto Hirschheimer (coordenadores). Sociedade de Pediatria de São Paulo e Conselho Federal de Medicina. http://www.spsp.org.br/downloads/ATENDIMENTODOLESCENTES.pdf

- Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência. Luci Pfeiffer e Edila Pizzato Salvagni. Jornal de Pediatria, v.81 (5), 2005.
- Crianças e adolescentes em situação de violência. Ana Lúcia Ferreira, Ana Tereza Miranda Soares de Moura, Rosana Morgado, Simone Gryner, Viviane Manso Castello Branco. Em: “Impactos da Violência na Saúde”. Editora Fiocruz.

- Livros infantis para prevenção do abuso sexual infantil: uma revisão de estudos. Sheila Maria Prado Soma e Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams. Temas em Psicologia, v.2 (2), 2014.
 - Aprendendo a prevenir– Orientações para o combate ao abuso sexual contra crianças e adolescentes. Promotoria de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude.
 
- Guidelines for medico-legal care for victims of sexual violence. World Health Organization.

- Estatuto da Criança e do Adolescente


"AS MULHERES E O PÓS-PARTO – A VOZ DAS BRASILEIRAS" - Convite à participação




Toda mulher que se descobre grávida descobre, também, que irá conviver com toda sorte de comentários e perguntas focadas em sua gestação, seu parto e seu bebê. Pergunta-se sobre o sexo do bebê, sobre o nome do bebê, sobre como será seu parto, onde, quando e com quem, sobre se irá amamentar, sobre sua volta ao trabalho, sobre a cor do quarto, a escolinha que frequentará, os brincos, as vacinas, o pediatra, sobre tudo.

E então o bebê nasce.

E as perguntas mudam. Dorme bem? Quantas vezes acorda para mamar? Como foi o parto? Está mamando? No peito ou na mamadeira? Já introduziu outros alimentos? Já engatinhou? E os dentinhos? E o cocô? E seu peso, já voltou ao que era? Já foi pra creche? Quando irá? E, nossa, dorme sozinho? E, nossa, dorme com você? E insira aqui qualquer outra pergunta ou comentário que seja constantemente feito a uma mãe, durante a gestação ou após o nascimento. De todos os tipos. Todos. Menos um.

“Como você está? Você está bem? Como está sua adaptação? Como estão seus sentimentos? Posso te ajudar? Como posso te ajudar? Do que você está precisando? Está precisando de algo? Como está seu coração? Quer falar sobre isso? Olha... Estou aqui. Aguente firme. Isso aí, essa coisinha aí dentro, essa tristeza, eu também a conheço. Tenha calma. É isso mesmo, é assim mesmo. Segure minha mão. Eu também sei o que é isso... Olha, estamos juntas”.

E enquanto continuamos a falar coisas incríveis sobre parto, sobre ser mãe, sobre o nascimento do bebê, sobre a imensidão deste amor, sobre como seu primeiro sorrisinho é inebriante (e é, é mesmo), sobre como cheirinho de bebê em casa é incrível (e é, é mesmo), enquanto cercamos a maternidade e a chegada de um bebê com uma aura de encantamento e deslumbre, deixamos de falar sobre algo que, SIM, PRECISAMOS FALAR: sobre como tudo isso pode ser difícil. E doloroso. E sofrido. E solitário. E desafiador. E sim, pode ser mesmo. Muito.

Nós precisamos muito falar sobre isso. Precisamos falar sobre o puerpério, sobre o pós-parto. Sobre aquele período que começa assim que o bebê sai de dentro da gente e que pode se alongar por muitos meses...  Nós precisamos falar sobre isso. Porque quando não falamos, ou quando falamos apenas das nuances cor de rosa da maternidade, nós condenamos mulheres a ainda mais dor, ainda mais sofrimento, ainda mais isolamento e sentimento de estranhamento com si própria, com seu bebê, com sua nova condição, com seu novo mundo. Quando dizemos que o puerpério não é de difícil travessia, nós tornamos invisível uma dor muito comumente sentida. Nós tornamos mães invisíveis. Nós podemos agravar um problema social e de saúde muito sério. Nós podemos contribuir para tornar patológico algo que não o é obrigatoriamente.

Depois que nosso bebê nasce, descobrimos algo que ninguém nos avisou, informou ou alertou: que nós, agora mães, vamos precisar de tanto apoio, cuidado e atenção quanto nosso bebezinho que acabou de nascer. Quase todas nós sentimos isso. Quase todas nós choramos nos dias ou até meses seguintes ao nascimento. E nos sentimos sozinhas. E achamos que não vamos dar conta. Que não vamos conseguir. Que nunca mais seremos as mesmas. Sentimos que algo nasceu e algo morreu. Que algo foi encontrado e que algo se perdeu. E nos sentimos incompreendidas, desamparadas, secundárias ou terciárias na ordem do dia, estranhas, incapazes de lidar com as dificuldades. E não podemos fingir que isso não acontece. Porque acontece sim. Todos os dias. Todos os dias mulheres choram sozinhas após o nascimento de seus filhos. E todos os dias mulheres superam. Todos os dias mulheres também descobrem que sim, dão conta. E que ter ouvido uma palavra de apoio, incentivo, faria muita diferença. Que ter tido mais informação sobre puerpério poderia tê-la ajudado a atravessar. Que falar sobre o assunto poderia, sim, tê-la fortalecido. E, assim, fortalecer outras mulheres.

É por isso que, hoje, estamos convidando você, que passou por momentos difíceis no seu puerpério e o superou, ou o está superando, a falar sobre isso para outras mulheres, para a sociedade, para todos. Porque precisamos falar sobre isso. Todos os dias nascem milhares de bebês. O que significa que nascem milhares de mães. E se os bebês são lindos e importantes, as mães são mais, inclusive porque delas dependem os primeiros. São lindas, são importantes e precisam ser ouvidas. Todos os dias, milhares de mulheres estão vivendo um pós-parto. Todo dia tem uma mulher que gostaria de saber que não está sozinha nessa, que é uma das experiências mais marcantes e mais profundas da nossa vida. Precisamos fazer com que nossas vozes, ao serem ouvidas, mostrem problemas importantes que não estão sendo contemplados pelas políticas de saúde e pelas políticas sociais. Que nossas vozes, ao serem ouvidas, mostrem que sim, é lindo parir, é lindo amamentar, mas é preciso olhar a mulher que está fazendo isso, sem vê-la como um meio para um fim. Não é possível mais negligenciar mulheres, deixado que se tornem mães sem saberem ou sem estarem preparadas para os desafios que virão após o nascimento do seu bebê. Precisamos dar espaço para que mulheres que passaram por essa fase com algum tipo de sofrimento possam compartilhar suas experiências com outras mulheres. E também possam falar sobre como conseguiram, o que fez falta, o que poderia ter ajudado.

Acreditamos sinceramente, de todo nosso coração, no poder de cura de falar e compartilhar experiências com outras mulheres. E é para isso que queremos convidá-las hoje. Já fizemos uma vez, quando produzimos o documentário “Violência Obstétrica – A Voz das Brasileiras”. E deu mais do que certo, pois é também com a ajuda dele que estamos transformando o cenário violento de nascimento no Brasil. Muitas mulheres mudaram suas vidas para melhor depois que compartilharam suas experiências com o coletivo. Queremos fazer isso de novo. Vamos tirar as dores do puerpério da invisibilidade. Fale! Conte para outras mulheres! Ajude outras mulheres! Nós vamos amplificar a sua voz. O convite está aberto de 10 a 17 de julho de 2015. Vamos trabalhar duro, voluntariamente e com muito amor para produzir esse novo documentário. Ele não é parte do trabalho de pesquisa de nenhuma de nós. Estamos fazendo porque acreditamos no poder da amplificação da voz das mães. Das mães brasileiras. As instruções se encontram na imagem abaixo.

Um grande e sincero abraço,

Heloísa de Oliveira Salgado
Ana Carolina Franzon
Ligia Moreiras Sena – do blog Cientista Que Virou Mãe
Thais Cimino – do projeto Temos Que Falar Sobre Isso



AS MULHERES E O PUERPÉRIO – A VOZ DAS BRASILEIRAS



Quando o amor aos filhos ressignifica nossa própria história...



Apego. 
Uma palavra. Dois significados.  
Muito se tem falado sobre desapegar-se. Desapegar-se no sentido de não se agarrar a bens materiais, a condições de vida, a pessoas - com a conotação de "não se apegue, deixe-o ir" -, a objetos, a ideais, a emoções e padrões de comportamento. 
Visto por esse prisma, o desapego é uma coisa boa, é algo a se conquistar. Evita sofrimentos, evita falsas ideias de segurança, evita a paralisação, estimula o crescimento e nos faz ponderar melhor sobre as coisas. 
Mas apego também tem outro significado. Apego também é: sentimento de afeição, sentimento de simpatia por alguém, afeto, amizade, amor, benevolência, pergunte para os dicionários. Por esse prisma, portanto, o apego é algo muito bom, que todos nós buscamos. Quem não quer ser amado, ser tratado com afeto, com benevolência, com solicitude, com empatia? 
Ao falar sobre apego lembramos do Attachment Parenting que, em português, tem a tradução bastante imprecisa de "criação com apego", que eu, particularmente, não gosto muito. Digo que é é imprecisa porque, ao utilizar uma palavra com duplo sentido, damos duplo sentido também à expressão. É muito importante que se esclareça que a criação com apego se refere à segunda conotação mencionada aqui. É uma criação baseada na hipérbole do afeto, na entrega, no amor, na empatia, na disponibilidade, na presença, na reciprocidade, na compreensão e, sobretudo, no estabelecimento de vínculos afetivos saudáveis e seguros. Não no rancor, na doutrinação, no querer ensinar alguém à força, no entendimento de que existe um superior - o adulto -, que deve ser obedecido, e um inferior - a criança, que não tem voz.
Portanto, quando dizemos "criação com apego", não estamos falando em criar crianças negativamente dependentes dos pais, despreparadas para a vida, apegadas a bens físicos, muito pelo contrário. Estamos falando de crianças amadas com tal entrega, dedicação, presença e disponibilidade que isso as torna seguras. Quanto mais sabemos que alguém está ali para nós e, junto com ele, está também o seu amor, mais seguros nos tornamos. E segurança emocional traz coragem, firmeza nos passos pelos caminhos da vida, tranquilidade e paz interior.
Quando alguém diz que não gosta dessa ideia de criação com apego porque isso tende a criar pessoas inseguras, carentes, dependentes, não faz a menor ideia do que está falando.Quando alguém diz que criação com apego não estimula a independência e a responsabilidade, não faz a menor ideia do que está falando. A criação com apego gera exatamente o oposto. Inseguro se torna quem sabe que não adianta chamar pelo pai ou pela mãe que não será atendido; carente se torna quem recebe negativa ou desprezo no lugar da presença e da disponibilidade; dependente se torna quem não se sente confiante o suficiente para desprender-se. A falta de amor gera crianças introvertidas, cruéis, violentas, praticantes de bullying, preconceituosas, agressivas. 
Algumas pessoas dizem, ainda, preferir criar filhos com uma certa distância emocional por saberem que a separação é inevitável, seja a curta separação da escolinha, seja a separação que a idade adulta, de uma forma ou de outra, traz. Se pensarmos assim, ninguém mais amará ninguém, ninguém mais buscará a união, a parceria, a comunhão, porque sabemos que, mais cedo ou mais tarde, todos nos separaremos.
A questão é: o que você quer fazer com o tempo de proximidade que lhe é concedido, seja na vida em geral ou como mãe ou pai? 
Quer criar filhos com afeto, dedicação e presença ou prefere criá-los com uma dose de afastamento para evitar o (seu) sofrimento? 
Optando pela última, você está, além de iludindo a si mesmo, aumentando a possibilidade daquilo que quer evitar: o sofrimento. 
Nós nos queixamos diariamente da forma como as pessoas em geral estão se comportando: com individualismo, egoísmo, egocentrismo, falta de empatia ou compreensão. Mas esquecemos de que é desde a infância que isso está sendo estimulado.Quando nos tornamos mães e pais, temos a grata oportunidade de ajudar a mudar o mundo.Pelo nada simples fato de que criar boas pessoas para o mundo é ajudar a melhorá-lo.Para quem diz "Não deposite sobre mim essa responsabilidade", eu digo: não fuja dela. Isso é o que de melhor você pode fazer não só por seus filhos, mas por todos, inclusive, e principalmente, por você.
Porque criar filhos com amor ajuda a ressignificar a sua própria história.
Não perca essa chance. Sempre é tempo de melhorar a qualidade do vínculo com nossas crianças... Sempre é tempo de mudar a própria história.


*escrito originalmente em 28/02/2012

Nosso caminho como mães é a gente quem pavimenta...


Meu aniversário e o aniversário da minha filha estão chegando. Semana que vem celebramos 5 anos de caminho conjunto, construído sobre a superação de desafios, aprendizados mil, revoluções pessoais e uma dose cavalar de amor. É inevitável que eu me lembre de todo nosso percurso, das coisas que vivemos juntas, do quanto a experiência da maternidade me transformou, da revolução que aconteceu em mim, de quantos ciclos consegui romper - às custas do enfrentamento de processos bastante dolorosos, mas de fundamental importância, não posso mentir. Então me lembrei de duas situações que vivi há 3 anos e meio e de um texto que escrevi sobre elas... Naquela época, eu não imaginava que escreveria um livro sobre criar filhos sem palmadas, eu não imaginava que perderia meu pai tão cedo, não imaginava que aquele acolhimento que sem querer ofereci a uma menina e à sua mãe seria, de certa forma, o meu caminho de vida. Ontem, eu e Clara estávamos conversando e eu disse que ela era uma menina muito valiosa para mim. Isso não é novidade. Todos os dias desta vida conjunta, sem exceções, dos mais tranquilos aos mais difíceis, eu faço questão de dizer a ela o quão importante, especial e amada ela é para mim e por mim. Isso acontece há 5 anos. Todos os dias. O que aconteceu? Aquilo que naturalmente acontece: ela introjetou esse discurso. E quando eu perguntei se ela sabia o que era algo valioso, ela respondeu: "Sei. É algo especial. Tipo eu, que sou muito especial. Sou a filha mais especial do mundo". Eu jamais disse isso a ela, pois não trabalho com comparações. Mas é assim que ela se sente. E é uma grande e profunda tristeza saber que tantas crianças e tantos adultos seguem pela vida se achando péssimos e imprestáveis. Talvez porque tenha sido somente isso que ouviram durante toda sua vida... 
Lembrei deste texto, escrito há 3 anos e meio. Da discrepância de formas de cuidado. Das diferenças de concepção de mundo. De como tantas pessoas escolhem o caminho da dor quando poderiam escolher o do amor. E, sem que percebam, estão pavimentando o caminho de suas vidas. Com dor. Ou com amor.

*********

A vida cotidiana é um pote farto de histórias. Ontem, acompanhei meu pai em uma pequena cirurgia em um hospital público aqui em Florianópolis, um procedimento relativamente simples com duração estimada em cerca de 1 hora e meia. Chegamos ao hospital às 11:30 e saímos às 18 horas, um interminável chá de espera que me permitiu vivenciar diferentes experiências. Sobre a cirurgia em si, excelente: equipe atenciosa, cuidadosa e que deixou a mim e a ele - principalmente - tranquilos sobre todo o procedimento, gente bacana que arrancou diversos elogios de todos. Saímos de lá também elogiando o atendimento recebido e felizes pelo fato de que muitas pessoas receberam, ao longo de todo o dia, atendimento realmente condizente com sua condição de fragilidade momentânea que um problema de saúde traz. Aproveitei a longuíssima espera para colocar minha leitura de coisas úteis e fundamentais (ironia, por favor) em dia: devorei dois livros de tirinhas dos insubstituíveis Calvin e Haroldo. E muito do que eu ia lendo, ia vendo ao vivo nesse livro de crônicas que é o cotidiano. E, como não poderia deixar de ser, vão aqui alguns esquetes desse emocionante stand up tragicomedy da vida real.



Cena 1 - Os Bem Criados
Estou eu imersa na leitura fascinante de Calvin e Haroldo, enquanto meu pai fazia amizade com metade da população flutuante do hospital, sentada ao lado de uma senhora que ora costurava uma linda colcha de patchwork para o natal, ora cochilava com a agulha na mão. Eis que, logo à nossa frente, uma menininha linda com a idade aproximada da Clara, começa a chorar sentidamente, e do choro passa aos berros, obviamente acordando a senhora ao lado do sono que ela nem percebeu que estava tendo.
- Ah essa lei da palmada... Agora não pode bater e dá nisso - diz em minha direção, olhando por cima dos óculos. Obviamente, mantive o silêncio, pensando "Minha Nossa Senhora da Militância, me impeça do ativismo. Grata". Não conseguindo comentário adicional de minha parte, a senhora continua.
- Pense se eu tive filhos que choraram assim em público. Mas nunca! Foram sempre muito bem criados. Porque educação a gente dá assim, no dia-a-dia. Imagine, chorar assim. Isso aí é falta de laço!
Então comecei a conversar com ela.
- Então a senhora tem filhos bem criados, bem educados, é? Que coisa boa!
- Eu, imagine! Gente da melhor qualidade, disciplinada, muito bem educada. Nunca fizeram esse papel aí.
- E como a senhora os educou? Eu tenho uma filhinha de 1 ano, é sempre bom compartilhar experiência.
- Ah, minha filha. Era um olho na criança, um olho na cinta. Que criança a gente tem que manter ali, na ponta da vara. Pensa se eles fizeram esse escândalo público aí alguma vez?!
E a pequenininha chorava cada vez mais forte, aquele chorinho sentido que dá até soluço. Eu já estava quase me levantando pra tentar ajudar, de repente oferecer o sling que eu sempre levo na bolsa mesmo quando minha cria não está comigo, quando uma moça sentada ao lado dela fez exatamente isso: levantou-se com um sling de argolas, ofereceu para a avó da guriazinha, que aceitou na mesma hora, pegou a guria dos braços da mãe, que já não sabia mais o que fazer e, com a ajuda da moça desconhecida, a colocou no sling e saiu passeando como uma grande novidade, me deixando ali com a cara de boba ocitocinada mais feliz do pedaço. Aqui em Floripa isso é muito comum, muita gente usa sling e é bem frequente encontrarmos bebês sendo slingados. E lá vem ela, a senhora:
- Ah lá, a frescura. Se passou o choro, era frescura. Vê se no meu tempo tinha esses trecos esquisitos aí. Esse povo é muito cheio de nove horas.
- O que a senhora fazia quando seus filhos choravam assim?
- Eles NÃO choravam assim, minha filha - diz a senhora bem enfaticamente - ou era couro no lombo.
- Sei.
Silêncio.
- A senhora está aguardando algum procedimento?
- Sim, vou fazer uma cirurgia das vistas. E tu?
- Eu estou acompanhando meu pai. Ele também vai fazer essa cirurgia.
- Ah, ó lá. Isso é que é filho. Larga o que tá fazendo pra acompanhar um pai ou uma mãe.
- A senhora tá sem acompanhante?
- É, filha, tô sozinha. Diz que alguém vem aí mais tarde, mas duvido.
- Mas e os filhos da senhora, os bem criados?
- Ah, esses... esses aí mal falam comigo. Depois que cresceram ganharam asa, minha filha, mal lembram que têm mãe. Pra tu vê, né? A gente se esforça pra dar o de melhor pra eles e quando crescem nem te recompensam.
- Ô essa lei da palmada, né?
- Ô, minha filha! Se eu tivesse boa, era couro no lombo de novo.

Cena 2 - Amábiles

E eu lá nas minhas tirinhas Calvinistas. E percebo um rostinho bem por cima do meu ombro direito. Olho pra trás e tem uma menininha linda espiando as folhas do livro que eu estava lendo. Me viu olhando, e ficou toda sem graça.
- Oi - digo eu.
- Oi - diz ela.
- Tudo bem?
- Tudo.
- Como é seu nome?
- É Amábile.
- Amábile?! Que nome lindo! Como o da Madre Paulina!
- Isso mesmo! - diz a mãe dela, feliz por alguém ter reconhecido a intenção - Você conhece o Santuário da Madre Paulina?
- Sim, conheço. Estive lá esse ano com minha família.
- Você é católica? - pergunta a mãe.
- Não.
- É. Eu também não sou. Dei o nome Amábile em homenagem a uma enfermeira que me atendeu quando ela nasceu - apontou pra menina -, que chamava Amábile em homenagem à Madre Paulina.
- Ai que lindo! Ela deve ter sido ótima pra você, né?
- Ótima?! Ela me salvou!
Silêncio. Imagine minha cara.
- Essas coisas é que valem a pena, né? Saber que não importa o que estejamos vivendo, sempre tem alguém que pode estar disposto a nos ajudar.
- Foi uma santa, aquela mulher. Foi ela que me ajudou o tempo inteiro. Muito amável mesmo, como o nome.
Eu toda emocionada, enquanto a pequena Amábile folheava o livro que eu havia emprestado.
- Por que você está lendo história de criança se você é adulta? - pergunta a pequena Amábile.
- Porque eu sou uma adulta que gosta muito de criança.
- Vai ver que você é uma criança disfarçada de adulta né?
- Eu acho que sou mesmo, Amábile.
- E o que você vai pedir pro Papai Noel?
- Sabe que eu não sei?
- Pede então pra minha mãe ficar boa?
Soco no estômago.
- Sua mãe está doente?
E a mãe começando a chorar ali atrás...
- Está.
- O que ela tem?
- Não sei, ela não me diz. Pra mim ela finge que não está, mas eu sei que está.
- Pode deixar, Amábile, esse vai ser o meu pedido pro Papai Noel. Vou fazer uma cartinha hoje.
- E junto você pede um fantoche? Pra mim, esse.
- Peço sim. Vou pedir um pra você e outro pra minha filha.
- Você tem filha?
- Eu tenho, bem pequeninha, menor que você.
- Tem uma foto?
Mostro pra ela uma foto no meu celular.
- Que linda que ela é, né? - ela diz.
- Eu acho, muito fofinha.
E ela:
- Olha, não fica doente. Se não ela vai perceber e vai ficar muito triste.
- Mas sabe, Amábile, se eu ficar doente, vou fazer de tudo pra melhorar, pra poder cuidar dela muito tempo. E eu tenho certeza que, ela estando junto de mim, vou melhorar mais rápido.
- Isso! É assim que tem que pensar - diz Amábile. E vira pra trás - Viu, mãe? Não precisa se preocupar. Vamos fazer TUUUUDO pra melhorar. E eu já estou com você, vai ser rápido.
E nessa hora eu recebi dessa mãe o olhar mais cúmplice que eu já recebi até agora nessa experiência como mãe.
Mães existem de todos os tipos, de todos os credos, saudáveis ou doentes, amáveis ou agressivas, felizes ou tristes, realizadas ou frustradas, que deixam a vida de mãe passar como um simples e corriqueiro evento ou que se dedicam ativamente a isso. O importante é lembrar sempre que o caminho que se percorre numa vida como mãe é a gente mesmo que pavimenta. Esse chão pode ser ladrilhado de pedacinhos coloridos ou pode ser, simplesmente, um grosso, cinza e impermeável asfalto. Quem escolhe e constrói o chão do caminho somos nós, essas mulheres que viraram mães. Mas quem percorre o caminho que vamos ladrilhando são eles, essas pessoas que nos foram emprestadas para serem amadas e cuidadas, os filhos. E se lá na frente, percebermos que o nosso caminho se tornou também o caminho dos nossos filhos, é porque fizemos um bom trabalho. Mas isso só se saberá lá adiante.
Enquanto isso, ser mãe é essa coisa que se aprende sendo. 
Todos os dias.

Obstetras de Florianópolis, SC - números de cesarianas e partos normais - UNIMED



Já faz bastante tempo que o movimento pela humanização do parto fala sobre como é extremamente importante que se conheçam os números reais dos obstetras, em termos de proporção entre cirurgias cesarianas e parto normal. Se falamos em escolha informada, falamos também sobre saber de fato quem são, do ponto de vista da prática profissional, os médicos que vão nos atender num momento tão importante quanto o nascimento de um filho. Assim, é importante conhecer sua filosofia, o que pensam sobre parto e nascimento, se o que pensam tem embasamento real ou se não passa de uma opinião não fundamentada, se o que consideram "motivo válido para uma cirurgia" não passa de uma desculpa não sustentada cientificamente e se você tem ou não grandes chances de acabar em uma mesa cirúrgica sem qualquer necessidade, embora tenha sido dito que seria dado total apoio em sua busca por um parto digno e respeitoso.
Estamos falando aqui não de mulheres que querem viver uma cesariana para o nascimento de seus filhos - acho que já está bastante claro que, no Brasil, essas não encontram grandes problemas para viver aquilo que querem. Taxas nacionais superiores a 50 ou 80% - serviço público ou suplementar, respectivamente - deixam explícito que quem quer viver uma cesariana consegue muito facilmente, contrariando todas as recomendações de órgãos nacionais e internacionais. Estamos falando de mulheres que, em sua busca por um parto natural, encontram profissionais que se dizem uma coisa, praticando outra.
Também com o intuito de mudar a assistência ao parto no Brasil, e como parte de uma série de medidas voltadas para o mesmo fim, a Agência Nacional de Saúde promulgou a Resolução 368, de 06 de janeiro de 2015, a qual:


Dispõe sobre o direito de acesso à informação das beneficiárias aos percentuais de cirurgias cesáreas e de partos normais, por operadora, por estabelecimento de saúde e por médico e sobre a utilização do partograma, do cartão da gestante e da carta de informação à gestante no âmbito da saúde suplementar.

Por saúde suplementar entende-se todo o sistema de saúde privado, mediado por operadoras de saúde, os ditos "convênios médicos". Em linhas gerais, significa que toda e qualquer pessoa que faça uso de planos de saúde têm o direito de acessar as taxas de cesarianas e de partos normais praticadas por todos os obstetras conveniados. Ao contrário do que algumas pessoas muito ingenuamente pensam, no Brasil o acesso às operadoras de saúde e consequentemente aos serviços privados de saúde não se restringe a grupos com grandes poderes aquisitivos. Basta uma pequena busca à literatura em saúde no Brasil para ver que o acesso ao sistema privado é bastante difundido. Inclusive porque o próprio sistema público muitas vezes faz uso do sistema privado, o que é um paradoxo. Por exemplo: aqui na cidade de Florianópolis, onde vivo, os servidores públicos do setor saúde têm acesso à Unimed. Não é um paradoxo? Que os servidores de saúde não sejam, eles mesmos, invariavelmente, usuários de seu próprio serviço?
Neste contexto, estão circulando pelas redes sociais nas últimas semanas listas compartilhadas - de construção colaborativa e baseada em dados fornecidos pelas diferentes operadoras de saúde - que mostram os números de cirurgias cesarianas e partos normais atendidos por diferentes obstetras, em diferentes municípios, credenciados a diferentes operadoras.
Sou moradora de Florianópolis, SC. Todo meu envolvimento com o movimento de humanização do parto no Brasil começou com a vivência da realidade aqui de Florianópolis. O doutorado em Saúde Coletiva que estou concluindo, e que tem a qualidade da assistência ao parto como mote, tem sido feito aqui em Florianópolis, embora envolva inúmeras outras cidades e Estados. Eu já sabia, ainda que empiricamente e não baseada em fatos numéricos, qual era a nossa grotesca realidade. Mas confesso que os números apresentados pela Unimed a respeito das taxas praticadas pelos obstetras conveniados nos anos de 2013 e 2014 me deixaram perplexa. Não que eu não as esperasse. Esperava. Mas há algumas coisas nesta lista ainda mais chocantes do que eu poderia supor. A lista encontra-se abaixo.
Antes que você a acesse é importante ressaltar os seguintes pontos:

- trata-se apenas dos números referentes os atendimentos custeados pela UNIMED;
- aqui em Florianópolis há praticamente monopólio da UNIMED, que é, sem dúvida alguma, a operadora com maior adesão e com maior cobertura;
- os números apresentados não representam os números totais dos profissionais, visto que os mesmos podem atender por outras operadoras ou particularmente;
- obstetras que não se encontram nesta lista não atendem pela UNIMED
- a lista está dividida tanto por estabelecimentos de saúde que atendem via UNIMED quanto por profissionais
- não sou conveniada UNIMED, sou usuária do SUS, não tenho nenhum tipo de conflito de interesse por sua divulgação

Se você está buscando um profissional para prestar assistência em seu parto na cidade de Florianópolis, atente para esta lista. Ela também fala sobre comprometimento real com a luta contra as cesarianas injustificadas, que levam à maior morbimortalidade materna e neonatal tão ressaltada não apenas pelo Ministério da Saúde, mas por todas as organizações que prezam pela saúde da mulher e do neonato.

Clique nas imagens para ampliar a visualização.

Image may be NSFW.
Clik here to view.
Números por estabelecimentos conveniados à UNIMED







*Informações fornecidas por UNIMED - Florianópolis por e-mail

A arte, a ciência e o amor de caminhar junto



Minha filha acaba de completar 5 anos. Para mim, os aniversários dela são dias marcados por intensa reflexão sobre nossa caminhada conjunta. Como das outras vezes, passei o dia inteirinho com ela, totalmente dedicada a ela, com direito a café da manhã na cama – o primeiro que ela já ganhou em dia de aniversário – com bolinho entre balões e bichinhos de brinquedo. Passei o dia refletindo e rememorando tudo o que vivemos. Os desafios que superamos, os aprendizados que tivemos, as conquistas, as perdas, mas, sobretudo, a comunhão de valores, sentimentos e crescimento conjunto conquistado à base de duas coisas: muito amor e respeito. E depois que ela pegou no sono, fiquei pensando sobre qual das conquistas de criança que ela viveu nesses 5 anos de vida muito bem vivida mais me marcou, mais produziu em mim reflexões e aprendizados. Não consegui elencar uma ordem de prioridade, mas escolhi um muito significativo, sobre o qual trato abaixo: o primeiro dia em que ela caminhou sozinha.
Criança merece viver como criança. Merece conviver com outras crianças de uma maneira afetuosa, merece estar junto de quem as ama, merece ter liberdade para se desenvolver, pra correr, pra brincar, pra cair e levantar - assim é que se aprende que se tem força e habilidade para superar as quedas -, merece ser respeitada, ser orientada com doçura, participar de momentos de confraternização, ser estimulada de maneira saudável, ter suas conquistas comemoradas. Criança é onde aprendemos uma parte de quem somos. Criança é um ser humano em pleno desenvolvimento, em plena construção, é o adulto do futuro, é quem estará, daqui a 20 anos, cuidando do mundo. Criança é um ser humano que se desenvolve numa velocidade incomparável a qualquer outra idade. E isso não é fácil.
Pense em como estava sua vida há 1 ano. Ainda que você tenha vivido muita transformação e muitos momentos de crescimento, nada é comparável ao que vive uma criança, principalmente as bem novinhas. É muito provável que você não tenha dobrado ou triplicado de peso. Sobre seus hábitos alimentares, ainda que você tenha se tornado vegetariano nesse último ano, ou tenha decidido comer carne, sua vida alimentar não foi assim tão revolucionada a ponto de você conhecer um sabor diferente por dia. Ainda que você tenha se tornado ginasta olímpico ou mestre de yoga, com certeza você não descobriu os infinitos movimentos de seu corpo e toda a potencialidade dele. E, com toda a certeza do mundo, você não voltou a andar de quatro, como antes de aprender a caminhar - a não ser que você tenha lido muito Kafka ou esteja enfrentando um transtorno psiquiátrico grave.
É também por isso, mas não somente, que eu admiro tanto os bebês e os respeito tanto. Porque eles mudam muito em pouco tempo. Muito mesmo. Eles nascem muito pequenos e em 1 ano duplicam ou triplicam seu peso, duplicam seu tamanho, aprendem palavras, percebem seus gestos, conhecem suas habilidades, inserem-se no mundo, experimentam coisas novas, comidas novas, uma vida nova. E aprendem a andar...
Como bióloga, sei como foi importante para nossa espécie o ato de ficar sobre dois apoios. Foi quando nos colocamos sobre duas pernas, e não mais quatro, que nossos olhos, antes quase laterais, passaram a se deslocar um em direção ao outro, assumindo uma posição mais frontal. Foi quando nos colocamos sobre duas pernas e levantamos o tronco que vimos quanta coisa existe acima de nossas cabeças, acima de nossa própria existência como ser. Foi quando percebemos que podíamos alcançar o que antes era inalcançável. E levar coisas, e buscar coisas, e transportar nossas coisas para outros lugares. Foi quando conseguimos carregar nossas crianças no colo. Andar de forma bípede nos ajudou a melhorar nossa habilidade motora, nos trouxe possibilidades de novos horizontes, talvez como antes ainda não tivesse acontecido, de maneira ainda mais importante que quando nosso polegar se tornou opositor e nos permitiu pegar as coisas, pinçá-las, fazer delas instrumentos.
Quando o sociólogo e filósofo Edgar Morin, autor do incrível "Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro" afirma que o hominídeo se diferencia do chimpanzé não pelo peso do seu cérebro nem por suas aptidões intelectuais mas, sim, pela locomoção bípede e a posição vertical, eu posso compreender o que ele quer dizer. Não. Ele não está falando do componente motor da locomoção bípede. Ele está olhando para o futuro e analisando tudo o que nos foi permitido alcançar em função do andar bípede. E concordo com ele... Com certeza, nosso cérebro precisou de milhões de anos para chegar ao ponto de favorecer o andar bípede. Mas com mais certeza ainda, foi o andar bípede que estimulou a formação de novas redes neuronais, novas conexões e ligações entre áreas cerebrais que ainda não estavam tão ligadas assim. E embora isso tenha levado centenas de milhares de anos, existe um momento em que podemos ver isso acontecendo praticamente a olho nu: em nossas crianças, em nossos filhos em crescimento.
Um bebê que começa a caminhar de maneira independente está passando por muitas mudanças, mas passará ainda mais a partir de então. Seu cérebro se rearranja, bem como se rearranja a sua percepção do mundo, sua percepção de limites e de capacidade, e por isso é tão importante uma orientação familiar consciente nessa etapa. É uma revolução! Penso que esse é um "compacto evolutivo", que todos vivemos em cerca de dias, meses e anos. Por isso uma criança que começa a andar merece ser tão amparada, tão orientada, tão protegida e receber o máximo de atenção possível. Não é um momento fácil para ela...
Eu me preparei para esse momento com minha filha, lendo, me informando, estando conectada a ela. Eu sabia que ela exigiria mais de mim a partir dessa fase. Sabia que as noites que sucederiam seus primeiros passos independentes seriam acompanhadas de muitos acordares, de um sono possivelmente agitado, de alguns momentos possivelmente conflituosos para ela porque, afinal, são dezenas de novas percepções e centenas de novos rearranjos cerebrais. Mas isso era teórico para mim porque, afinal, minha filha era, ainda, uma pessoa engatinhante. Até o dia em que deu seus primeiros passinhos... Em 12 de outubro de 2011, dia das crianças, reunimos um grupo de mães e pais no que chamamos de Slingada, para celebrarmos juntos o dia das crianças, divulgar o uso do sling como forma afetuosa de carregar os filhos e, assim, marcar de maneira singela a Semana Internacional de Babywearing e Incentivo ao Uso de Slings. Caminhamos em cerca de 20 a 30 pessoas pela Lagoa da Conceição, aqui em Florianópolis. Coisa linda ver aquele bando de gente carregando seus filhos bem juntinho, coisa linda ver um monte de criança feliz, no dia das crianças. Paramos num café onde aproveitamos para bater um papo, trocar experiências, compartilhar um fim de tarde bem bacana. E foi quando a Clara, com o testemunho de um monte de amigos, começou a andar... Quando a vi trocando passinhos sem apoio, independente, paralisei. E a única reação que tive, além dos olhos cheios d'água, foi olhar para o pai dela, levantar os braços e dizer, junto com ele, "Nosso bebê cresceu...". Foi um dos dias mais emocionantes nesta caminhada como mãe... Os amigos comemoraram junto com a gente. Algo realmente inesquecível. E eu ganhei um abraço de uma companheira de maternagem, que havia vivido há pouco a mesma experiência, e que me disse: "Bem vinda ao grupo das mães que agora correm com seus filhos".

Clara começou a engatinhar no meio da conferência sobre Mulheres e Gêneros nos Espaços Públicos e Privados Brasileiros, 1 dia depois de iniciar minha nova jornada, quero dizer, 1 dia depois de deixar um pós-doutorado em minha antiga área e partir para um novo doutorado, em uma área até então também nova. E começou a andar no dia das crianças de 2011.
Naquele momento, percebi claramente, mais uma vez, os benefícios de ir ativamente em busca de boas informações. Eu havia me preparado para aquela nova conquista dela. Eu estava consciente de que ela poderia passar por uma certa agitação natural, decorrente dessa nova mudança. Então não houve, para mim, espanto algum pelo fato dela ter acordado, todas as noites daquela semana, pelo menos umas 6 vezes... Nem pelo fato de ter acordado chorando assustada em 2 dessas vezes, nem por parecer um pouco aflita. Eu sabia que a vidinha dela estava mudando radicalmente, que seu cérebro estava em plena transformação, que ela estava processando física e emocionalmente um tantão de novidades. Então, naqueles dias e noites, eu e seu pai – a quem fui passando todas as descobertas que ia fazendo enquanto lia sobre aquela fase – fizemos questão ainda maior de ir atendê-la com muito amor, respeito e admiração pelo seu crescimento, entendendo o que se passava. Acho que ela sentiu nossa tranquilidade e acabou se tranquilizando também. E o que poderia ter sido uma experiência de irritação, posto que todos os pais e mães sabem como cansa acordar inúmeras vezes à noite, se transformou numa experiência de compreensão e acolhimento.
Naquela noite especialmente, em que ela trocou seus primeiros passinhos, escrevi um bilhete para ela, que dizia assim:

“Filha querida, bem vinda ao mundo dos seres bípedes. Você vai cair algumas vezes, não vou te iludir. Mas estarei em todas pra te proteger, ainda que esteja longe. Não se esqueça nunca de que, embora agora você pareça muito alta para quem esteve sobre quatro apoios, ainda falta um infinito a alcançar. E tenha calma pra voar. Um filósofo chamado Nietzsche uma vez disse que aquele que quer aprender a voar um dia, precisa primeiro aprender a ficar de pé, caminhar, correr, escalar e dançar; ninguém consegue voar só aprendendo voo. Ouça sua mãe: eu tentei muito e não deu certo. Tive que voltar para aprender a caminhar todas as vezes em que me atirei loucamente, às vezes com uma asinha quebrada, às vezes não sentindo nem a perninha, nem o biquinho, nem nada... Mas nunca deixei de tentar. E se tiver pedra no caminho, filha, ou gente se fingindo de pedra, lembre-se sempre de que você é um passarinho! E que eles passarão! Com todo o amor que é possível. Sua mãe”.


            Neste 30 de julho, ela completou 5 anos. Foram 5 anos em que fiz o que me dispus a fazer desde que, sem qualquer planejamento, me descobri grávida: ampará-la em suas caminhadas e voos. E essa sensação de estar fazendo aquilo a que me propus é muito reconfortante, ainda que nós duas tenhamos vivido tantos percalços – afinal, todos vivemos, não é mesmo? 

Talvez tenha sido por isso que, pouco antes de dormir, já deitada, ela me chamou. Voltei ao quarto. E ela apenas me disse: “Mamãe, obrigada por hoje. Foi um dia fantástico”. E nós não havíamos feito nada demais... Apenas caminhamos juntas por diferentes lugares. Exatamente como tem sido nesses últimos 5 anos... 
É boa demais essa sensação de caminhar conjunto. E de saber que, quando ela estiver cansada, haverá ali um colo muito amoroso de mãe. 
Clara não me ensina a ser mãe. 
Ela me ensina a ser gente.


Em 2015: demore-se. E esteja vivo. Mas de verdade mesmo.


Um dia a gente vai perceber que viver sem sentir não é viver. Que viver implica em sorrir, em brincar, em amar, em se divertir... Mas também em sofrer.
Que sofrer não é uma pausa na vida, um momento em que o trem descarrilha e te leva para onde você não tinha que ir porque, afinal, gente é pra brilhar e não pra sofrer. Desculpe dizer isso logo agora, no fim de um mês em que parece que todos estão felizes, radiantes, caridosos e empáticos, fazendo planos até mesmo para a conquista do mundo e o fim do embargo a Cuba no ano vindouro (ops...).
Mas sofrer é vida também. Faz parte dela. Faz parte de nós.
Ninguém está aqui para ser feliz somente. Essa cláusula não está no contrato, nem em letras miúdas. Quando nossos pais e mães nos disseram, lá atrás, quando chegamos, que seríamos felizes para sempre, que nada nos aconteceria de ruim ou desagradável, que seríamos os mais felizes do mundo, estavam apenas demonstrando seu mais sincero e desmedido amor. Mas, olha amigo, não era verdade...
Ser feliz sempre e para sempre, relegando aos reles mortais – que não nós – todo possível sofrimento, enquanto somente os seres especiais – agora sim, nós – seríamos dignos de louros e alegrias constantes, infinitas, é uma ideia utópica que se ensina às crianças quando elas ainda são muito pequenas. E que é reforçada todos os dias. Até o dia em que for tarde demais para girar o botão do “você também vai passar por isso”, “dor é algo que se sente mesmo”. E for tarde demais para explicar que, sim, vamos sentir coisas um pouco diferentes da alegria. Um pouco mais próximas de um dia nublado e chuvoso. E não um constante céu azul e ensolarado...
Desde então, passamos a ser doutrinados a esconder a tristeza, a não vivê-la, a não falar sobre ela, a sublimá-la, porque só a felicidade nos interessa, só feliz é que vale a pena viver e vamos esquecer tudo o que diz respeito à dor.
E não chore mais.
E não sofra tanto.
E engula esse choro.
E sorria pra foto.
E toma aqui esse chocolate.
E vamos ignorar toda tristeza, todo o sofrer, todos os revezes, e toda nossa humanidade que chora, que sofre, que sente, que nos limita – sim, temos limites – que nos torna frágeis e vulneráveis.
E não vamos chorar na frente das crianças. E vamos esconder delas todo nosso sofrimento. E vamos falar de inúmeros ciscos, rinites, alergias, que nos irritam os olhos e os deixam vermelhos, com nariz pingando e voz embargada. E vamos nos trancar no banheiro. E chorar sozinhos. Solitários. Em momentos de humanidade desamparada. Lá. Dentro das quatro paredes. Escondidos. Para que “saia tudo de ruim de dentro de nós e possamos retomar a vida”. Aquela vida. Feliz. Radiante. Que acorda sempre vestida de branco, pronta para passar margarina no pão e sorrir para a câmera, ao lado de sua linda família e dentro da sua casa própria. Aí sim. Eis a vida que se quer. É isso aí. Você conseguiu. Parabéns.
Então a gente cresce.
Cresce e se depara com ela, a vida real. Cheia de prazeres. Cheia de dores.
Aos prazeres: toda a disposição do mundo. A receptividade. A aceitação. E vamos moldar nossas vidas para ser sua busca constante, porque eles é que valem a pena. Vamos nos jogar de penhascos. Vamos emendar noites. Vamos radicalizar à sua procura. Fazer dois doutorados. Casar 5 vezes. Trabalhar 50 horas semanais. Juntar cifras para comprá-los. Todos. Não ficará sequer um longe de nós. Não passará um mísero café com bolo numa tarde comum. Vamos fotografá-los. E mostrar como eles estão conosco. Eles. Os prazeres. São nossos, todos nossos. Somos merecedores. Vencemos. Uma espécie de meritocracia epicurista desvairada.
Às dores: escolha sua alternativa. Negação? Máscaras? Fugas? Quais fugas? Psicoativos ilegais? Ou os legalizados? Subir o morro atrás de pó? Encher a cara? Abandonar alguém? Um remédio pra dormir? Outro pra acordar? Sexo desvairado? Comprar sempre, comprar tudo? Maledicência, que te faz esquecer por alguns instantes da sua dolorosa vida para focar na dor alheia? O que vai ser? O cardápio é farto, acessível: um compêndio de fugas à sua disposição. Tudo para tornar a sua vida mais feliz. Mais longe das dores. Mais como se quer que ela seja.
Ou encará-las? Ou aceitá-las? Ou se tornar próximo delas? Ou vê-las como parte indelével desta incrível experiência chamada vida [que todos queremos, que todos prezamos, que todos desejamos que seja melhor]?
Hoje vim apenas para fazer um convite. Um convite para 2015. Um projeto de vida para 2015.
Que você acorde em um certo dia e, ao abrir os olhos e perceber a sua dor, que você não a expulse. Que não finja que ela não existe. Que não tente dissipá-la às custas de si mesmo com a ajuda de qualquer coisa. Que você acorde, se sente, olhe no olho dela, naquele olhar cínico e desafiador que ela insiste em te lançar e diga: “Oi”.
Não será simples. Não será fácil. Exigirá de você toda sua força interna – que você tem. Diga: “Oi. Vamos nos entender?”.
É preciso fazer isso.
Na verdade, é a única forma de colocar as coisas na devida perspectiva. Nós somos maiores que elas. Não se dope. Não se anestesie. Não se tire da jogada. Encare. Peça ajuda, ajuda humana. Ajuda que fale, que abrace, que te acolha, que te ampare. Fale. Fale que está doendo, que você precisa de ajuda, mostre onde dói. Se preciso for, use as ferramentas que o desenvolvimento da ciência tornou possível, use sim! Mas dê a elas seu devido status: são ferramentas! Devem ser usadas por você. Não você por elas.
Quando vamos aprender que sofrer faz parte, que é preciso acolher o sofrimento até que ele se amenize dentro de nós e possamos novamente sentir o vento da alegria bater no rosto? Quando vamos encarar os revezes e as tristezas – humanas, absolutamente humanas – como parte inerente da vida e não como tormento, ou mazela, ou algo a ser evitado constantemente, de segunda a segunda, 24 horas por dia?
Image may be NSFW.
Clik here to view.
Quando vamos ter aulas sobre acolhimento e transformação da dor nas escolas? Quando vamos aprender a lidar com elas, como parte de nós?
Todas as tentativas de esconder a dor fracassam.
Todas as ferramentas criadas para “diminuir o tempo da dor” ou “impedi-la de se manifestar” são passos para o desconhecimento de nós mesmos. É preciso acolhê-las. Entendê-las. Dar tempo para que venham, extravasem, se enfraqueçam e partam. Deixando-nos com a força de quem soube lidar com elas. Mas enquanto não conseguirmos fazer isso, enquanto não conseguirmos eliminar a ameaça e o medo da dor, é preciso acolher. Não a nossa própria somente. Mas também a do outro. Porque a dor de quem a gente ama é a nossa dor. Saber que alguém de quem se gosta verdadeiramente está sofrendo é sentir em si mesmo o sofrimento. Quem for incapaz disso, de sofrer a sua dor, de sofrer a dor do outro, não está tão vivo assim.
A vida passa enquanto estamos exercitando a pequenez. E - o que pode ser surpreendente - uma hora ela acaba. Assim. Puf. Sem avisar. Sem dizer que aquele foi o último abraço. A última foto. A última conversa. O fim dessa vida que conhecemos não dá aviso prévio.
O que se celebra no Natal deveria ser celebrado todos os dias. Da hora que se acorda à hora que se volta a dormir. Mas esquecemos disso... 
Mas tudo bem, porque logo chega dezembro e a gente compra um monte de luzinhas e árvores e presentes pra celebrar... Celebrar o que mesmo? 
Se você não souber o que é preciso celebrar, talvez seja importante começar de novo, e tirar as vendas dos olhos, e olhar o outro pela primeira vez. Vai se surpreender quando encontrar o outro e... encontrar a si mesmo dentro dele. E descobrir que somos todos as mesmas pessoas. Sendo felizes, e sofrendo, e vivendo, e experimentando todo tipo de humanidade. Às vezes, nos vemos tanto neles que fugimos. E fugir é um erro. Erros são humanos. Mas desculpar-se é mais.
A dor de quem a gente ama é a nossa dor. Deveria ser. Ou não tá valendo grandes coisas nossa viagem, e já daria pra descer no próximo ponto...

A ideia contida em todas essas linhas poderia ser transmitida em menos de 140 caracteres com a frase: "Ame o outro, ame a si mesmo. Ame. Errou? Todo mundo erra. Peça desculpas sinceras. Feriu? Cure. Cure com amor". Mas acontece que eu não sou sintética. Não gosto de tornar breve o que não é. Aliás, sofro muito quando algo que não era para ser, torna-se breve. Desculpem por não escrever coisas importantes em duas linhas. Estou aprendendo a dedicar tempo ao que é realmente importante. E falar sobre amor é uma dessas coisas importantes. Sobre esse amor que dedicamos aos amigos, aos filhos, aos companheiros de vida.
Que em 2015 as coisas sejam longas. 
Que deixemos as coisas breves e partamos para o longo e vasto amor. Aquele que nos torna reticentes, demorados... Nas nossas vidas e nas vidas dos outros.Estou cansada desse mundo buscando brevidade. Ele não está nos levando para bons lugares...
Um dia a gente vai perceber que viver sem sentir – a própria dor, a dor do outro – não é viver. O que eu quero em 2015? Quero que nos demoremos uns nos outros. Que estejamos vivos. Mas de verdade mesmo.

Image may be NSFW.
Clik here to view.
Eu me chamo Antônio


Saúde bucal infantil: escovação sim. Mas e o que mais?


Image may be NSFW.
Clik here to view.
Foto: iStockphoto
Há algumas semanas, a chefe de cozinha Bela Gil causou grande polêmica nas redes sociais por ter recomendado a utilização de cúrcuma como substituto aos cremes dentais utilizados na escovação diária. Cheguei a publicar uma nota na página do blog no Facebook com minha opinião pessoal sobre o assunto, caso você queira saber.
Para além de toda a polêmica e dos ataques agressivos que Bela recebeu, o episódio poderia ter sido utilizado para discutir algo de extrema importância: a saúde bucal das crianças. Ou melhor: a saúde bucal de todos nós.
Afinal, o que é de fundamental importância na prevenção dos problemas de saúde bucal? Escovação? E o flúor, como fica? Como podemos cuidar melhor da nossa saúde e da saúde bucal das crianças? O que estamos esquecendo de mencionar?
Para falar sobre isso, convidei a odontopediatra Liziane Oliveira para nos explicar um pouco melhor de que maneira podemos e devemos cuidar dos dentinhos das crianças. Ou melhor, de que maneira podemos e devemos cuidar melhor da saúde global de todos nós, inclusive das crianças, a fim de nos protegermos de problemas bucais que poderiam ser evitados. Liziane é minha amiga pessoal e confio nela. Com o mesmo amor com que minha dentista cuida de mim quando meus dentes precisam de maior atenção, Liziane cuida dos dentinhos da Clara, minha filha, que tem 5 anos. Clara precisou de um atendimento específico no início deste ano e isso me gerou uma certa ansiedade. Pura projeção: como eu não gostava de ir ao dentista quando era criança, achei que ela também não gostaria. Pois ela foi, adorou e sempre pergunta quando vai voltar. Isso tudo porque sentiu o carinho e cuidado com que foi tratada. Agradeço desde já à querida Liziane por ter se disposto a falar sobre o assunto. Esperamos que esse texto possa auxiliá-los e às suas crianças de alguma forma.


Saúde bucal infantil: escovação sim. Mas e o que mais?
Por Liziane Oliveira - odontopediatra

Image may be NSFW.
Clik here to view.
O que vem à sua cabeça quando se fala em cuidados com os dentes das crianças? Se você pensou em escovação, vamos ter que “baixar uma atualização do sistema” e incluir mais uma palavra: ALIMENTAÇÃO. E ela deve chegar antes da primeira: ALIMENTAÇÃO e ESCOVAÇÃO. Não por uma ser mais importante que a outra, mas pela primeira determinar a dificuldade da segunda.

Escovar 3 vezes ao dia já é uma máxima internalizada no senso comum. Porém, o mais preocupante é a dificuldade de desmascarar o véu do marketing e da mídia em cima de produtos supostamente saudáveis e que na realidade são grandes “venenos” disfarçados. Alguns exemplos bem fáceis são: os cereais matinais – que de cereal tem pouquíssimo e sobra carboidrato e sacarose; o leite de soja, cuja ingestão diária pode promover desmineralizações severas do esmalte, além de conter uma quantidade absurda de açúcar; os iogurtes infantis e leites fermentados, que são os de maior paladar doce e normalmente têm mais corantes que os de adulto; rótulos que estampam “vitaminas” em bolachas recheadas que mais prejudicam que beneficiam...

Infelizmente, como no Brasil não há normatização sobre a apresentação e qualidade dos alimentos infantis, podendo ser estes, ainda, vinculados a personagens (esse assunto é bom, mas não é nosso foco agora), ainda temos que travar lutas diárias com os filhos nas gôndolas do mercado, driblando essa armadilha e os clássicos alimentos nocivos, balas, caramelos, pirulitos...

Então, quando a gente entra no assunto lanche das crianças, o que não tem erro é pensar sempre nos alimentos in natura ou minimamente processados, como frutas, cereais em grão ou flocos, fazer leite vegetal com amendoim, amêndoa, entre outras sementes e deles fazer outras receitas. E água, muita água! A lista completa desses alimentos está no Guia Alimentar da População Brasileira. Consulte-a sempre!

E para te dar uma forcinha, te dou algumas dicas muito básicas. A começar por sempre prestar atenção no que se come como hábito e não como necessidade, além de observar os seguintes pontos:

- A QUALIDADE DO ALIMENTO: quanto mais sacarose, mais processado e industrializado, maior a formação das moléculas de glicose, portanto, pior;
- A CONSISTÊNCIA: quanto mais pegajoso ou retentivo, pior;
- SOBRE OS LÍQUIDOS: cuidado com sucos disfarçados de saudáveis. Muitos possuem grande quantidade de açúcar para conservar e/ou conservantes que acidificam. Sobre refrigerantes? Fuja! Entre outros prejuízos, eles corroem o esmalte. O ideal, sempre? ÁGUA! Sempre água. Água lava, neutraliza, aumenta saliva! É ouro!

Já se perguntou por que todo profissional de saúde sabe tratar a doença, mas nem todos se saem tão bem em promover saúde? Isso me intriga... Tão importante quanto combater a doença e preparar e empoderar o paciente a fim de que ele mantenha sua saúde. No caso da saúde bucal, o desequilíbrio se dá quando a pessoa se alimenta mal e/ou quando a placa formada pelos restos alimentares e as bactérias, que é chamado de biofilme, não é bem removida ou, pelo menos, desorganizada pela higização com escova de dentes. E tão importante quanto ter qualidade na alimentação, escovar os dentes e usar fio dental: manter intervalos entre a alimentação. E isso todo mundo precisava saber, embora tão poucos sejam orientados sobre: é o processo DES-RE!
Vamos lá, acompanhem comigo:

- Nós nos alimentamos.
- As bactérias se aglomeram no esmalte com os restos do alimento e produzem ácidos.
- O pH da saliva baixa, o que significa que fica tudo mais ácido por ali.
- Como o esmalte do dente (camada superficial) é muito mineralizada, os íons positivos (Lembram? Do ensino médio? Que você achou que nunca mais fosse usar?), como o fósforo, cálcio e outros, pulam para saliva com pH negativo pra manter o equilíbrio (um processo de manutenção do equilíbrio chamado homeostase).
- O esmalte, por perder esses minerais, fica DESmineralizado.
- Cerca de 3 horas depois, o pH neutraliza por volta do valor 7 e os tais íons positivos voltam a REmineralizar o esmalte.

Pronto, tudo como antes. Isso é fisiológico, absolutamente normal e ocorre após toda e qualquer ingestão de alimento. O que faz o processo desequilibrar? Comer "beliscando". Isso faz com que mais íons positivos partam do esmalte sem que os anteriores sequer tenham retornado... E vem daí, inclusive, a fama de pessoas de terem “DENTES FRACOS”. Sabe o que é isso, na verdade? Isso se chama HÁBITO. Ou seja, é o hábito alimentar da pessoa, adulto ou criança, que a deixa mais ou menos propensa ao enfraquecimento dental... Viu que curioso? E como hábito dá pra mudar, então também dá pra mudar essa propensão.

Quando Bela Gil sugeriu o uso de cúrcuma para escovar os dentes, a publicação teve grande repercussão e grande parte dos colegas da classe odontológica a viram como negativa. A principal falha foi ter sido generalista demais. Não se pode recomendar algo desconsiderando o perfil dos hábitos alimentares dos brasileiros. De qualquer forma, foi válido pela abertura de espaço para discussões fundamentais, como sobre a real necessidade e pertinência da fluoretação dos cremes dentais e água de abastecimento e também sobre a possibilidade de manipulação de dentifrícios caseiros fitoterápicos, com as devidas orientações profissionais.

E o creme dental, onde entra no equilíbrio da saúde bucal? Como coadjuvante que facilita a retirada daquela placa de alimento e bactérias que se depositam sobre o esmalte. Se você estiver mantendo equilibrada sua saúde e a saúde das crianças, qualquer creme dental poderia ser utilizado. Claro, é preferível um que seja adstringente, levemente abrasivo e.. o que mais? Aí depende. Depende da orientação individualizada de um cirurgião-dentista, que vai avaliar se o risco pessoal ou a presença de alguma possível doença bucal, tal como cárie e/ou gengivite. Nesses casos, é possível inclusive que ele indique outros produtos que ajudem no controle da microbiota, na remineralização, no combate à inflamação, etc... A cúrcuma, mencionada por Bela Gil, é muito usada na Índia e por indígenas da Amazônia. Tem uso na medicina tradicional como antiinflamatório de mucosas e alguns trabalhos científicos a apontam com ação antimicrobiana para Streptococcus mutans, bactéria causadora da cárie. Mas tudo isso não reflete nossos hábitos diários, no contexto brasileiro. Daí ser tão sério se recomendar algo de maneira generalista. O mesmo vale para outras espécies vegetais. Isso sem falar no elemento flúor! Esse é um assunto tão complexo que daria um bom artigo só para ele, sobre seu mecanismo de ação e seus efeitos colaterais ao organismo e o balanço risco-benefício. Pensem comigo: se eu mantivesse o equilíbrio, não precisaria de elementos para auxiliar na remineralização; logo, o elemento acabaria ficando livre e não seria devidamente aproveitado. Mas, se apresento risco fruto de maus hábitos, ou se estou com problemas de saúde bucal, então sim, vou usá-lo como recurso terapêutico. Quer dizer: racionalmente falando, o ideal seria utilizá-lo pontualmente, e não indiscriminadamente. Como isso é, no presente momento, praticamente impossível no contexto de grandes populações, vem daí o uso geral.

Muitos estudos científicos sugerem que a fluoretação da água de abastecimento não tem sentido como prevenção e nem tampouco como tratamento. Quando necessário, deveria ser indicado em dose pequena e segura, de frequência diária e de forma tópica. Por isso, é recomendável creme dental com flúor quando o paciente apresenta algum tipo de atividade patológica e não consegue controlar a dieta, ou se possui outros fatores de risco que promovam, igualmente, desmineralização do esmalte (tais como refluxo, xerostomia – a famosa “boca seca” -, bulimia, entre outros).

Essas informações servem para todos.  Não vejo diferença em promover a saúde de pais, mães e cuidadores de maneira diferente da promoção da saúde das crianças. E reforço: é muito importante que mães, pais e cuidadores percebam e compreendem seu próprio processo de manutenção de saúde, mesmo que já convivam com sequelas de lesões do passado, para que consigam realmente se responsabilizar de forma consciente pela saúde bucal de suas crianças. O que serve pros pequenos, serve pros grandes!

E faço um apelo: é mais produtivo a todos que trabalhemos em conjunto, de maneira multidisciplinar e envolvendo todos os bons profissionais que têm senso crítico para enriquecer e expandir nossos conhecimentos.

Referências consultadas:

– KRAMER, P. F.; FELDENS, C. A.; ROMANO, A .R. Promoção de saúde bucal em odontopediatria: diagnóstico, prevenção e tratamento da cárie oclusal. São Paulo, Artes Médicas, 1997, 144p.
Hwang JK1, Shim JS, Baek NI, Pyun YR,Xanthorrhizol: a potential antibacterial agent from Curcuma xanthorrhiza against Streptococcus mutans. Planta Med. 2000 Mar;66(2):196-7.
Célia Regina Lulo Galitesi - As Mil e Uma faces do Dente – Editora Antroposófica, São Paulo, 2001 


Quando pedi à Liziane que se apresentasse aos leitores do Cientista Que Virou Mãe, ela respondeu:
“Sou mãe antes de qualquer outro papel. Depois sou dentista odontopediatra, profissional da e para a saúde, sou corredora, cozinheira, entre outros prazeres. Nascida em Pelotas, no Rio Grande do Sul e renascida em Florianópolis, Santa Catarina”.



Quando você olha para o bem, o bem olha para você



"As coisas pioraram muito. Não há mais respeito, não há tolerância, os direitos humanos são cada vez mais desrespeitados. As pessoas se odeiam, se atacam. Antes não era assim. As pessoas não se ajudam mais. Ninguém quer mais saber de ninguém. Está tudo piorando".

Muita gente compartilha deste pensamento e desta sensação. Sim, eu sei que temos motivo para achar isso. Mas o que eu quero dizer hoje é: amigos, isso não é verdade. O que nos dá a falsa sensação de que tudo está muito pior, que está catastrófico, que as pessoas se odeiam e ninguém mais se preocupa com o outro é o fato de termos hoje duas coisas fundamentais: liberdade e acesso à circulação de nossas vozes
Hoje as pessoas se sentem confortáveis para dar sua opinião - seja lá qual for ela. E sentir-se confortável para opinar é uma forma importante de liberdade, de ser e sentir-se livre. Toda essa manifestação de ódio que presenciamos todos os dias, as descobertas de tantos casos de corrupção, as manifestações de intolerância de todos os tipos, a discussão sobre o poder da indústria sobre nossas vidas, nossos filhos e nossa saúde nos dão a falsa sensação de que o apocalipse zumbi é aqui e é agora. Mas a única diferença entre antes e agora é que agora estamos falando sobre... E nossa fala, enquanto coletivo, está repercutindo. O ódio sempre existiu, a intolerância idem, corrupção e influência mercadológica muito mais. A questão é que a descentralização da circulação da informação e a relativa (muito, muito relativa) liberdade na qual estamos vivendo, onde todos se sentem confortáveis para dizer o que pensam, escancarou tudo. 

Image may be NSFW.
Clik here to view.
Sei que é horrível viver no meio dessa animosidade generalizada que nos dá a sensação de estarmos chafurdando na lama. Mas olha, não sei você, mas eu prefiro saber quem são as pessoas ao meu redor. Prefiro saber que meu vizinho é homofóbico, é reacionário, é tudo aquilo com o qual não compactuo, mesmo que aquilo que ele diz e defende me agrida ou me ofenda. Prefiro saber que a pessoa que se diz defensora da sororidade se sente confortável para chamar a outra de idiota. Prefiro saber que a escola que se diz inclusiva é sexista. Prefiro saber que o candidato a quem dei um voto de confiança me traiu. Prefiro saber. Quero saber. Porque é sabendo que posso escolher estar com ele ou me afastar. E isso não é nada menos que aquilo que defendo: escolha informada. Sabendo dos ódios das pessoas sabemos onde podemos atuar, onde todos precisamos trabalhar, quais são os pontos de crise, de quebra, onde estamos falhando como humanos, o que precisa mudar. Mas o fato dessas pessoas se sentirem confortáveis para espalhar seu ódio mesquinho, ou de esquemas corruptos serem evidenciados, ou de termos todos os dias notícias desanimadoras não significa que estejamos em desabalada carreira morro abaixo. Há, todos os dias, muita gente trabalhando para a mudança. E trabalhando duro. E cada vez mais gente. A ponto de iniciativas organizadas surgirem exponencialmente. A ponto de que as boas ideias que a humanidade sempre teve - e SEMPRE teve - finalmente encontrem terreno arado e fértil para vingar. Capra, em seu livro "O Ponto de Mutação" nos lembra de algo muito sério: os orientais usam a palavra CRISE para significar duas coisas simultâneas: dificuldade e oportunidade de mudança. E diz também que em todos os momentos históricos, as grandes crises precederam transformações culturais, mostrando que transformações positivas são tipicamente precedidas por uma variedade de indicadores sociais, muitos deles idênticos aos sintomas de nossa crise atual.

É também por isso (mas não só) que creio e sinto estarmos em pleno momento de mudança positiva. Se há terreno confortável para a manifestação dos ódios, também há para que boas ideias e ações transformadoras surjam, sejam valorizadas, reconhecidas, aceitas, fortalecidas, apoiadas pela coletividade. Cada vez mais gente está empreendendo tendo o bem estar coletivo como meta. Tendo o problema do outro como alvo a ser solucionado. Tendo a dor do vizinho como motivação para saná-la. Mais do que os que se sentem confortáveis para gerar rancor e mesquinhez, nós estamos nos sentindo confortáveis para trabalhar efetivamente pelo que ajuda, apoia, fortalece, protege. Há muita gente trabalhando por nós. Pela minha dor. Pela sua dor. Por dores invisibilizadas. Por gente que não aparece, que não tem voz. Essas pessoas não são notícia com frequência, porque o que vende é a notícia ruim e a polêmica. Mas não deixam de existir.

Há dois meses tive a mais completa dádiva de ser selecionada, junto com o nosso Cientista Que Virou Mãe e sua equipe, para ser labber de uma iniciativa chamada Social Good Brasil (SGB). Você pode conhecer mais sobre o SGB visitando seu site. Ser uma labber SGB significa, em linhas gerais: 
eu tenho uma iniciativa >>> que vem ajudando, apoiando e fortalecendo pessoas >>> que é reconhecida como estratégica em função da área em atua (mulheres, empoderamento social e infância) >>>  que precisa se tornar sustentável financeiramente >>> para que não deixe de existir >>> para que se amplie >>> para que alcance e ajude ainda mais pessoas >>> e por isso estou passando por aprendizados intensos >>> mediados por grandes especialistas na área do empreendedorismo social. 
Image may be NSFW.
Clik here to view.

Mais que isso: significa que não estamos sozinhas nessa. Que esse sonho idealista de trabalhar para ajudar pessoas e mudar um paradigma, nas mais diversas áreas, é compartilhado por muita gente, de todos os cantos deste país. O Cientista Que Virou Mãeé labber Social Good Brasil 2015 porque queremos que a informação que chega até mulheres, mães e demais cuidadores da infância e que nos orienta em nossas decisões possa ser produzida por quem entende do assunto, que sabe onde dói, que conhece nossa realidade e que a despeito de tudo isso tem sido marginalizada de todas as formas: mulheres mães. E com as grandes corporações fora disso. Mas somos apenas uma iniciativa... Uma em um oceano de coisas lindas. De gente especial. São, hoje, 47 iniciativas de todos os cantos do Brasil, que estão atacando problemas sociais e ambientais de todos os tipos. Nos últimos três dias, estivemos em mais um processo de imersão para o aprendizado. Foram quase 100 pessoas reunidas em 72 horas de trabalho dedicado, intensivo, de trocas, construções, desconstruções e reconstruções, pautados pela mais profunda empatia. Suamos. Choramos. Trabalhamos enlouquecidamente com todo amor e dedicação que há em nós. Tudo para que nossas ideias se tornem reais e concretas. 47 iniciativas de todo o Brasil e não há como dizer qual a mais relevante, simplesmente não há. Porque não partimos de uma perspectiva vertical. Partimos de uma horizontalidade e de um novo paradigma que fortalece a abundância, e não a escassez. Somos todos importantes. Somos todos fundamentais. 

Então hoje, com todo amor e pautada pelo mais sincero sentimento gregário, quero que vocês, que conhecem e acompanham o Cientista Que Virou Mãe em nossa caminhada conjunta, possam conhecer 5 dessas iniciativas que, de alguma forma, me emocionaram muito. Seja pelo tema com que trabalham, seja pela interação que tive com seus idealizadores, seja porque eu também me envolvo com suas áreas de atuação. O que eu quero com isso? Quero que vejam como tem gente trabalhando com coisa importante. Como tem gente que está dedicando suas vidas à mudança positiva. Como tem gente que não compactua com o ódio, a corrupção, a escassez, a competição. E olha para o outro e quer mudar uma realidade. Conheçam esse pessoal, suas iniciativas, apoiem-nos, fortaleçam-nos. É no coletivo que mudamos. Se não mudamos como coletivo, então não mudamos.



TERAPIA COLETIVA (Florianópolis - SC)


Image may be NSFW.
Clik here to view.
Tem histórias que nos interessam, outras nos tocam e algumas nos movem. Um estupro à luz do dia, no Parque da Redenção, em Porto Alegre, nos moveu. Depois vieram outros estupros, noticiados nas capas de jornais e pela internet. Alguns comentam, muitos calam. A pergunta que não se cala é: e agora? o que vem depois? Como essas vítimas continuarão suas vidas? Quem irá acolhê-las? Quem vai abraçar? Foi pensando nisso que surgiu a Terapia Coletiva, uma iniciativa que busca formar uma rede de experiências, um espaço colaborativo de acolhimento onde pessoas possam ajudar a ajudar pessoas. A terapia é um processo de cura, então uma simples mensagem de carinho pode ter efeito terapêutico. Queremos ajudar vítimas de violência sexual a ressignificarem suas histórias, se você também quiser, junte-se a nós! 



NUVEM (Palmas - TO)


O Núcleo de Vivências Ecopedagócias (NUVEM) é um sistema de aprendizagem aplicável em qualquer espaço escolar. Possibilita ao educador priorizar a mediação entre a curiosidade e a descoberta, reorientando aulas, projetos ou todo o currículo. Esta iniciativa foi co-inspirada por pensadores e ativistas amazônicas para mediar experiências respeitosas com situações complexas de interesse do educando, apoiando-se em saberes da família e comunidade, de forma simplificada e direta. "Dos conflitos entre o desejo de saber e a energia gasta pela escola para cortar nossos galhos, fazer-nos iguais, sobrou um monte de gente que, por sobreviver, consideram o único caminho possível. Basta uma reflexão de travesseiro para constatar o fato de que poderíamos fazer tanto mais se fôssemos envolvidos. Porque o que melhor aprendemos, fizemos em viver a experiência, com quem se credencia pela vida como inovador. Nossas mães e avós, por exemplo, que se viraram para que tivéssemos mais oportunidades de felicidade... Ou o povo resiliente que é maioria em nosso continente e sorri".


SOCIAL BRASILIS (Fortaleza - CE)

Vivemos em uma sociedade onde pessoas vivem sedentas de conhecer sua própria história e a  história do seu local de origem. Dessa forma, não reconhecem seus próprios sonhos e seu poder de ação para a transformação de sua realidade. Não existe uma fonte de informações ao alcance do conhecimento capaz de fomentar essa carência e por isso ideias/sonhos de jovens e líderes sociais são deixados de lado sem se transformarem em realidade, sem contribuir com o empoderamento desses.
Através do conhecimento de sua história e lugar, um conhecimento nasce, que pode ser compartilhado, virar negócio, gerar renda e transformar realidades. Para isso, é necessário democratizar o conhecimento em tecnologias sociais, construção de projetos,no empreendedorismo social principalmente no Norte e Nordeste brasileiro.Assim esse  portal eletrônico surgiu se propondo a ser um "Hub" para a transformação social usando como ferramentas histórias de vida, a formação e o empreendedorismo social, onde a informação sobre empreendimentos de empreendedores brasileiros sejam divulgados contribuindo com ferramentas capazes de empoderar jovens,junto a um guia de cursos e formações destinadas a professores, estudantes e jovens que buscam criar, complementar e construir projetos em suas comunidades e escolas fomentando um processo empreendedor em rede que leve a impactar realidades em todo o Brasil.

contato@socialbrasilis.com


MULTIPLICA LUZ (Campinas - SP)

Image may be NSFW.
Clik here to view.
EMPATIA, ela é o coração de nossa iniciativa. Neurocientistas afirmam que 98% de nós temos habilidades de praticá-la, mas infelizmente poucos conseguem atingir todo seu potencial empático. Nós acreditamos que a empatia é uma poderosa ferramenta para a mudança social. Nossa ideia consiste em criar uma plataforma onde diferentes grupos formarão uma rede e, assim, realizaremos o que chamamos de "Encontros de Empatia" ao conectar diferentes organizações. Com o poder da multiplicação de conhecimento, podemos exercer o uso da empatia e do não-julgamento ao próximo. Queremos possibilitar que diferentes grupos, com diferentes dificuldades e realidades se conheçam. Como conectar grupos de empresas com crianças cegas; grupos de deficientes físicos com crianças que vivem em comunidades; crianças de escolas particulares com grupos de idosos. E assim, acreditamos que ao proporcionarmos encontros que favoreçam a diversidade humana, mais estimulamos a empatia e a inclusão social. 
Multiplica Luz - Conectamos diferenças porque acreditamos na igualdade!
Para saber mais: luznavila@gmail.com


Image may be NSFW.
Clik here to view.
IMAGINÁRIO COLETIVO (Belo Horizonte - MG)

Imaginário Coletivo é um projeto de educação que forma jovens fotógrafos em aglomerados de Belo Horizonte, através da realização de cursos de fotografia, com metodologia voltada para a construção da identidade desses cidadãos, que ganham voz e empoderamento, tornando-se protagonistas de sua própria vida e difusores de sua cultura. No projeto, jovens refletem sobre suas experiências de vida, no contexto sócio-cultural em que vivem, fortalecendo sua identidade, de suas famílias e da comunidade.





"Você pode, você é capaz, eu acredito em você" - quando o incentivo de uma mãe ajuda uma moça a mudar a realidade


No último texto que publiquei aqui, "Quando você olha para o bem, o bem olha para você", contei que eu, o Cientista Que Virou Mãe e nossa equipe estamos participando do Social Good Brasil Lab 2015, um laboratório que funciona como um acelerador e apoiador de iniciativas que, de alguma forma, levam apoio e fortalecimento às pessoas para ajudar a resolver problemas sociais e ambientais. Fomos selecionadas porque as diferentes entidades que compõem o Social Good Brasil nos reconheceram como ferramentas de empoderamento social feminino, materno e infantil, por meio da produção e divulgação de boa informação, isenta do conflito de interesse mercadológico que nos vende - nós, mãe e crianças - como produtos. Estamos aprendendo muito como iniciativa e empreendimento social. Estamos tendo acesso a metodologias que têm o ser humano como centro, como foco, que prioriza os valores humanos e o trabalho em rede, dentro do paradigma da abundância, onde todos somos importantes, necessários e conectados. Mas de tudo o que podemos acessar neste laboratório, há para mim algo de valor inestimável. Que tem me trazido inspiração e ainda mais motivação. Que tem me movido para frente, ajudado a enfrentar as incertezas e a reformular meus objetivos: as histórias das pessoas que também fazem parte da edição 2015 do SGB Lab. Suas histórias de vida e a história do surgimento de suas iniciativas. 

Uma delas me mobilizou em especial. Somos em quase 100 pessoas participando, em 47 iniciativas do Brasil inteiro. Obviamente não conhecíamos a todos. Então na noite do último sábado, 08 de agosto, sentados na areia da praia em frente ao hotel onde ficamos hospedados para nossa segunda imersão de 3 dias, fizemos pequenas rodas de conversa para que pudéssemos nos conhecer. Cada um de nós contou de onde vinha, o que o levava até ali, seus principais sonhos, as principais dores que viveram, os principais desafios e respondemos à pergunta: "Quem te inspira?". Eu ouvia atentamente a cada história, cada depoimento. Me emocionava, me fortalecia, me inspirava, sentia que havia muito de mim em cada um deles e muito de cada um deles em mim - talvez seja isso que nos une como humanos: o reconhecimento de nossas semelhanças a despeito de nossas diferenças. Então, eis que uma moça tranquila, simpática, de fala pausada começa a contar sua história, dizendo que começara a se envolver com as questões sociais aos 4 anos, juntando papéis de bala em sua cidade no sertão do Ceará. E em meio a toda sua história incrível, inspiradora, maravilhosa, eis que eu ouço a frase:
"Quem me inspira? Minha mãe. Que sempre me apoiou. Que sempre esteve ao meu lado. Que sempre acreditou em mim. E me fortalece, e me diz coisas boas, e me faz acreditar que é possível".
Image may be NSFW.
Clik here to view.
Bem... Aquilo me atingiu em cheio. Estava ali, à minha frente, uma moça que se tornou o que se tornou, mudando a realidade de sua comunidade, ajudando as mulheres de sua região a se sentirem mais valorizadas, principalmente porque se sentia fortalecida e apoiada por sua mãe e por tudo de bom que ela lhe havia transmitido.

Seu nome é Emanuelly Ferreira de Oliveira, a Manú. Filha da dona Lourdes, que mora em Quixadá, sertão do Ceará. Eu conheci Manú e seu parceiro do Social Brasilis - a iniciativa que criaram -, o Jhonatam, outra pessoa incrível, cheia de alegria e espírito de solidariedade (embora não saiba fazer fogueira na praia, kkkkk ), e me solidarizei muito com eles. Daqui a pouco menos de 2 semanas, Manú e Jhonatam precisam voltar a Florianópolis para continuar a participar da imersão do Social Good Brasil Lab. Imaginem o que é financeiramente vir do Ceará pra cá duas vezes em um mesmo mês... Um dos dois teria que ficar de fora. Eu não aceito isso não. Se eu não fosse uma aluna de doutorado, recebendo sua última bolsa, mantendo financeiramente sozinha uma filha de 5 anos, pagaria eu mesma, do meu bolso, os R$ 1.500,00 que eles precisam para vir e voltar. Eu não tenho como fazer isso. Mas acredito no poder DA REDE. Desta rede que criamos com base em amor, parceria, solidariedade e no mais genuíno sentimento de coletivo. Então é isso que vim pedir. Vim pedir que nos ajudem a arrecadar o dinheiro que eles precisam para virem, os dois, e continuarem a participar do laboratório. O próximo encontro é o mais estratégico, pois é dali que muitas soluções serão criadas para dar continuidade aos nossos projetos. POR FAVOR, NOS AJUDEM A TRAZER A MANÚ E O JHONATAM. 

Aqui está o link para a coleta solidária. Ofereça o que você puder. Se você não tiver como nos ajudar financeiramente mas tiver milhas, aceitamos também, é só entrar em contato. Para incentivá-los ainda mais (como se uma história dessa já não fosse suficiente), vou oferecer uma recompensa: se você contribuir, vai concorrer ao livro que escrevi com Andreia Mortensen, o "Educar sem violência - Criando filhos sem palmadas". 

Mas eu sei: eu contando essa história é uma coisa. A Manú contando é outra. Então convido vocês a lê-la e ouvi-la. Abaixo, ela conta sua história de vida. E no fim, você pode conhecê-los em vídeo e à iniciativa deles.

CONFIO NA REDE. CONFIO NO COLETIVO. CONFIO NA FORÇA QUE MOVE BOAS COISAS PARA A FRENTE.


"VOCÊ PODE, VOCÊ É CAPAZ, EU ACREDITO EM VOCÊ"
Por Emanuelly Ferreira de Oliveira

Tudo começou, meio que sem saber, com uma coleção de papéis de bala, isso mesmo papeis de bala. Aos quatro anos eu exibia com orgulho minha distinta coleção. Era uma caixa enorme repleta de papeis de bala que eu guardava com carinho para que eles não pudessem ser abandonados pelo mundo, pois nunca se acabariam. Não satisfeita, iniciei em paralelo minha coleção de frascos vazios, com o mesmo propósito: não abandoná-los. Assim, criei aos quatro anos uma verdadeira rede de captação entre meus vizinhos de papeis de bala e frascos vazios para o pesar de minha mãe e contentamento de minhas irmãs, tempos depois, descobri que isso foi, na verdade, meus primeiros passos como ativista social.
Aos sete anos eu sonhava em viajar o mundo, tinha conversas com minha mãe sobre como isso poderia acontecer, pois eu queria contribuir com o mundo ao mesmo tempo. Minha mãe ouvia em silêncio e dizia: tudo se realizará.
Aos nove anos, iniciei meu ativismo de fato com um projeto nas periferias da minha cidade, Quixadá, sertão cearense, para convivência com o semiárido. Mesmo tão jovem percebia o que os meus passavam pela falta de uma convivência pacifica com algo que nos era tão comum: a caatinga. Ensinei famílias, crianças a conhecer um pouco mais de sua história através de seu próprio lugar.
Aos quinze anos já era uma apaixonada pelo mundo social, por tudo que podia saber desse universo, mas tudo era tão longe, tão distante, tão inviável para mim. Soube da vinda de uma das maiores organizações sociais do mundo para o Brasil e quis participar de uma seletiva para participar da seletiva a ser realizada em Fortaleza, capital do estado. Me esforcei tanto, sentia que era a minha chance, mas acabei não ficando entre os dez escolhidos e achei que fosse quase o fim de tudo, tinha perdido a oportunidade da minha vida. Até alguém me liga avisando que uma das equipes havia desistido e eu iria ocupar o lugar. Fiz um plano de ação às pressas, uma apresentação simples e corrida e fui. Na hora da banca, descubro que um erro de digitação no orçamento diminuíra em R$ 1.000,00 meu financiamento e como eu faria um projeto de multiculturalismo na educação com apenas R$ 495,00? Essa foi a pergunta da banca para mim e eu surpresa, enrolada, falei que tudo o que tinha aprendido desse meio é que era preciso saber captar recurso. Voltei para o interior com R$495,00 e querendo saber como captar o resto...
Em minha casa, sentada com minha mãe, uma freira me esperava. Ela estava ali querendo me conhecer para me fazer uma grande proposta: me oferecer uma casa com maquinários e uma comunidade para a continuação de trabalhos sociais. Não acreditei, mas topei na hora, uma coisa daquelas, em pleno desespero, só podia ser coisa divina mesmo... Iniciei os trabalhos na casa com a comunidade, com os R$495,00 eu comprei matéria prima para a primeira cooperativa de mulheres para confecção de biobijuterias com sementes do semiárido, onde era possível conhecer a história do local e ao mesmo tempo gerar renda. Triplicamos o financiamento e passei a ser um case para outros jovens que gostariam de iniciar suas jornadas empreendedoras. Viajei o mundo, fui para diversos países relatando minha história, tal como dizia em conversa com minha mãe na infância, queria ir para o mundo e fui. Ela esteve muito presente nisso, nunca disse que eu não podia, nunca disse que eu não poderia.
Em 2012 sofri enormes perdas desde da morte de um cunhado até o falecimento de meu pai, aí tive que assumir seu lugar até as coisas se assentarem. Fui tomada de uma tristeza profunda, algo em mim tinha morrido, não tinha mais luz e nem cores. O social para mim tinha ido embora. Comecei a trabalhar nos bastidores, ajudando a outras pessoas a alavancarem seus sonhos através de minha experiência, até que um dia, um grupo de professores me trouxeram de volta a vida. Trabalhar com o social é ser inspiração para que outros possam se sentir livres, abertos e felizes para fazer acontecere nunca estava comigo essa função de inspirar ninguém com minha história que considerava banal demais, normal demais, sempre achei que nunca conseguiria fazer as pessoas se sentirem inspiradas a continuar suas jornadas de vida com um pouco mais de luz, até o dia que fiquei sozinha, em meio a uma formação para professores, onde eu teria/devia fazer essa parte. Tive medo, dúvidas, até que deixei sair espontaneamente minha história, as conversas com minha mãe, os desafios superados, os pequenos milagres, as perdas irreparáveis. Vi uma plateia atônita à minha frente, professores com lágrimas nos olhos, ansiosos para saber o próximo acontecimento. Ali percebi que precisava voltar a vida, minha luz precisava está acessa para acender a do próximo, a “ser” o exercício que tanto ouvi na infância: “Você pode, você é capaz, eu acredito em você. Essas foram as palavras de mãe por anos e anos depois daquela coleção de papeis de bala aos quatro anos, ela hoje fala: Não é que você realizou tudo aquilo que gostaria, realizou seu sonho, contribuiu para o de outros, contribuiu para o milagre que faz a vida acontecer, as pessoas e suas histórias.
Após aquela formação para professores no Cariri cearense, o Social Brasilis surgiu com uma proposta de levar conhecimento e informação para onde e para quem as luzes do mundo ainda não conseguem chegar.


Geraldo Alckmin e a violação dos direitos de mães funcionárias públicas



Todo mundo sabe que a sociedade ainda caminha a passos lentos no reconhecimento dos direitos das mulheres. Todo mundo sabe que existe uma séria iniquidade no acesso da mulher ao mercado de trabalho, marcado por desigualdades salariais, por serem vistas como indivíduos com menor capacidade intelectual, por serem preteridas. Todo mundo sabe que o mercado de trabalho vê a mulher como um "investimento arriscado", em função de sua capacidade biológica de gerar filhos. Sem qualquer tipo de exagero, mulheres no mercado de trabalho são encaradas como "bombas relógios", prestes a explodir (engravidar) a qualquer momento. Todo mundo sabe que é assim que as mulheres, todas elas, são vistas: como receptáculos em potencial, meros corpos com finalidade utilitária.
Quando estas mulheres se tornam mães, a situação fica ainda mais desigual, ainda mais séria. Exige-se que aquela profissional se dedique de maneira idêntica à sua situação anterior, antes da chegada dos filhos, ignorando a real e urgente necessidade de adaptações. O mercado passa a vê-la como profissionalmente menos disponível. E realmente somos. E parece bastante simples entender o motivo, não? Sim, ainda somos os principais cuidadores dos filhos que não são só nossos. Ainda somos nós as principais responsáveis por levá-los ao colégio, por preparar o lanche, por cuidar de suas roupas, cortar suas unhas, procurar possíveis piolhos que vêm da interação com outras crianças, velar a febre noturna, selecionar um bom pediatra, cuidar da qualidade da alimentação e manter uma rotina de sono minimamente razoável. Agendar o dentista, cortar o cabelo, cuidar do probleminha dermatológico, zelar pela boa qualidade das companhias, providenciar um quarto confortável, aconchegante e limpo, com roupa de cama e banho idem. Ainda somos as principais responsáveis por zelar por sua saúde emocional e entender de psicologia infantil a fim de poupá-los de traumas, experiências desagradáveis e coisas afins. Ainda somos as principais estrategistas no quesito "preparar as crianças para as mudanças de vida". Sim, todo mundo sabe que ainda somos as principais responsáveis por tudo isso. Pais realmente participativos, que não veem as crianças como simples ornamentos a acompanhá-los em seus próprios compromissos, como se acessórios fossem, ainda são muito raros, representam uma diminutíssima parcela, e ainda é muito incipiente o movimento de homens pais em busca de verdadeira participação e disponibilidade - física, material, emocional, afetiva.
Mulheres mães ainda são impedidas de participar de eventos acadêmicos. Mulheres mães ainda são impedidas de amamentar em lugares públicos. Mulheres mães ainda sofrem discriminação em lugares como cinemas, restaurantes, cafés e outros lugares ditos "do mundo adulto", onde adultos se julgam no direito de não encontrar crianças. Mulheres mães ainda são apontadas por um braço do próprio movimento feminista, que as julga como subalternas ou inferiorizadas pela condição da maternidade.

Todo mundo sabe disso. Se não sabe, deveria saber, e olhar para de fato ver.
Que a sociedade, de mentalidade ainda muito tacanha, machista e preconceituosa, trate, de maneira geral, as mães dessa maneira predatória, pode até ser historicamente compreensível - eu não acho que seja, mas tem gente que acha. Agora, que o Estado promova, defenda e legitime práticas que excluem as mães do justo e equitativo acesso ao mercado, ou as prejudique, ou tente mantê-las em situação de defasagem, exclusão e desigualdade, aí é inaceitável. Inaceitável. Indignante. Revoltante. E passível de denúncia por promoção da violência. Contra a mulher. Contra as mães.
E isso está acontecendo. No Estado de São Paulo. Comandado pelo governador Geraldo Alckmin.

No final do mês de janeiro deste ano, o governador Geraldo Alckmin moveu uma ação chamada de Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal contra a lei que regulamenta a licença maternidade das funcionárias públicas no período de estágio probatório. Vou explicar melhor. Todo funcionário público empossado precisa passar por um período de estágio probatório de 3 anos. No caso da mulher funcionária pública que engravida, e que tem direito à licença maternidade garantida por lei com duração de 6 meses, Alckmin quer que essa licença NÃO seja incluída no período de estágio probatório. Ou seja: a mulher mãe precisaria passar por um estágio probatório de 3 anos e 6 meses.

Você consegue enxergar o problema, ou os muitos problemas disso?

1) Ter que repor os 6 meses de licença maternidade garantida por lei atrasa a carreira da mulher que se torna mãe.
2) Mulheres que não se tornam mães durante o estágio probatório serão efetivadas MAIS RAPIDAMENTE (6 meses antes) que as que se tornam mães.
3) Essa é uma ação claramente contrária aos interesses das mulheres mães.
4) É uma ação claramente contrária à proteção da maternidade conferida por nossa Constituição Federal
5) Essa ação PENALIZA mulheres pelo fato de terem ficado grávidas.
6) Essa ação é claramente DISCRIMINATÓRIA e, assim, VIOLA os direitos humanos das mulheres que se tornam mães.
7) Essa ação fere tratados internacionais assinados também pelo Brasil que garantem que nenhum tipo de discriminação seja aplicada contra as mulheres. Fere e descumpre especialmente a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, uma lei internacional que se baseia no compromisso dos Estados signatários de promover e assegurar a igualdade entre homens e mulheres e de eliminar todos os tipos de discriminação contra a mulher.
8) Essa ação tenta DESESTIMULAR as mulheres servidoras públicas a terem filhos. E, assim, age no sentido de controlar a vida pessoal dessas mulheres.
9) Essa ação legitima a quebra da isonomia entre servidores e servidoras públicas, desfavorecendo as mulheres.

Um adendo de extrema importância: embora Geraldo Alckmin esteja entrando agora com a Ação Direta de Inconstitucionalidade, para regulamentar uma violação aos direitos das mães e negar-lhes a inclusão da licença maternidade no estágio probatório, ele não está querendo fazer isso NO FUTURO. Ele já está fazendo AGORA. Isso já está em prática. E agora, choque-se: embora a licença maternidade não esteja sendo contada no prazo do estágio probatório, a licença paternidade está! Que nome se pode dar a isso?

O movimento em defesa dos direitos das mulheres, especialmente o movimento que agrega mulheres MÃES, há bastante tempo deixou de ser visto como um aglomerado de mulheres sem voz ativa para ser visto e respeitado como um movimento organizado, articulado, ativo, atuante e que vem promovendo inúmeras mudanças positivas para a realidade das mulheres que se tornam mães. A luta pela humanização do parto e contra a violência obstétrica é um exemplo. O movimento de mulheres mães brasileiras, a despeito de toda a força no sentido de torná-las seres fragilizados, não vai se calar diante de uma ação claramente discriminatória como essa. Já não se calou.

A Artemis - associação sem fins lucrativos que atua como aceleradora social com vistas à igualdade de gênero, à promoção da autonomia feminina e à erradicação de todas as formas de violência contra a mulher - criada e gerida por mães em defesa também dos direitos de mães, entrou na tarde desta sexta-feira, dia 06 de fevereiro, como AMICUS CURIAE na ação promovida pelo governador paulista Geraldo Alckmin. Entrar como AMICUS CURIAE significa entrar como um "Amigo da Corte" em uma ação em que ele não é parte afetada, mas que ainda assim possui interesse na resolução da questão. É como se fosse um "Amigo do Juiz", agindo no sentido de mostrar a ele um lado importante que está sendo desconsiderado. AMICUS CURIAE é, ainda, uma figura nova no Brasil, sendo muito pouco utilizado. Mas representa o pleno exercício da defesa de direitos que podem estar sendo negados.
A Artemis acaba de fazer uma DENÚNCIA sobre essa ação predatória que o governo paulista está tentando promover contra mulheres mães. A denúncia foi também encaminhada para a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, para a deputada Jô Moraes, deputado Ivan Valente, deputada Luiza Erundina, deputada Ideli Salvatti, para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e para a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.

Cada uma dessas instituições e representações políticas recebeu a denúncia acompanhada da carta abaixo.  A denúncia encaminhada pela Artemis, na íntegra, segue abaixo para conhecimento.

O movimento de mulheres mães encontra-se, atualmente, organizado, atuante, ativo, alerta, pronto para defender a nós mesmas, aos nossos interesses e aos interesses de nossos filhos. Tentativas de anulação ou subjugação de nossos direitos não passarão.
Não somos um grupo frágil. Ainda que se queira, de diferentes maneiras, pintar-nos com a tinta da fragilidade. Estamos atentas e estamos em luta. Junto com nossos filhos.


CARTA DE ENCAMINHAMENTO DA DENÚNCIA

Excelentíssima Senhora Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República Federativa do Brasil, Eleonora Menicucci

 A Associação Artemis, no uso de suas atribuições estatutárias, vem expor o que segue e requer a intervenção de Vossa Excelência para obstar situação que configura violação de direitos humanos e de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, perpetrada através de conduta discriminatória, pelo Governo do Estado de São Paulo, às mulheres servidoras que se tornam mães durante o estágio probatório.

Artemis é uma associação, sem fins lucrativos, que atua como aceleradora social com vistas à igualdade de gênero, realizando projetos que promovam a autonomia feminina e a erradicação de todas as formas de violência contra a mulher.

O trabalho desta Organização é pautado na comunicação, informação, dedicação e articulação sobre as necessárias mudanças para que o coletivo feminino brasileiro adquira, gradativamente, uma imagem mais positiva e uma identidade cada vez mais livre, verdadeira, digna e justa, contribuindo, assim, para a construção de um cenário futuro promissor à toda a sociedade.

As nossas ações são de âmbito nacional e voltadas ao atendimento à mulher, através de influência e incidência em políticas públicas, participação no seu controle social e a criação e divulgação de novas tecnologias sociais.

Matéria veiculada no Jornal “O Estado de São Paulo”, de 28 de janeiro de 2015, informa que o Governador do Estado, Geraldo Alckmin, move uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, questionando a inclusão de licença maternidade em estágio probatório de funcionárias públicas. A ação tem por objetivo ver declarada a inconstitucionalidade de dispositivo de Lei Complementar Estadual nº 1.199/2013, para que assim, ao retornar da licença maternidade, a funcionária pública seja obrigada a repor os 6 (seis) meses do estágio probatório.

Após a veiculação da matéria, esta Associação foi procurada por mulheres que, em estágio probatório no Estado de São Paulo, foram penalizadas com o desconto do período gozado da licença maternidade – o que está ocorrendo desde o ano de 2010 – causando-lhes atraso na carreira e perda financeira em relação às colegas que não se tornaram mães e a colegas homens do mesmo concurso.

O Departamento de Recursos Humanos do Estado de São Paulo tem aplicado o desconto do período usufruído de licença maternidade pela servidora, na contagem do tempo de serviço prestado no estágio probatório, para fins de avaliação de desempenho, penalizando a mulher que se torna mãe durante o estágio, ferindo o disposto na Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (“CEDAW”) e praticando verdadeiro controle de natalidade das servidoras públicas estaduais.

A discriminação contra a mulher que é mãe, praticada pelo Governo do Estado de São Paulo, é uma afronta a tratados internacionais ratificados pelo Brasil, e é violência contra a mulher, que precisa ser prevenida e erradicada.

Assim, rogamos a Vossa Excelência, como Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, como guerreira e como mulher, para que adote todas as medidas cabíveis e necessárias para coibir as violações aos direitos humanos aqui relatadas, garantindo o direito de proteção à maternidade das servidoras paulistas em estágio probatório, sem discriminação e penalidades em razão de sua condição feminina, bem como, a realização de uma AUDIÊNCIA PÚBLICA para a discussão urgente da questão da DISCRIMINAÇÃO DA MULHER EM RAZÃO DA MATERNIDADE NO AMBIENTE DE TRABALHO.

No aguardo de vossa imediata intervenção, apresentamos a Vossa Excelência nossos propósitos de admiração e respeito, e nos colocamos à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários.

 Atenciosamente,

Associação Artemis


Ana Lúcia Keunecke
Diretora Jurídica e de Negócios

CONTATOS DA ASSOCIAÇÃO ARTEMIS:

Raquel Marques, presidência: raquel@artemis.org.br
Ana Keunecke, diretora jurídica: analucia@artemis.org.br
Valeria Sousa, legal advocacy, valeria@artemis.org.br




























"Não queria ser mãe? Agora aguenta!"


Há mulheres que engravidam depois de muito planejar. Há mulheres que engravidam sem nenhum
planejamento. Há mulheres que engravidam sem sequer terem pensado em ser mães um dia. Há mulheres que engravidam depois de muitos anos desejando um filho. Há mulheres que se tornam mães sem engravidar. Há mulheres que ainda estão esperando - a gravidez, o nascimento, a chegada. Todas essas mulheres, sem exceção, passarão ou já passaram por profundos momentos de mudança quando da chegada do filho. Radicais momentos de mudança. Uma mudança que atinge todos os domínios de nossas vidas. Emocional. De disponibilidade. Logística. Profissional. Para algumas, mudanças de valores. Para outras, de carreira. Para outras ainda, de olhar sobre a vida. Para tantas, todas essas mudanças juntas. No tempo de sono. Na divisão do tempo das tarefas diárias. De ressignificação de si mesma no mundo. De reformulação da rotina. Do círculo de amizades. De hábitos alimentares. E tantas outras... E, sim, tudo isso gera angústia.
E como se isso fosse pouca coisa, ainda precisam enfrentar algo extremamente cruel: o confronto e constrangimento que parte de algumas mulheres que já são mães e que já passaram por situações que as que estão esperando ainda irão passar. Mulheres que nutrem e propagam uma visão ácida, áspera e, sobretudo, não empática da maternidade. E que justamente num dos momentos de maior vulnerabilidade e insegurança, disparam contra outras mulheres frases duras como essas:
"Aproveita agora, porque depois acabou sua vida".
"Espera pra ver... Aproveita enquanto pode".
"Prepare-se para nunca mais dormir".
"Logo sua paz vai acabar".
"Não queria? Agora aguenta".
Se você já passou por uma situação de gravidez, a chance de já ter sido alvo de algumas dessas frases (ou suas correlatas) é alta. Eu as ouvi quando estava grávida. Vejo gestantes passando por isso todos os dias. É absoluta e infelizmente comum.

Que tipo de comportamento é esse?
Seria uma espécie de autoafirmação? De deboche? Ou é apenas mais um tipo de brincadeirinha senso comum, feita por quem sequer se deu ao trabalho de pensar sobre o que de fato significa, e que diminui a maternidade, ridiculariza as mulheres, reduz bebês e crianças a estorvos sociais? Com que tipo de valores se está compactuando quando se escolhe fazer esse tipo de comentário? O que se quer dizer, verdadeiramente, com isso? Que tipo de conceito sobre ser mãe e exercer a maternidade nutre quem se sente à vontade para dizer coisas como essas?
Você acha que a maternidade é isso mesmo e não há nenhuma mentira nisso? Desculpe-me, mas preciso discordar veementemente. Para mim, não é. Para inúmeras outras mulheres mães, não é. Mas se para você é, então talvez já saibamos onde está o problema... E ele não está na maternidade. Está na relação que você, particularmente, estabeleceu com ela. Como diria o escritor italiano, "Così è (se vi pare)". Assim é, se lhe parece...

Minha vida não acabou quando minha filha nasceu. Sim, minha vida mudou. Radicalmente. Acabou? Jamais. Teve início. Teve início uma nova forma de vida. Uma vida mais empática, mais preocupada com questões coletivas, mais ligada à responsabilidade que é bem criar um ser para o mundo. Preocupada com transformações pessoais que pudessem refletir na formação da minha filha - afinal, como sempre digo, é pelo exemplo que se ensina mais e melhor.
Aproveitar enquanto pode? O que? Por que não se pode aproveitar depois? Vai haver algum tipo de castração social? De impedimento que inviabilize uma vida? É isso o que está acontecendo com você? Você está se sentindo castrada de alguma maneira? Está sentindo que não está aproveitando sua vida?
Preparar-se para nunca mais dormir? Seu filho não está dormindo? Ele nunca dorme? Por que? Como a rotina de sono é feita na sua casa? Quais são os seus hábitos de sono? E os do bebê? Como vocês se preparam para dormir? O que o momento de ir para a cama representa para a família? Por que está assim tão difícil dormir, para você?
Ter a paz de uma vida toda interrompida por um filho? Você sinceramente acha que seu filho é a antítese da paz? O que está acontecendo para que você considere impossível sentir-se em paz e ser mãe? Como é ser mãe na sua família? Quem te ajudou a construir essa visão sobre a maternidade? Por que?
Agora aguenta? "Aguentar"? O que? Uma criança? É assim que seu bebê ou sua criança tem sido visto? Como alguém a ser tolerado, suportado?

Consegue perceber onde está o problema? Quem está com problema?


Como sempre, essas são frases que mais dizem sobre quem as profere do que sobre seu próprio conceito. A mim, parece muito claro que mulheres que se sentem confortáveis em confrontar outras mulheres com frases como essas, justamente em uma fase de vida em que o apoio e amparo social são tão importantes e podem fazer tanta diferença, estão com problemas sérios com relação ao modo como veem a maternidade. Ao que, de fato, seus filhos representam para elas. Sentem-se diminuídas, prejudicadas, nutrem uma espécie de raiva pelas mudanças que a maternidade operou em suas vidas. Não as enxergam como parte natural da decisão de gestar e criar uma criança. De certo modo, veem a chegada dos filhos como uma espécie de "castigo". Sim, elas estão com problemas. E se elas estão com problemas, elas também precisam de ajuda.

Eu sei que, para você, gestante ou mãe recente, enfrentando as angústias do novo modo de vida, ainda incerta sobre como conseguirá conciliar tudo, comentários como esses podem parecer cruéis, injustos, agressivos, violentos. E realmente são. Mas interrompa o mal estar que você possa estar sentindo e responda à pergunta: ONDE ESTÁ O PROBLEMA?
Não. Ele não está na maternidade. Não está em ter um novo filho. Nem, sequer, na mulher que te disse isso. O problema está no que se incentiva e reforça por aí, nessa sociedade patriarcal agressiva, onde mulheres são consideradas sempre as únicas ou maiores cuidadoras e responsáveis pela criação dos filhos, onde poucos são os homens que, de fato, se responsabilizam pelo filho que também colocaram no mundo. Sim. Essas mulheres estão com problemas. De alguma forma, podem ter sido deixadas sozinhas na missão tão complexa de cuidar de crianças. Sim, podem estar se sentindo castradas, enraivecidas, solitárias.
Assim, te pergunto: quem está com problemas?
Onde está o problema?

Michelli é uma amiga dos tempos da graduação. Nós fizemos o mesmo curso, na mesma universidade, em anos diferentes (ela foi minha caloura). Não tivemos mais notícia uma da outra por bastante tempo, até que nos reencontramos na virtualidade das redes sociais. Hoje, ela está esperando a Isabel, há 7 meses na barriga, bebê muito esperada. Ela mora em outro país, sente-se um tanto longe da família e dos amigos, perdeu um primeiro bebê com 11 semanas de gestação e agora aguarda, ansiosa, a chegada da filha. Por ser mãe pela primeira vez, está sensível, confusa, sentindo-se sozinha, trabalhando dobrado pra compensar a licença maternidade. Muitas de nós sabemos exatamente como é se sentir assim... Num momento de desabafo e buscando alguma forma de apoio, Michelli me escreveu e perguntou à queima roupa:
"Será que as mulheres, depois que seus bebês nascem, tentam aparentar serem melhores que as outras, se tornam sádicas ou simplesmente se esquecem do que passaram?". 
Sua pergunta vem do fato de, ao buscar apoio em outras mulheres, que já são mães, receber de volta, com muita frequência, aquele tipo de comportamento não empático sobre o qual estamos falando.
"Essa é a parte mais fácil... Espera nascer pra você ver!", "Depois piora...", "Esquece a vida como você conhece! Acabou namoro com o marido, cinema, restaurante, viagem...", "Não vai dormir por anos!", "Não queria tanto ser mãe? Agora aguenta...".
E ela termina seu desabafo dizendo:
"Incrivelmente, tenho encontrado mais palavras de alento com as amigas que não têm filhos. Óbvio que não é uma regra, mas  a maioria (esmagadora) das mães parecem tentar se supervalorizar, diminuir ou assustar (como se já não fosse insegurança o suficiente) quem ainda está chegando nesse novo “grupo”. (...)  Já existe pressão demais na sociedade com quem quer ser mãe... Portanto, MULHERES, VAMOS NOS AJUDAR!"
Minha resposta a ela foi a seguinte:
"Quando alguém disser coisas desse tipo pra você, confronte. Diga, docemente: 'Estou numa campanha: troque uma palavra de desânimo para uma grávida por uma de apoio".
Sim, depois que a Isabel nascer, Michelli vai ficar cansada nos primeiros meses, vai sentir que não tem tempo para as outras coisas. Todas nos sentimos assim, isso é totalmente natural. E estar preparada para isso, entender que é uma fase de adaptação e ajustes, é o que nos ajuda a passar por essa fase de maneira mais tranquila. Mas o mais importante é que, embora cansadas, vamos sentir uma coisa nova muito forte, algo sem precedentes, e que algumas pessoas chamam de AMOR. Um tipo diferente de amor, que não conhecíamos antes. E em meio ao cansaço, é possível que também sintamos uma grande força surgir, por vezes uma euforia, que talvez nos leve a dançar no meio da sala, ou a cantar, ou a fazer algo diferente do que já fizemos. Talvez queiramos mudar a vida. Talvez nossa vida anterior não nos caiba mais. Talvez passemos a ver o mundo como um imenso universo a ser desbravado. Talvez tenhamos mais coragem para assumir quem de fato somos. Pelo nada simples fato de termos nos tornado mães. 
Não é fácil ser mãe, não. Mas ninguém que decide seguir adiante com uma gravidez e escolhe ser mãe faz isso buscando facilidade, não é mesmo? O que a gente busca é criar filhos bacanas, sentir essa mudança, fazer bem feito, com responsabilidade, com afeto, sentindo que depende de nós e está em nossas mãos o tipo de mundo que queremos ajudá-los a criar. E isso será mais forte que o cansaço. E a gente vai encontrar novas formas de viver. Vamos namorar na sala, sem gritar, pra não acordar o bebê. Iremos à universidade com nosso bebê à tiracolo. Trabalharemos embalando o bebê-conforto. Vamos inventar novas reuniões sociais, inclusivas, kids friendly. Vamos construir novos círculos de amigos. Vamos fazer yoga com as crias (viu, Michelli, você vai ter tempo sim). Vamos colocar cadeirinhas nas bikes para andar com elas. Vamos dormir agarradinhos em horários estranhos. Vamos passar madrugadas vendo o leite escorrer das boquinhas. Vamos ter coragem para nos libertar de padrões que não nos servem mais. Vamos chorar sim, também. De cansaço, de angústia, de dúvida, teremos crises. 
E é, também, nos braços umas das outras que vamos encontrar morada, força, apoio e sustentação.
Precisa ser assim. Tem que ser assim.
Nós já temos muita gente nos oprimindo. É justo - e necessário - que nos apoiemos umas às outras. Uma mãe "lava" a outra. 

Eu poderia citar muitos artigos que já mostraram os comprovadamente benéficos efeitos do apoio social materno. Ter um grupo de mães que te apoie, sustente, acolha, empodere, fortaleça, ajuda nas adaptações do puerpério, aumenta o sucesso da amamentação, diminui o isolamento social e o embotamento afetivo característico da chegada de um novo filho, torna mais fácil a volta ao trabalho, diminui o cansaço e, principalmente, diminui a possibilidade de ocorrência de agressão contra as crianças. 

Eu poderia falar sobre tudo isso e citar inúmeros artigos. Mas eu prefiro recorrer à afetividade e dizer: chega de frases angustiantes, de ressaltar as dificuldades, de constranger, de oprimir. Nós precisamos umas das outras. Uma mãe que vê outra mãe dar conta, acolher com amor e fortaleza a maternidade, é uma mãe fortalecida. E uma mãe fortalecida pode apoiar e sustentar outra. E isso não tem mais fim.
"Vai piorar"?
Não. Pode ser que não.
Pode ser que sua angústia por não saber o que virá adiante seja, também, a sua força. 
Filhos nos tiram o sono. 
E nos dão inúmeros motivos para querermos estar despertas. Em muitos sentidos. Muitos sobre os quais jamais pensamos antes deles chegarem...

Homofobia e transfobia: como vou explicar pra minha filha?




Essa semana, relatei na fanpage do Cientista Que Virou Mãe​ uma das tantas coisas que a Clara, minha filha, me diz todo dia, toda hora e que me dá uma certeza imensa de estar fazendo isso certo. Desde que ela mostrou uma certa capacidade para entender essas coisas de "postar/compartilhar", eu a consulto sobre se posso ou não postar alguma coisa que ela tenha dito. Tem coisa que ela permite, tem coisa que não. Respeito as decisões dela. 
Clara é muito conversadeira, adora uma prosa, tudo que fazemos em casa fazemos juntas e isso nos permite trocar muitas ideias, conversar sobre todos os assuntos, discutir muitos pontos de vista. Cozinhamos juntas - conversando. Penduramos a roupa no varal juntas - conversando. Passamos o aspirador de pó juntas - conversando. Dobramos as roupas juntas - conversando. Conversamos quando estamos descansando na rede, a caminho de compromissos, no supermercado, durante o banho. Não há silêncios quando estamos juntas, exceto quando absortas em nossas atividades simultaneamente. E assim vamos conversando sobre essas coisas tão intensas e estranhas e amorosas ou não que é a vida. 
Explico as coisas que ela me pergunta usando uma linguagem adequada para sua idade, mas não fantasiosa. Eu não costumo usar explicações como "foi para o céu", "virou uma estrelinha", "foi ficar com papai do céu" quando falamos sobre a morte de seu avô, por exemplo. Quando ele faleceu, subitamente, sem que ninguém tivesse tempo para se preparar, eu não consegui dizer nada que não a verdade. E dizer a verdade, nesse caso, não subentende grosseria ou crueldade, afinal a morte é um processo natural e esperado. Os tantos tabus que temos com a morte é porque fomos incorporando tudo o que a nossa cultura ocidental associa a ela. Além da imensa dor da perda e de não termos uma educação emocional que nos permita acolher diferentes dores e compreendê-las. Não usar esse tipo de explicação mais fantasiosa não significa que eu julgue quem as usa - cada um sabe onde aperta seu calo e até onde consegue ir. Eu só posso decidir por mim e por minha filha. De uma certa forma, isso tem dado certo. Clara está desenvolvendo com a questão da morte, por exemplo, uma relação muito natural. Tem dias que ela diz sentir muita saudade do vovô e fica mais tristonha. Nesses dias, eu a acolho, digo que dá saudade mesmo e proponho que cantemos uma música que ele gostava. E passa. A gente precisa ensinar isso pras crianças: que dor chega, dói, a acolhemos, pensamos sobre ela, e passa. Que sentir dor é normal, natural e todo mundo vai sentir. Se a gente faz de conta, a todo custo, que a dor não existe, e quando ela ameaça chegar para eles a gente inventa algo para "distraí-los", eles não aprenderão uma maneira saudável de lidar com ela. E isso é muito sério. É uma espécie de porta de entrada para aquelas tantas coisas que tiram a dor do nosso foco - embora não a impeça de existir... Drogas, medicamentos (drogas), álcool (drogas), relacionamentos abusivos, compulsão por relacionamentos abusivos e toda sorte de comportamento que tem um objetivo principal: tirar a dor do nosso raio de visão.

Isso não significa que vou contar para ela todas as coisas difíceis e tão reais quanto sobre a vida. Tenho um parâmetro: é natural? Conto a verdade. Não é natural e pode deturpar a visão que ela tem do mundo, das pessoas, de quem ama? Não conto. E não contar não é mentir. É apenas não contar. Acredito no poder natural da vida para ensinar às pessoas suas próprias lições. Acredito sobretudo na frase: "Ela vai crescer e vai saber naturalmente..".

Então, quando postei aquele nosso diálogo do café da manhã, sobre "pessoas que descobrem que são outras e vão mudando", tão basicão pra gente, tão normalzão, tão mais do mesmo dentro da nossa realidade e visão de mundo, perguntei pra ela se podia postar e ela falou: "Mãe, claro que pode. Mas todo mundo já sabe disso, ué...". Eu disse que muitas pessoas não sabiam não. E que mostrar que uma criança de 5 anos já sabia disso podia ajudar as pessoas a pensarem sobre o assunto. Ela não entendeu. Pra ela, dizer que pessoas nascem de uma maneira e, quando percebem que são diferentes, vão se tornando outras, é muito básico. É a mesma coisa que dizer que não se bate em criança, não se maltrata criança, não se xinga criança. Para ela é óbvio que não! Da mesma forma, para ela é óbvio que todo mundo sabe que algumas pessoas aos poucos se percebem como outras, diferentes do que dizem que elas são, e vão mudando. Para ela, é óbvio que duas pessoas quando se beijam é porque se amam. Que duas pessoas quando vivem juntas e se chamam "família"é porque se amam. Ou, ao mínimo, deveria ser assim.
E fim. E é isso.
E não interessa quem são essas pessoas, o que fazem, o que comem, onde vivem. Não interessa se "ele nasceu menina, percebeu que era menino e foi mudando". Ela sabe o que é ser quem se é. Ela sabe o que é o amor e como ele se manifesta. Ela cresceu assim. Está crescendo assim. Ela não tem ao seu redor modelos negativos nesta questão. Ela sabe que pessoas adultas amam pessoas adultas e fim.

Então, postei. Eis que aquilo virou uma coisa louca de linda. Foram quase 10.000 curtidas e mais de 1.500 compartilhamentos em 1 dia. Assim, do nada. Um simples relato cotidiano de um diálogo com uma filha. Então, pouco antes dela dormir e de me sentar aqui para escrever sobre, contei pra ela como as pessoas acharam especial o que ela havia dito. Tentei explicar em termos que ela entendesse que aquilo que ela disse havia inspirado muitas pessoas. E ela continuou sem entender o porquê.
- Mas mãe, por que?
- Porque as pessoas gostam de saber que há crianças e mães e pais que falam sobre isso dessa maneira.
- Sobre o que?
- Sobre pessoas que percebem que são outras pessoas e vão mudando.
- Mas por que?
- Porque não é todo mundo que pensa assim.
- Mas como assim?! É assim que se pensa.
- Eu sei, filha...
- Por que gostaram tanto? É só uma coisa normal.
E eu, que explico para ela as situações naturais usando a verdade, que não crio explicações fantasiosas, não consegui explicar o motivo de ter gente que não acha isso uma coisa normal... E não consegui porque isso, de não aceitar as pessoas como são, NÃO É NATURAL. Se tem uma coisa que não é natural é isso, essa coisa de ditar (estou sendo leve na palavra, mas pode substituir por outra mais pesada) regras sobre quem devemos ser e sobre o amor que devemos ter. Então, senhoras e senhores, vocês que estão aí se perguntando "Como vou explicar 'isso', de pessoas do mesmo gênero se amarem, ou de pessoas quererem assumir outro gênero que não aquele com o qual nasceram?" saibam que há gente num dilema muito mais cruel: como explicar que existem pessoas como vocês. Que não sabem o que é respeito. Que não sabem ao certo o que é o amor. E que por não saberem, condenam o alheio. Dói em mim ter que explicar para minha filha de 5 anos que existem pessoas assim, como vocês. 

Se não me dói ter que explicar que pessoas mudam seus gêneros, que pessoas do mesmo gênero se amam? Olha. Nunca nem pensei em ter que explicar. Porque acredito piamente que as crianças aprendem o que veem, o que vivem, o que seus pais ou cuidadores - que são seus principais modelos - defendem, valorizam, respeitam. Nunca ensinei isso à minha filha. Ela apenas aprendeu o que viu, ao seu redor, com seus pais, seus cuidadores, seus amigos. A gente não precisa ensinar ativamente o respeito ao fato de que uma pessoa adulta ama o adulto que ela quiser. A gente só não pode fazer o contrário, enfiando cérebro e coração adentro das crianças que aquilo, QUE SE CHAMA AMOR, é algo horrível, horroroso, que um deus que tantos julgam como sendo um deus de amor acharia odioso. Em outras palavras: muito ajuda quem não atrapalha. Muito ajuda quem não é preconceituoso e, assim, não contamina toda uma geração com seu preconceito. Porque olha, eis aí uma doença mais mortal que muito retrovírus: o PRECONCEITO. E é você, que o nutre e incentiva (seja lá baseado no que), quem está matando. Nós, aqui, da família da Clara, não levamos esse sangue em nossas mãos. Clara não leva nem levará esse sangue em suas mãozinhas de criança. E se você, que tem filhos, se orgulha de propagar o preconceito e de ensinar a eles que tem família que não é família, e que tem amor que não é amor, saiba: as mãozinhas deles já vão crescer ensanguentadas. 
Duro ler isso? É, eu sei.
Mas tem coisa que é muito mais. Como matar em nome disso. Como morrer em nome disso. E a culpa dessas mortes é sua, que nutre o preconceito. Pessoas morrem por sua culpa. Por seu incentivo. Sem linguagens fantasiosas porque, né? Você já é bem grandinho.
O que me preocupa mesmo é: eu não sei como dizer à minha filha de 5 anos que vocês existem... Porque isso não é natural.

"EU SOFRI ABUSO SEXUAL" - Quando um relato é parte da cura




Atenção - Há abaixo conteúdo que talvez possa disparar gatilhos emocionais traumáticos.  

Não lembro exatamente quando foi que conheci Ana Lúcia pessoalmente. Mas a imagem que tenho dela é de uma mulher decidida, forte, socialmente comprometida, que decidiu dedicar sua vida a uma causa que não é dela, mas de todas nós. Nós olhamos para essa mulher e vemos nela a imagem de uma brava e forte defensora de causas feministas, mãe, advogada, ativista. E porque as relações mediadas pelas redes sociais não nos permitem ir até o centro das pessoas, nós nos baseamos no que vemos. Criamos perfis fictícios das outras pessoas que também têm muito de nossa própria projeção e admiração (ou recalque). E não conseguimos de fato imaginar toda a complexidade que mora em cada uma de nós. Sequer podemos imaginar quais dores vivemos. Sobre quais delas estruturamos toda nossa casa. O que nos esforçamos cotidianamente para superar. 
Essa semana, Ana me procurou pedindo uma ajuda. E foi um pedido muito especial e doloroso. Ana conseguiu escrever sobre o abuso sexual que sofreu na infância. E gostaria de torná-lo público como parte de seu processo de cura. Então me perguntou se poderia publicar aqui. Um pedido como esse ninguém que tem um mínimo de amor e empatia pela condição de outra mulher pode negar. E se posso ser o veículo por meio do qual a dor de uma mulher pode ser aliviada, serei. Na verdade, talvez eu não esteja aqui por outro motivo que não esse: por ver que é possível ajudar pessoas com meu próprio trabalho. 
Ana, minha querida amiga, você não sai de casa há algumas semanas. Mas se depender de nós, deste coletivo que têm como objetivo apoiar outras mulheres, sairá amanhã. Te ofereço as minhas mãos pra te ajudar a se firmar.

***
Meu nome é Ana Lúcia. Tenho 41 anos, sou advogada e ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Enveredei-me por esse caminho através dos nascimentos dignos e respeitosos dos meus filhos Sofia e Marcos, e da criação da minha enteada Marina.

Fui estuprada por um amigo aos 24 anos de idade. Minha vida era uma antes desse dia e passou a ser outra depois. Muito além do que sabemos que a vida nunca será como era há um segundo, já que mudamos o tempo todo, como dizia Lulu. O além foi no meu comportamento, nas minhas escolhas, na compreensão do mundo com as mulheres, com a violência naturalizada. E é uma violência doída, algo que eu sentia roubado de mim e que não conseguia recuperar, apesar de seguir a vida em frente.

Dia 15 de maio desse ano, dia do aniversário do meu filho, um momento em que eu me encontrava muito feliz porque as coisas caminhavam muito certo na minha vida, dirigindo na Marginal Tietê, eu passei mal. Parecia um ataque cardíaco, fui socorrida pelos bombeiros, fui ao médico, fiz todos os exames necessários e soube que tive uma crise de ansiedade. Curioso que nunca tinha sentido assim antes, e uma tremenda sensação de vulnerabilidade. Na semana seguinte viajei a trabalho para Três Lagoas, e com meu pai passei pela cidade onde vivi pouco mais de um ano, Andradina, e ali tive uma lembrança. No carro eu lembrei de um abuso sexual que sofri aos oito/nove anos de idade. A cena veio cristalina, como se estivesse acontecendo naquele momento, e foi horrível acessar essa memória.
Voltei para São Paulo muito mal, e daí já se vão três meses lidando com as crises de pânico e todas as consequências daquele dia em que fui abusada. Não era um adulto, mas também não era criança. Não se tratava de uma experimentação entre crianças da mesma idade. Se tratou de um abuso, ainda que talvez o abusador não tenha a menor ideia do que aquele ato causou na minha vida.

Achei incrível como essa lembrança ficou tanto tempo escondida na minha mente, talvez porque antes eu não tivesse condições de acessar sem doer muito mais. Porque dói. E o que dói é a descoberta das consequências daquele dia... Como algo muito mais sério que me roubaram definitivamente. O meu direito à descoberta da minha sexualidade de forma saudável, sem medo, sem ameaça, sem culpa. O direito que eu tinha a me descobrir e me compreender mulher no meu tempo. O direito que eu luto e trabalho para que meus filhos tenham.

E, nessa minha dor e ao acessar tudo o que vem disso, descobri tantas outras pessoas que viveram a mesma coisa que eu. E que levaram muito tempo para falar sobre o assunto. Algumas pessoas só falaram a primeira vez sobre isso agora, conversando comigo, quando partilhei a minha dor. No meu caso foram 32 anos guardando essa informação em mim. Foram 32 anos com um sentimento de inadequação que eu não sabia de onde vinha, foram 32 anos com dores em segredo. E eu te digo, não é o fim do mundo, mas não é fácil.

As crises de pânico que eu vivo hoje refletem o lugar inseguro que eu vejo no mundo. Fiquei semanas sem sair da minha casa. E compreendo que sou uma pessoa privilegiada, tenho acesso a bons profissionais de saúde, terapeuta, família e amigos que se organizaram para cuidar de mim. Então, se é assim para mim que tenho recebido muito apoio porque estou falando disso??? Porque as pessoas não falam das consequências do abuso sexual infantil. Logo após as lembranças que tive, assisti um vídeo da ONG norueguesa Save The Children, você pode ver o vídeo aqui. Se você assistir ao vídeo, vai entender como me senti por anos.

Em 2008, a SaferNet Brasil, uma organização de combate à pornografia infantil na internet, recebeu 42.122 denúncias sobre abuso sexual infantil. Recentemente, a página Cientista Que Virou Mãe publicou um texto sobre o assunto (acesso aqui) e eu fui uma das colaboradoras desse texto. O abuso sexual infantil é muito comum, muita gente acha horrível, mas não compreende a naturalização do mesmo, e as consequências na vida da vítima.

Ano passado a Revista Vogue Kids publicou um editorial com fotos de meninas em roupas e poses sensuais. Meninas com a mesma idade que eu tinha quando fui abusada. Naturalizando a menina desde pequena como objeto sexual e de prazer. O Ministério Público do Trabalho moveu uma ação civil pública contra a Editora e eu espero que o Judiciário compreenda o malefício na vida de meninas e meninos que é a exposição do corpo com ares de sensualidade e sexualidade.

Eu eduquei a minha enteada que veio morar comigo antes dos 10 anos. Acompanhei o desenvolvimento dela de menina para mulher. A transformação e as descobertas sadias que ela teve acesso. Eu tenho uma filha de 9 anos, e um filho de 5 anos. Eu acompanho diariamente as descobertas que eles tem sobre o próprio corpo de forma sadia. Admiro e respeito as descobertas em seu tempo.

Eu sei o que perdi quando fui abusada naquele quarto. Eu sei o que eu perdi para sempre. Eu sei o que nunca mais vou recuperar e o trabalho que tenho para re-significar o feminino em mim. Eu fui acolhida pelo meu companheiro e meus filhos. Pela minha enteada que por dias dormiu comigo segurando a minha mão. Pela minha mãe, meu pai, e o meu irmão que todo dia vem me ver e perguntar se eu quero sair, e que se eu quiser, ele me segura pelas mãos. Pela Renata, Silvia e Márcia disponível nas madrugadas e em todas as horas. Pelas minhas amigas de trabalho que choraram a minha dor comigo Raquel, Valéria e Patrícia e que estão me dando o tempo necessário para me recompor. Pelas meninas do Advocacy que me cuidam e assumem o que eu não posso por hora. Pelas Mulheres Sábias da Ciranda, em especial aquela que está do outro lado do mundo, a Carol, me ensinando que não temos controle sobre a vida e que podemos viver o agora construindo um novo significado. Pela Adeli, pelo Marcos, pela Glaucia e pela Ligia, os profissionais que estão cuidando da minha saúde. Pela Cida, Silvia, Dilssa e Dalete que assumiram a minha casa para que eu me restabeleça. Pela Ana Paula e Ana Rita do NUDEM pelas mãos estendidas. Pela Fabiana Paes pela sororidade. Pelos amigos fundamentais da Teia que tem me ajudado e a meus filhos a terem uma vida mais normal nesses tempos difíceis para mim. Pelos meus compadres. Pela Jamila que rezou comigo.

E, se torno público hoje o que me aconteceu, é porque preciso falar disso e sair da água que me sufocou tanto tempo. A vergonha e a culpa não são minhas (também não acho que seja do meu abusador, que provavelmente sequer tenha a ideia do que aquilo causou em mim, já que ele é fruto e repetição de uma péssima educação do masculino onde ele também não aprendeu o que não poderia fazer).

Uma amiga querida, a Jules de Faria, me disse outro dia quando lhe falei que eu queria me esconder do mundo: “É exatamente o contrário. A gente acha força quando se entende como vítima. Não é vitimismo. É uma forma de lutar contra.”

Hoje eu falo para lutar contra. Porque consegui sair do sufocamento. Para que você que estiver lendo esse texto e passou pelo mesmo que eu compreenda que a culpa não foi sua, que foi algo que se perdeu para sempre, mas que há caminhos de se curar e re-siginificar. E falar é um bom começo.
Não saio de casa há duas semanas.
Mas sei que amanhã sairei.
Não como era antes. Mas fortalecida por acolher em mim uma dor que há em tantas pessoas. Porque o sufoco, agora, não existe mais.

Ana Lúcia Keunecke


Cachorros franceses, crianças brasileiras e a faxina - como a violência à criança e à mulher encontra apoio na sociedade brasileira





Nesta semana, ouvi na Itapema FM - rádio local pertencente ao Grupo RBS, afiliada Rede Globo -  uma vinheta que chocou-me profundamente. Nela, a colunista Samira Campos, que comanda a coluna "Estilo", estabeleceu uma comparação extremamente pejorativa, preconceituosa e ridicularizante entre os cachorros franceses e as crianças brasileiras. A colunista não se furtou a mostrar toda sua admiração por ver como lá, na França, os cachorros mostram-se tão mais comportados e educados que as crianças brasileiras. Como não causam transtornos, como não fazem birras, como não fazem pirraças nem correm pelos espaços públicos e "obedecem prontamente aos comandos de seus donos", ao contrário das nossas crianças. O estabelecimento de uma comparação tão cruel, desprovida de qualquer senso de empatia e de qualquer conhecimento a respeito da infância no Brasil e das inúmeras violações de direitos que tantas entidades brasileiras vêm se dedicando a combater, chocou-me prontamente. 

Isso deveria ser de conhecimento geral, mas infelizmente parece que ainda não é: crianças são especialmente vulneráveis às violações de direitos. E não ser de conhecimento geral não se deve apenas à falta de acesso à informação, mas, em grande parte, à baixa ou nula responsabilidade social e preocupação com o respeito aos direitos humanos por parte de produtores de conteúdo e das mídias em geral. Sim. Crianças são especialmente vulneráveis às violações de direitos. E quando lembramos de que elas não têm voz ativa na reivindicação dos mesmos e dependem sempre de que adultos assumam essa tarefa, torna-se fácil compreender a gênese de tais violações. E compreender essa desigualdade significa promover maneiras de minimizá-la atuando, inclusive, em sua defesa quando assim for necessário.

Vamos falar do Brasil. Não da França. Do Brasil.
No Brasil, 29% das pessoas vivem em famílias pobres. Esse número aumenta para 45% quando se trata de crianças. Crianças negras brasileiras têm quase 70% a mais de chance de viver na pobreza quando comparadas às crianças brancas. Idem para crianças brasileiras vivendo em áreas rurais. Ainda no Brasil: a desnutrição de crianças menores de 1 ano, embora venha diminuindo muito nos últimos 5 anos, atinge ainda mais de 60 mil delas. São bebês que não dispõem do mínimo necessário para suprir suas necessidades alimentares. Sobre as crianças brasileiras e a violência que sofrem todos os dias: são mais de 130 casos notificados diariamente apenas via Disque Denúncia (100). Não estamos falando apenas de violência física. Estamos falando também de VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA. Isso sem considerar as centenas que não chegam a ser notificadas.

Mas para falar sobre violência psicológica é preciso saber do que se trata. Violência psicológica é, também, uma forma de agressão. A mais sutil delas. É caracterizada por comportamentos que subjugam emocionalmente a pessoa que é alvo, tais como humilhação, inferiorização, rejeição, discriminação e todas as formas de ofensas morais. Embora não produza marcas físicas, altera de maneira decisiva a forma como a pessoa se vê no mundo, seu conceito sobre si mesma, produz inseguranças de todos os tipos e uma sensação de inadequação persistente.

Agora imagine tudo isso quando destinado a uma criança. Uma criança vítima de violência psicológica é atingida naquilo que lhe é mais caro: sua representação sobre si mesma, sobre que tipo de tratamento merece, sobre como é vista e tratada pela sociedade. Aquilo que se diz a uma criança e que tem capacidade de impactar negativamente sua autoestima pode perdurar por muito tempo e permanecer na idade adulta. Crianças vítimas de violências psicológicas com frequência se tornam adultos com dificuldades de autoaceitação, ou que apresentam sintomas emocionais como depressão, angústia, medo de conviver com outras pessoas, de falar em público e, quando a violência é persistente, tornam-se mais suscetíveis ao uso e abuso de álcool e outras drogas, lícias ou ilícitas.

Vivemos em uma sociedade que sujeita as crianças, repetidas vezes, à violência psicológica. Uma sociedade que vê como normal e aceitável uma manifestação de preconceito, discriminação, humilhação ou inferiorização das crianças é, em si mesma, uma sociedade que violenta recorrentemente suas crianças. Uma sociedade que permite que crianças sejam vistas como pestinhas, como terríveis, como impossíveis - todos termos recorrentemente utilizados em diferentes situações e dirigidos a elas como se naturais ou aceitáveis fossem -, e não como seres em desenvolvimento, que precisam ser amadas, respeitadas, amparadas, protegidas e cuidadas incondicionalmente, é uma sociedade violenta com as crianças.É uma sociedade composta por pessoas que violam seus direitos. Quando uma pessoa se sente confortável para emitir uma opinião discriminatória, ofensiva, ridicularizante sobre uma criança, é porque ela se sente confortável em viver em uma sociedade idem.

Se hoje contamos com entidades de proteção e defesa dos direitos humanos que protegem pessoas contra ofensas - tais como comparar mulheres a cadelas, ou mulheres a objetos, ou coisas do tipo - por que seria diferente ou menos grave quando isso acontece com as crianças? Por que seria menos violação de direitos comparar crianças brasileiras, por exemplo, a cachorros franceses? Por que uma ferramenta de comunicação permite que uma colunista sinta-se livre e confortável para inferiorizar crianças brasileiras? Uma das respostas possíveis é: porque a sociedade aceita, acolhe e defende esse tipo de comportamento. E é principalmente por isso que os números de violências de todos os tipos praticadas contra crianças, aqui no Brasil, são tão altos. E é também por isso que é tão difícil realizar esforços para a promoção do respeito à infância e da erradicação de todas as formas de violência contra a criança (física, sexual, emocional, psicológica).

Chocou-me ver, mais uma vez, sem qualquer tipo de pudor, uma rádio - supostamente um veículo de produção de informação - sentir-se confortável para emitir opiniões recheadas de preconceitos e discriminações que, sim, podem configurar crimes. Ano passado, outro colunista da mesma rádio (Alysson Müller) já havia se sentido bastante à vontade para, ao final de uma receita de caipirinha, sugerir que os rapazes a utilizassem para impressionar "as periguetes na beira da piscina". A rádio é pertencente ao mesmo grupo de comunicação que protagonizou na semana passada, por meio de outro seu colunista (Cacau Menezes), episódio lamentável de machismo explícito o qual teve grande repercussão nas mídias sociais, quando apresentou fotografia de uma policial militar catarinense de costas, enaltecendo-a por seu corpo e dizendo que Santa Catarina realmente possuía as "melhores" mulheres policiais.

E por que isso tudo acontece assim, de maneira praticamente invisível e impune? Por coisas como essa que mostro abaixo. 



Porque há uma sociedade, composta por pessoas com esse tipo de opinião deformadora, que enaltece tais manifestações de discriminação. Por pessoas que não veem problema algum em ofender, tentar ridicularizar, inferiorizar ou menosprezar outras pessoas. O mais interessante? Geralmente dirigido a mulheres. Ou a crianças. Ou a outros grupos historicamente desrespeitados em seus direitos.

Vejam.
Ler ou ouvir esse tipo de opinião nos dá a falsa sensação de que o respeito e a "boa educação" - que é aquela que é empática - estão em franca decadência. Mas isso não é verdade. O que há hoje é liberdade de expressão. Que, muitas vezes, é confundida por aqueles que não sabem se portar com empatia e respeito, com abuso e agressão. E que, via de regra, veja que ironia, se baseia justamente no reforço àquilo que tantos de nós buscamos combater. Quando o Sr. Paulo Freitas, por exemplo, me sugere que eu faça uma faxina na minha casa, ele está se apoiando em duas coisas (no mínimo): no machismo explícito existente na sociedade, que tem grande dificuldade para aceitar mulheres com grandes titulações ou em cargos de chefia, e numa subalternização da atividade de "limpar", cultivada por uma parte da sociedade brasileira. Ele está se apoiando em representações sociais que oprimem e discriminam ainda mais. Ele está tentando, em sua visão de mundo, colocar a mim, "mulher", "subalterna", no meu lugar - ou naquele ao qual ele considera que eu pertenço. Para não deixá-lo sem reposta, Sr. Paulo: sim, farei faxina na minha casa, provavelmente logo após terminar de redigir este texto. Porque sim, eu faço. Eu limpo minha própria casa, organizo minhas próprias coisas, pois acredito que isso é o mínimo que todos nós deveríamos fazer: ter a capacidade de cuidar das próprias coisas. E não invariavelmente delegar esta tarefa tão necessária, que deveria ser de cada um de nós, a funcionárias, mulheres, pobres, a que muitos chamam de "empregadas" e que, em grande parte dos casos, são remanescentes de uma relação escravocrata que perdura até os dias de hoje, às vezes disfarçada, às vezes nem tanto. E que a diretora Anna Muylaert, também repetidas vezes vítima do machismo, com maestria retrata em seu premiado filme "Que horas ela volta?". Então sim, Sr. Paulo, farei uma faxina. Espero conseguir fazer várias, aliás muito mais do que tenho conseguido. E recomendo o mesmo ao senhor, por uma questão de classe, estilo, saúde e justiça social. Mas o senhor tem razão em uma coisa, Sr. Paulo, eu realmente não deveria mais ouvir a Itapema...

É com base neste tipo de comportamento, por exemplo, que as mídias se sentem confortáveis em disseminar má informação. Porque, via de regra, há gente para defender o indefensável. Gente que, talvez, não tenha tido ainda o discernimento e a responsabilidade social tão necessária para refletir sobre questões tão fundamentais quanto os efeitos do preconceito e da discriminação sobre a sociedade. Sobre as relações humanas. Não é de se espantar, por exemplo, que tantos estudos mostrem a íntima relação que há entre o homem que agride a mulher e a família que agride a criança. Violência contra a criança anda tristemente de braços dados com a violência contra a mulher. Quem agride um, via de regra agride o outro. E essa foi fácil perceber, não?

Se as crianças brasileiras são indisciplinadas? Se são impossíveis? Se incomodam?  Se são, comparativamente aos cachorros, seres piores? Não, senhores. Não são. Não porque sejam melhores que os cachorros. Mas porque é absurdo aceitar comparar tais espécies, com realidades e necessidades tão distintas (e me surpreende ter que detalhar esse tipo de coisa...). Se há crianças que vivem sem adultos empáticos, amorosos e disponíveis a acolhê-las, ensiná-las, orientá-las? Agora sim: muitas! Se as crianças não aceitam os comandos de seus donos? Eu sinceramente espero que não aceitem. Posto que não são propriedades ou mercadorias e não possuem "donos" - embora muitos cuidadores estabeleçam com suas crianças este nível de relacionamento. Se falta um olhar amoroso e acolhedor à infância brasileira? Com toda certeza. E é para reverter isso que tantos de nós trabalhamos. 

Se os cachorros franceses e as crianças brasileiras são muito diferentes? Certamente. Não acredito que os dados sobre violência contra cachorros franceses sejam, por exemplo, maiores do que a violência contra as crianças brasileiras... Também não acredito que vivam em piores condições. Para muitas das nossas crianças, a vida é, mesmo, uma vida de cão. Não de cães franceses. Mas de viralatas abandonados nos cantos, doentes e sem apoio.

E como eu acredito que também é uma questão de classe - e estilo - as pessoas perceberem e assumirem seus erros, seria de muito bom tom que a colunista Samira Campos atentasse para seu imenso equívoco. E se desculpasse pela maneira pejorativa e discriminatória com que se referiu às nossas crianças. Inclusive porque, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos, agir desta maneira configura grave violação dos direitos da infância e da adolescência. Passível de denúncia e responsabilização.




Como você se sente violentando crianças?





"O que fazer com uma criança dessa?"

Uma criança "dessa"...
O que tem essa criança? O que a faz diferente das demais? O que dá a sensação de que "essa" criança - e talvez não outras... - pode ser exposta a tamanha humilhação, ridicularização e desprezo por seu sofrimento? Por que "essa criança" pode ser exposta à incitação da violência nas mídias, enquanto outras são protegidas e eliciam movimentos de problematização pela violência sofrida?  Nenhuma criança age de maneira agressiva extrema se está tudo bem com ela. Isso não parece óbvio? Não, infelizmente não é óbvio. E por que não é? Porque não vivemos em uma sociedade cujo padrão é acolher e respeitar a infância. Nosso padrão, enquanto membros de uma sociedade violenta, é ser violento com aqueles cujos direitos são sistematicamente violados. Especialmente os das crianças. Especialmente os das crianças negras e pobres. Especialmente os das crianças em cujos ombros repousam séculos de opressão e negligência. Negligência de seus pais? Não apenas. Negligência de toda a sociedade.

A repugnância da sociedade pela infância não é algo recente. Toda a aceitação, crença e reforço à infância como um período obrigatoriamente nefasto, quando as crianças são necessária e obrigatoriamente ruins, maldosas, incapazes de bondade, vem de séculos de crenças filosóficas e religiosas, especialmente compiladas e defendidas por Santo Agostinho, e depois por Decartes, entre tantos outros personagens considerados "sábios". Santo Agostinho, um dos principais responsáveis pela compilação do conhecimento religioso católico, ao mesmo tempo que é autor de frases como "Aquele que tem caridade no coração tem sempre qualquer coisa para dar" ou "Onde não há caridade não pode haver justiça", foi o mesmo que defendeu e propagou não existir inocência na infância. Para ele, a criança é a máxima expressão do pecado original, a condenação da humanidade, tendendo sempre para o mal. O que os adultos, portanto, deveriam fazer para corrigir tal mazela chamada infância? "Combatê-la", era essa sua resposta... Anulá-la. E daí seguia-se toda sua defesa das varas, ameaças e palmatórias. "Infante", advindo de "não ter fala", não teria razão e, portanto, não teria em si a manifestação divina que há nos adultos... Ainda que separados por séculos de história, Descartes (o filósofo de uma tal razão) assemelhava-se em muito a Santo Agostinho no que acreditava ser a infância. E, tendo o pensamento ocidental moderno sido esculpido pelo conhecimento cartesiano - limitado, limitante, reducionista e simplista - fica fácil perceber de onde vem tanta repúdio à infância... Descartes reconhecia a imaginação, criatividade e ingenuidade das crianças como sendo obrigatoriamente nocivos e, para ele - bem como para Santo Agostinho - quanto antes saíssemos da infância, melhor para nós.

De onde viria tamanha rejeição a ser criança? Por que temos dois grandes filósofos, entre tantos outros influenciadores de grande parte do pensamento ocidental, rejeitando qualquer coisa que remeta a ser criança, recomendando seu combate e anulação? Teria vindo, talvez, de uma infância extremamente dolorosa para si próprios? Com toda certeza. A infância de ambos foi marcada por profundas formas de violência e desrespeito, e ambos conheceram diferentes formas de negligência, desamor e rejeição. 
Mais uma vez, aquilo que já sabemos... 
Crianças criadas com desprezo aprendem a desprezar. 
Crianças criadas com violência aprendem a violentar. 
Crianças criadas com repugnação por sua condição aprendem a repugnar. E, o que é pior, mobilizam milhares de pessoas a fazerem o mesmo.

O garotinho do vídeo compartilhado milhares de vezes, que joga móveis e apresenta forte descontrole emocional, está sofrendo. É tão difícil enxergar isso? Sim, para muitas pessoas é muito difícil enxergar sofrimento onde há banalização. Para aqueles que aprenderam que a culpa é sempre das crianças, que elas são essencialmente más e nocivas à sociedade, ou para aqueles cuja violência no trato consigo mesmas, em suas infâncias, foi uma constante, uma "banalidade", uma condição inerente, é difícil distanciar-se do senso comum. E o senso comum incentiva a violência. O senso comum vê de maneira rasa, vê apenas duas soluções: o 8 ou o 80. A punição física severa ou a completa negligência. Para os que foram criados de maneira negligente, violenta, marcada por anulação de seus próprios anseios, é muito difícil retirar-se do círculo vicioso que alimenta ainda mais violência e dizer: "Ajudem-no. Ele precisa de amparo, de amor". É muito mais fácil reproduzir - à moda de Santo Agostinho e Descartes - aquilo que está dentro de si, fruto de uma infância difícil, e dizer: "Isso é falta de porrada! Isso é falta de tapa! Isso é falta de chinelada" ou qualquer outra coisa que vá, com toda certeza, aumentar ainda mais o sofrimento daquela criança. 
Retirar-se do círculo vicioso de uma infância violenta e afastar-se do discurso predominante que pune e agride a criança e defende o adulto, é tarefa extremamente difícil. E sua dificuldade maior talvez esteja no fato de que é uma porta que só abre por dentro. É preciso olhar para si, reconhecer a própria dor, ver-se como parte de uma sociedade violenta e... decidir se retirar dela. Para acolher. Para fazer diferente. Para defender as crianças. E, assim, ajudar a curar a própria criança que um dia se foi...
Olhar para aquele garotinho, tão novinho, tão desamparado, em situação de sofrimento emocional, sendo ainda estimulado por quem está ao seu redor a ficar ainda mais descontrolado, ao invés de receber acolhimento, contensão amorosa e respeitosa, olhar empático, uma palavra firme porém amorosa para tirá-lo daquele estado de hiperagitação emocional, olhar para ele e reconhecer sua dor significa, também, olhar para si e reconhecer a própria dor. Enxergar a dor do outro tem muito a ver com enxergar a própria dor, a própria infância. E isso, numa sociedade que valoriza superficialidades a aparências, que medica para NÃO SENTIR, que distrai para NÃO SE CONHECER, que se droga para NÃO MERGULHAR EM SI, praticamente não existe...

Olho para o garotinho e penso: "Sei o que é isso". Porque me reconheço nele, ainda criança, se sentindo sozinho, com medo. Expor sua situação de fragilidade e sofrimento com tamanho desdém, estimulando que outras pessoas, tão desconhecidas, incentivem e PEÇAM que ele seja punido, violentado, agredido, não é só a total anulação de seus direitos como pessoa. É, principalmente, falta de amor. Falta de amor pelas crianças. Falta de amor por quem não conhecemos. Falta de empatia. É julgamento - talvez a prática mais corrente hoje nas redes sociais. O julgamento "detentor" de verdades, ainda que sejam criadas ao bel prazer de quem julga. 

Por séculos a fio, o infanticídio foi permitido. Por séculos a fio, a infância foi negligenciada. Cada vez que compartilhamos aquele vídeo, fazemos isso. A infância somente passou a ser respeitada e valorizada há muito pouco tempo em nossa história. E não se espante ao saber que esse respeito se refletiu, também, numa maior aproximação entre os pais e seus filhos...

Então, faço a você, que recomendou a violência contra aquele garotinho, uma pergunta: o que isso diz sobre você? O que diz sobre sua infância? O que diz sobre a qualidade do amor que recebeu? Você o recebeu? O que diz sobre você ter aprendido, em algum momento de sua vida, que amor e violência podem se unir? E, especialmente, o que isso diz sobre sua vida e suas experiências hoje?

Saindo um pouco da dimensão da reflexão e sendo mais pragmática, gostaria de lembrar que o garoto ter sido filmado em situação de vulnerabilidade, exposto em seu sofrimento, representa crime contra a infância. Crime praticado por uma pessoa e reforçado por milhares de cúmplices, que desconhecem e/ou descumprem o que as leis de proteção à criança brasileira orientam. E é com elas que eu termino esse texto. Porque é preciso olhar para si e reconhecer em si uma história de violência, se deseja mudar. Mas também é preciso respeitar direitos duramente - e recentemente - reconhecidos. Crianças são detentores de direitos. Se é tão difícil assim para esta sociedade doente o exercício do olhar empático, talvez cumprir determinações legais - "pequenos manuais de convivência em uma sociedade não animalizada" - seja mais fácil... Se der preguiça, facilitei o trabalho: selecionei uns excertos, coloquei em negrito e em letra maior. É só lê-los.

E a você, que recomendou a punição e violência contra aquele garoto, estimulado por um vídeo desprezível, pergunto: como se sente violentando crianças? Caso esteja se sentindo mal, a boa notícia é que você pode mudar.



(Lei No. 8.069 - 13 de julho de 1990)



Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. 

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Parágrafo único.  Para os fins desta Lei, considera-se:      
I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:      
a) sofrimento físico; ou      
b) lesão;       
II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:      
a) humilhe; ou       
b) ameace gravemente; ou        
c) ridicularize. 

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus educadores;



Outras sugestões de leitura:

- As concepções de infância e as teorias educacionais modernas e contemporâneas - Paulo Ghiraldelli Jr.
- O uso de palmadas e surras como prática educativa - Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Ana Paula Viezzer, Olivia Justen Brandenburg


Viewing all 217 articles
Browse latest View live