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"Desculpe-me por ser criança" - Nova coluna no BRASIL POST

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Doutorado caminhando para o fim, entrevistas sobre violência obstétrica chegando, minha filha no auge dos seus 4 anos cheios de alegrias e descobertas, um mundo novo como mãe solteira à minha frente sendo desbravado, um novo livro em produção.
Sim, estou sobrecarregada.
Que bom!
Porque é nessa hora que surge todo nosso potencial criativo, quando precisamos encontrar soluções para nossa própria vida.
E, claro, é também nessa hora que chegam novos convites. É a vida te desafiando - e te ajudando a focar no que interessa.
Então é com imensa alegria que informo as leitoras e leitores do blog Cientista Que Virou Mãe que hoje estreei como blogueira do Brasil Post.
Em minha coluna sem periodicidade definida - justamente em função do que mencionei ali, nas primeiras linhas - vamos conversar também sobre o que já conversamos aqui: infância, gestação, parto, tornar-se mãe, tornar-se pai, tornar-se cuidador, diferentes formas de violência, tudo aquilo que é preciso ser discutido se quisermos melhorar o mundo. E queremos, não queremos?
Hoje convido você a ler o primeiro texto na nova coluna: "DESCULPE-ME POR SER CRIANÇA" - Quando o mundo não acolhe os vulneráveis. 
Nele, discuto um ponto relevante: que mundo é esse onde nos sentimos obrigados a pedir desculpas pelo fato de nossas crianças estarem sendo crianças? Que mundo queremos? E o que é preciso fazer para, de fato, mudar a violência toda que está aí.
Não é a sociedade quem precisa mudar.
Somos nós. 
Não precisamos ser presenteados para desculparmos uma criança que está apenas sendo criança. Precisamos acolher, apenas isso.
Dá uma passada por lá!
Espero que você goste e que estimule a reflexão.


Papai Noel: sim ou não?

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Estamos a menos de 1 mês do Natal. Com sua proximidade, algumas pessoas começam a se questionar sobre a data, sobre sua simbologia, seu significado e sobre que atitude devem tomar com relação às crianças e suas crenças sobre o Natal. Incentivar ou não incentivar a crença infantil no Papai Noel? Natal é apenas uma data consumista? A história religiosa que envolve esta data é apenas uma historinha boba culpabilizante? Como lidar com tudo isso? Não há uma receita, como nunca há – embora estejamos sempre em busca de uma. O que há, então? Escolhas. Escolhas a respeito de que tipo de olhar dirigimos ao mundo, à criança, aos eventos da vida.

O texto que segue abaixo foi escrito por mim no ano passado, na véspera do Natal, quando eu me preparava para receber em minha casa parte da minha família e alguns amigos.
Muita coisa mudou deste então na minha vida e na vida da minha filha. Vivemos coisas muito impactantes nesse relativamente curto intervalo de tempo entre 24 de dezembro de 2013 e hoje, 26 de novembro de 2014. Meu pai partiu alguns dias depois... De fato, nossos últimos – e fartos, sempre fartos – abraços foram trocados entre os dias 24, 25 e 26 de dezembro do ano passado. Nossa última foto juntos foi tirada na noite de Natal. O último contato entre ele e minha filha foi em um pequeno show improvisado que ela fez para ele, arrancando dele largas e sonoras risadas. Depois disso, não pude abraçá-lo novamente. Também nesse intervalo de tempo, eu me separei. Não faço mais parte de uma família mononuclear. Hoje sou uma mãe solteira, vivendo todas as questões que cercam essa forma de viver. Sem família por perto, fazendo doutorado, reestruturando, com o carinho e apoio de minha filha, a minha vida, as nossas vidas. E além de ainda estar processando dois tão fortes lutos em tão pouco tempo... ainda vem chegando o Natal. Cheio de seu significado simbólico, suas emoções, seus sentimentos, e uma certa tensão que paira sobre o coletivo.
Quando escrevi o texto a seguir, não imaginava que viveria tudo o que vivi depois. Não imaginava que seria preciso ressignificar, mais uma vez, o Natal. Então hoje, quando as pessoas me perguntam sobre de que forma eu lido com a questão do Papai Noel junto à minha filha, e com todo o simbolismo do Natal, só me ocorre responder uma coisa. Queridas e queridos: vivam! As escolhas conscientes que precisamos fazer não devem ser feitas apenas no Natal, mas ao longo de todo o ano. Vivam! Cuidem de suas filhas e filhos. Amem-se. Estimulem a empatia, o amor, a solidariedade nessas crianças. No fim, é isso e apenas isso que vai determinar a sua forma de lidar com o assunto: a sua escolha sobre que lado você quer ver e quer enfatizar, a forma como você trata o assunto, seja lá a decisão que tomar.
Apesar de tudo que nos aconteceu neste tumultuado 2014, eu já fiz a minha escolha.
Eu escolho ver o lado bom.
Se Papai Noel sim ou se Papai Noel não?
2014 me ensinou a fazer outras perguntas.


ESCOLHA VER O LADO BOM.
Publicado originalmente no blog Cientista Que Virou Mãe em dezembro de 2013.

Papai Noel não existe.
É um absurdo que um senhor de idade use uma roupa tão quente em um país idem.
Compra-se, compra-se, compra-se e Natal virou sinônimo de comércio.
Renas não voam - que ideia...
Raras são as casas que possuem chaminés e por que cargas d'água, existindo a porta, um ser humano preferiria se jogar por uma?
A ideia do Natal tem sido usada como chantagem para as crianças durante todo o ano. Ganhará presente aquele que se comportou bem, que foi bem na prova, que não bateu nos amigos, que obedeceu pai e mãe, que fez as orações antes do jantar.
Há infindáveis sobras de comida no dia seguinte, porque cozinhamos muito mais do que precisamos.
Conflitos familiares teimam em aparecer nesta exata época.
Quem está sozinho nesta data fica tristonho.
Muitas vezes, crianças anseiam mais pelos presentes que pela oportunidade de reunir amigos e famílias.
Natal é uma festa cujo sentido primordial foi modificado há muito tempo, para aqueles que creem em seu sentido espiritual.
Reunião de família no Natal tem 80% de chance de terminar em confusão, em cobranças, em tios e tias fazendo perguntas cretinas ou usando de humor duvidoso.
Mentira?
Não, tudo isso é verdade.

Papai Noel existe.
Tanto quanto a Bernuncia, a Dona Maricota (personagens da manifestação folclórica catarinense Boi de Mamão), o sapo que não lava o pé, as galinhas que são amigas do Júlio, o Manny, o Diego e o Sid. Sem esquecer do caranguejo que não é peixe, da barata que tem saias de filó e de uma tal galinha azul (impressionante como galinhas azuis de tempos em tempos voltam para povoar o imaginário humano, já reparou?).
Para quem espera por um presentinho, existem as artesãs e os artesãos, que fazem tudo um a um, com suas mãos e suas ideias. Existem também os amigos que produzem ou vendem brinquedos educativos e produtos orgânicos que movimentam a roda da economia solidária, justa e sustentável.
Nem todas as casas possuem chaminés. Imagine quanto de árvores precisaríamos cortar para produzir ainda mais lenha. No lugar de chaminés, temos portas e janelas abertas para deixar entrar o vento e cumprimentar o vizinho.
Muita gente tem usado o Natal para contar uma história, impregnada ou não de conceitos religiosos. Não uma história de um menino santo. Mas de uma mãe que viajou para longe a fim de salvar seu filho de ser machucado e que contou com o apoio de seu companheiro - que não era pai biológico do menino, como tantas famílias nos dias de hoje. É sim uma bela história. Mais acolhedora e simpática que aquela do tal lobo que engoliu uma idosa acamada, por exemplo.
Conflitos familiares que surgiram ao longo do ano também têm mais chances de serem resolvidos na época do Natal. Talvez porque as pessoas anseiem estar juntas e estejam cansadas de guerra e desentendimentos.
Quem está sozinho ou vive longe da família aproveita o Natal para reunir amigos que também estão sozinhos ou longe de suas famílias. Gente que passa o ano inteiro assim, distante de seus familiares, mas perto de gente que elegeu para ser sua família em função do companheirismo, da força dada ao longo do ano, da parceria e confiança mútuas.
Quem já precisou passar véspera de Natal ou a própria data em hospitais, adoentado ou acompanhando quem convalescia, sabe que é bastante comum aparecer um grupo animado de pessoas que cozinharam muito nos dias anteriores para aqueles que não poderiam cozinhar. Montam mesas decoradas fartas de frutas, bolos e muito carinho apenas para celebrar junto a completos desconhecidos a existência da vida e do sentimento de comunhão como seres humanos – já vi e vivi isso.
Mentira?
Não, tudo isso é verdade.

Para todas as histórias existem muitos lados.
Se o Natal é uma data consumista? Para alguns. Não para outros.
Se o Natal é uma bobeira religiosa? Para alguns. Não para outros.
Se o Natal é um sentimentalismo barato? Para alguns. Não para outros.

Como lutar pelo respeito às diferenças e ignorar os múltiplos lados do Natal?

Para minha família, é uma data constantemente marcada por saudade.
Perdemos gente muito querida em época de festividades natalinas.
Moro distante de minha família original, que vejo com muito menor frequência do que gostaria.
Não temos parentes próximos por perto.
E nem por isso nos deixamos entristecer nessa época.
Apenas porque temos mais motivos para celebrar que para entristecer.
Estamos aqui.
Estamos saudáveis.
Estamos sãos.
Estamos críticos e alertas.
E temos nossos amigos... 
Essa gente altruísta e carinhosa que nos acolhe durante mais de 300 dias por ano. Que nos abraça, nos apoia, cuida dos nossos filhos em comunhão, divide o que tem. Gente com quem dividimos a vida diária, repleta de desafios e superações.

É preciso dizer às pessoas o quanto são importantes para nós. É preciso que saibam o quanto são importantes. Em um mundo de tanto desprezo, onde é tão fácil agredir o outro sem qualquer motivo, onde parece ser mais fácil ignorar o amor que reforçá-lo, celebremos a amizade e a importância que o outro tem para nós.
Isso é mais importante que acreditar ou não num velho barbudo vestido de vermelho e com certeza passando muito calor.

Esse ano, Papai Noel não virá de corpo presente, apenas em intenção e sinos tocando. Os presentes serão deixados no gramado, próximo ao portão, onde poderá ser visto um pedaço de tecido vermelho de quem tentou fugir e acabou rasgando os fundilhos. 
Para você isso é enganação?
Para mim são sonhos de infância e cultura popular.
É uma questão de escolher o lado que se quer ver.




Quando não planejei meu caminho, eu o encontrei...

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Era apenas mais uma manhã comum de sábado. Dormi sozinha e fui acordada muito cedo por uma pequena carinhosa, que se aconchegava comigo tendo vindo de seu quarto, dizendo: "Mamãe, já é de manhã. Ainda é cedo. Vim dormir mais um pouquinho, agarradinha com você".
Eu precisava me levantar e agilizar os planos para um compromisso. Mas, por motivos alheios à minha vontade, os planos não deram certo...
Eu poderia ter me aborrecido e arrastado o aborrecimento sábado a fora. Mas então me lembrei que uma pequena cheia do mais sincero amor me esperava. Deixei o aborrecimento de lado, voltei para a cama e me aconcheguei com ela. Ela se virou para mim, me abraçou e disse: "Isso, mamãe, vamos dormir mais um pouquinho. A gente precisa...".
Acordamos juntas, entre dezenas de abraços e beijos e preguicinhas das que gostamos tanto de fazer. Só nós duas, esparramadas na cama. Então nos levantamos, abrimos as janelas dos nossos quartos, fomos ao banheiro, lavamos nossos rostos e brincamos mais um pouco, escovando nossos dentes.
Tomamos nosso café da manhã ouvindo Blues Traveler, depois de abrir todas as portas e janelas e deixar o sol entrar. Nos vestimos em meio a piadas, risadas e correrias entre meu quarto e o dela, sem saber ao certo quem era a criança das duas...
O telefone tocou. Eram amigos nos convidando para ir com eles assistir ao campeonato de windsurf. Fomos. Ela completamente radiante ao ver todas aquelas velas e a movimentação que acompanhava a montagem dos equipamentos, o pessoal entrando na água e domando o vento. Um pouco corria, um pouco assistia, um pouco escalava uma pedra ou conversava com a gente, como antiga entendida dos paranauês daquele esporte que ela via pela primeira vez.
Voltamos para casa - eu havia combinado de passar a tarde de sábado estudando com um grupo de amigos do doutorado para uma prova muito difícil que teremos na próxima semana.
Chegamos. Juntas, abrimos todas as portas e janelas para receber os "amigos do doutorado da mamãe". Eles chegaram e ela os foi receber no portão. "É aqui, gente! Pode parar o carro ali!".
Deu as boas vindas ao meu lado. Abraçou um a um. Disse: "Eu sou a Clara e é aqui que eu moro. Minha mãe mora aqui também, ela é a Ligia". Levou-os até a sala e simplesmente disse: "Podem estudar, gente".
Eu já havia explicado, no dia anterior e durante a manhã, que estudaríamos muito essa tarde, pois a mamãe e os amigos tinham uma prova muito difícil pra fazer. Sua resposta: "Tudo bem, mamãe, vou ficar aqui do seu lado e cuidar de tudo".
Assistiu a um filme enquanto estudávamos, esparramada no sofá entre mil almofadas coloridas. Depois, sem que ninguém sugerisse, foi cuidar de suas plantas - ela tem um canteiro que é só dela e que, ao apresentar aos novos amigos, fez questão de dizer "Eu que mando em tudo aqui nesse jardim". Cuidou de suas plantas, voltou para a sala, sentou-se ao nosso lado, em sua mesinha e, cantando, ficou ali desenhando.
Brincou com seus brinquedos. Nos contou uma história de parto "mormal". Correu muito entre a sala e o quintal. Cuidou das bicicletas. E, terminando enfim nossos estudos, saímos todos para aproveitar o início da noite na beirinha do mar.
Ela com a gente, sempre sorridente, sempre falante, sempre brincalhona e parceira.
Pediu seu tradicional pastel de vento - que o garçom apelidou de "Pastel Minuano da Clarinha" - e tomou seu suco de limão. Correu muito na praia, pés descalços na areia, enquanto descansávamos de horas e horas de estudo e ríamos e conversávamos. Cansada, se aconchegou no meu colinho e quando eu pensei que ia dormir, disse bem alto: "Mãe, hoje eu ainda aguento um churrasco!". Mas como a mamãe sabe até onde vai a resistência da filha - e a sua própria, embora tantas vezes pareça que não - voltamos para casa, nos despedimos de nossos amigos, dissemos a eles que são sempre bem vindos, e nos recolhemos.
Ela tomou um longo banho ao som de Love of My Life, cantada por nós duas juntas, e dormiu desmaiada.
Jamais na minha vida eu imaginei que um dia teria uma amiga tão companheira, tão cúmplice, tão parceira, que ao aceitar acolhimento, também me acolheria. Que ao aceitar meu cuidado, também me cuidaria. E que me apoiaria em cada passo do caminho.
Um dia, quando eu estava grávida, uma pessoa que eu não conhecia muito bem apenas se aproximou de mim e disse: "Essa menina que está aí será sua maior companheira de vida".
Eu não sabia que era uma menina...
Eu não sabia que ela tinha toda razão...
Levei 32 anos para encontrar minha filha Clara.
Eu não a planejei. E ainda assim, a despeito de todos os planos rigorosamente feitos (e desfeitos logo depois), ela chegou. Chegou, me ensinou milhões de coisas e continua me ensinando. Todos os dias, em cada situação.
Ensinando a real dimensão do amor. O poder da compreensão e sinceridade. O poder e magia da empatia, do olho no olho, do abaixar-se para se dirigir a alguém que não alcança teu olhar, de dizer a verdade, de ser sincera, de não culpar outra pessoa por seus problemas, de se acalmar, de se doar, de ser companheira de alguém.
E, principalmente, de entender verdadeiramente que não planejar viver algo não é sinônimo de desvio de rota...
Pois foi somente quando não planejei meu caminho, que o encontrei.

Grata, filha. Você tem apenas 4 anos e me ensinou a lição mais importante desta vida. Que doutorado nenhum seria capaz de me ensinar.



Em 2015: demore-se. E esteja vivo. Mas de verdade mesmo.

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Um dia a gente vai perceber que viver sem sentir não é viver. Que viver implica em sorrir, em brincar, em amar, em se divertir... Mas também em sofrer.
Que sofrer não é uma pausa na vida, um momento em que o trem descarrilha e te leva para onde você não tinha que ir porque, afinal, gente é pra brilhar e não pra sofrer. Desculpe dizer isso logo agora, no fim de um mês em que parece que todos estão felizes, radiantes, caridosos e empáticos, fazendo planos até mesmo para a conquista do mundo e o fim do embargo a Cuba no ano vindouro (ops...).
Mas sofrer é vida também. Faz parte dela. Faz parte de nós.
Ninguém está aqui para ser feliz somente. Essa cláusula não está no contrato, nem em letras miúdas. Quando nossos pais e mães nos disseram, lá atrás, quando chegamos, que seríamos felizes para sempre, que nada nos aconteceria de ruim ou desagradável, que seríamos os mais felizes do mundo, estavam apenas demonstrando seu mais sincero e desmedido amor. Mas, olha amigo, não era verdade...
Ser feliz sempre e para sempre, relegando aos reles mortais – que não nós – todo possível sofrimento, enquanto somente os seres especiais – agora sim, nós – seríamos dignos de louros e alegrias constantes, infinitas, é uma ideia utópica que se ensina às crianças quando elas ainda são muito pequenas. E que é reforçada todos os dias. Até o dia em que for tarde demais para girar o botão do “você também vai passar por isso”, “dor é algo que se sente mesmo”. E for tarde demais para explicar que, sim, vamos sentir coisas um pouco diferentes da alegria. Um pouco mais próximas de um dia nublado e chuvoso. E não um constante céu azul e ensolarado...
Desde então, passamos a ser doutrinados a esconder a tristeza, a não vivê-la, a não falar sobre ela, a sublimá-la, porque só a felicidade nos interessa, só feliz é que vale a pena viver e vamos esquecer tudo o que diz respeito à dor.
E não chore mais.
E não sofra tanto.
E engula esse choro.
E sorria pra foto.
E toma aqui esse chocolate.
E vamos ignorar toda tristeza, todo o sofrer, todos os revezes, e toda nossa humanidade que chora, que sofre, que sente, que nos limita – sim, temos limites – que nos torna frágeis e vulneráveis.
E não vamos chorar na frente das crianças. E vamos esconder delas todo nosso sofrimento. E vamos falar de inúmeros ciscos, rinites, alergias, que nos irritam os olhos e os deixam vermelhos, com nariz pingando e voz embargada. E vamos nos trancar no banheiro. E chorar sozinhos. Solitários. Em momentos de humanidade desamparada. Lá. Dentro das quatro paredes. Escondidos. Para que “saia tudo de ruim de dentro de nós e possamos retomar a vida”. Aquela vida. Feliz. Radiante. Que acorda sempre vestida de branco, pronta para passar margarina no pão e sorrir para a câmera, ao lado de sua linda família e dentro da sua casa própria. Aí sim. Eis a vida que se quer. É isso aí. Você conseguiu. Parabéns.
Então a gente cresce.
Cresce e se depara com ela, a vida real. Cheia de prazeres. Cheia de dores.
Aos prazeres: toda a disposição do mundo. A receptividade. A aceitação. E vamos moldar nossas vidas para ser sua busca constante, porque eles é que valem a pena. Vamos nos jogar de penhascos. Vamos emendar noites. Vamos radicalizar à sua procura. Fazer dois doutorados. Casar 5 vezes. Trabalhar 50 horas semanais. Juntar cifras para comprá-los. Todos. Não ficará sequer um longe de nós. Não passará um mísero café com bolo numa tarde comum. Vamos fotografá-los. E mostrar como eles estão conosco. Eles. Os prazeres. São nossos, todos nossos. Somos merecedores. Vencemos. Uma espécie de meritocracia epicurista desvairada.
Às dores: escolha sua alternativa. Negação? Máscaras? Fugas? Quais fugas? Psicoativos ilegais? Ou os legalizados? Subir o morro atrás de pó? Encher a cara? Abandonar alguém? Um remédio pra dormir? Outro pra acordar? Sexo desvairado? Comprar sempre, comprar tudo? Maledicência, que te faz esquecer por alguns instantes da sua dolorosa vida para focar na dor alheia? O que vai ser? O cardápio é farto, acessível: um compêndio de fugas à sua disposição. Tudo para tornar a sua vida mais feliz. Mais longe das dores. Mais como se quer que ela seja.
Ou encará-las? Ou aceitá-las? Ou se tornar próximo delas? Ou vê-las como parte indelével desta incrível experiência chamada vida [que todos queremos, que todos prezamos, que todos desejamos que seja melhor]?
Hoje vim apenas para fazer um convite. Um convite para 2015. Um projeto de vida para 2015.
Que você acorde em um certo dia e, ao abrir os olhos e perceber a sua dor, que você não a expulse. Que não finja que ela não existe. Que não tente dissipá-la às custas de si mesmo com a ajuda de qualquer coisa. Que você acorde, se sente, olhe no olho dela, naquele olhar cínico e desafiador que ela insiste em te lançar e diga: “Oi”.
Não será simples. Não será fácil. Exigirá de você toda sua força interna – que você tem. Diga: “Oi. Vamos nos entender?”.
É preciso fazer isso.
Na verdade, é a única forma de colocar as coisas na devida perspectiva. Nós somos maiores que elas. Não se dope. Não se anestesie. Não se tire da jogada. Encare. Peça ajuda, ajuda humana. Ajuda que fale, que abrace, que te acolha, que te ampare. Fale. Fale que está doendo, que você precisa de ajuda, mostre onde dói. Se preciso for, use as ferramentas que o desenvolvimento da ciência tornou possível, use sim! Mas dê a elas seu devido status: são ferramentas! Devem ser usadas por você. Não você por elas.
Quando vamos aprender que sofrer faz parte, que é preciso acolher o sofrimento até que ele se amenize dentro de nós e possamos novamente sentir o vento da alegria bater no rosto? Quando vamos encarar os revezes e as tristezas – humanas, absolutamente humanas – como parte inerente da vida e não como tormento, ou mazela, ou algo a ser evitado constantemente, de segunda a segunda, 24 horas por dia?
Quando vamos ter aulas sobre acolhimento e transformação da dor nas escolas? Quando vamos aprender a lidar com elas, como parte de nós?
Todas as tentativas de esconder a dor fracassam.
Todas as ferramentas criadas para “diminuir o tempo da dor” ou “impedi-la de se manifestar” são passos para o desconhecimento de nós mesmos. É preciso acolhê-las. Entendê-las. Dar tempo para que venham, extravasem, se enfraqueçam e partam. Deixando-nos com a força de quem soube lidar com elas. Mas enquanto não conseguirmos fazer isso, enquanto não conseguirmos eliminar a ameaça e o medo da dor, é preciso acolher. Não a nossa própria somente. Mas também a do outro. Porque a dor de quem a gente ama é a nossa dor. Saber que alguém de quem se gosta verdadeiramente está sofrendo é sentir em si mesmo o sofrimento. Quem for incapaz disso, de sofrer a sua dor, de sofrer a dor do outro, não está tão vivo assim.
A vida passa enquanto estamos exercitando a pequenez. E - o que pode ser surpreendente - uma hora ela acaba. Assim. Puf. Sem avisar. Sem dizer que aquele foi o último abraço. A última foto. A última conversa. O fim dessa vida que conhecemos não dá aviso prévio.
O que se celebra no Natal deveria ser celebrado todos os dias. Da hora que se acorda à hora que se volta a dormir. Mas esquecemos disso... 
Mas tudo bem, porque logo chega dezembro e a gente compra um monte de luzinhas e árvores e presentes pra celebrar... Celebrar o que mesmo? 
Se você não souber o que é preciso celebrar, talvez seja importante começar de novo, e tirar as vendas dos olhos, e olhar o outro pela primeira vez. Vai se surpreender quando encontrar o outro e... encontrar a si mesmo dentro dele. E descobrir que somos todos as mesmas pessoas. Sendo felizes, e sofrendo, e vivendo, e experimentando todo tipo de humanidade. Às vezes, nos vemos tanto neles que fugimos. E fugir é um erro. Erros são humanos. Mas desculpar-se é mais.
A dor de quem a gente ama é a nossa dor. Deveria ser. Ou não tá valendo grandes coisas nossa viagem, e já daria pra descer no próximo ponto...

A ideia contida em todas essas linhas poderia ser transmitida em menos de 140 caracteres com a frase: "Ame o outro, ame a si mesmo. Ame. Errou? Todo mundo erra. Peça desculpas sinceras. Feriu? Cure. Cure com amor". Mas acontece que eu não sou sintética. Não gosto de tornar breve o que não é. Aliás, sofro muito quando algo que não era para ser, torna-se breve. Desculpem por não escrever coisas importantes em duas linhas. Estou aprendendo a dedicar tempo ao que é realmente importante. E falar sobre amor é uma dessas coisas importantes. Sobre esse amor que dedicamos aos amigos, aos filhos, aos companheiros de vida.
Que em 2015 as coisas sejam longas. 
Que deixemos as coisas breves e partamos para o longo e vasto amor. Aquele que nos torna reticentes, demorados... Nas nossas vidas e nas vidas dos outros.Estou cansada desse mundo buscando brevidade. Ele não está nos levando para bons lugares...
Um dia a gente vai perceber que viver sem sentir – a própria dor, a dor do outro – não é viver. O que eu quero em 2015? Quero que nos demoremos uns nos outros. Que estejamos vivos. Mas de verdade mesmo.

Eu me chamo Antônio

Devagar: crianças.

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O ano corre, as tarefas do mundo adulto se sobrepõem, se acumulam, nos sobrecarregam e a chegada dessa época do ano traz junto a sensação de que "ufa, enfim será possível relaxar", mesmo que por poucos dias.
Fazemos planos de andar pela casa de pijama, ou de deixar o celular no mudo, ou de não responder aos e-mails, ou de acordar bem cedo apenas para saborear lentamente um cafezinho bem passado, ou de dormir até meio-dia, ou qualquer outra coisa que, para cada um de nós, represente um momento de pausa em meio a tantos compromissos, que devoram nosso tempo, engolem nossa energia e nos levam muitas vezes à beira da exaustão, física, mental e emocional.
Nessa correria - e na pausa dela, que as festas representam para muitos de nós - acabamos esquecendo que as crianças também podem estar exaustas.
Muitas vezes achamos que, por serem crianças, não se preocupam com nada, não se cansam com tanta facilidade, têm toda a energia do mundo e não precisam de tanto descanso assim, já que não têm "compromissos sérios" ou "grandes responsabilidades".
Mas isso é um grande erro, fruto do "adultismo", um jeito de ver o mundo que supervaloriza o adulto em detrimento das crianças, que as considera menos capazes de decisões sobre si, ou menos conscientes do que se passa à sua volta, ou menos envolvidas na rotina por vezes massacrante de suas famílias, um jeito de ver o mundo que as oprime e as secundariza na ordem do dia. É o adultismo, inclusive, que faz com que muitas famílias criem para suas crianças uma agenda de compromissos quase desumana, a fim de que desenvolvam habilidades, responsabilidades, organização, foco, meta. Isso tudo com 3, 4, 5, 6 aninhos, ou mais. É claro que esses pais e mães acreditam verdadeiramente que, agindo assim, estão fazendo o melhor para elas, proporcionando experiências ricas, que farão a diferença no futuro e trarão melhores oportunidades. Então as matriculam na escola tradicional, e na aula de inglês, no judô, no balé, na musicalização, na ginástica olímpica, no piano e em mais uma infinidade de tarefas e compromissos.
Mas a ausência de tais compromissos excessivos também não é sinônimo de vida infantil tranquila e sem cansaços. Crianças que não seguem uma agenda corrida ou extremamente exigente, que podem levar a vida com mais flexibilidade, que não estão inseridas em rotinas tão rígidas, também podem estar bastante cansadas. Isso porque existe um tipo de exaustão tão ou mais importante que a física: a emocional.
Engana-se quem pensa que uma criança estará sempre protegida contra as intempéries ou mudanças vividas por sua família, ainda que a família se esforce muito para protegê-la. Crianças sentem tudo. Podem não saber os detalhes das situações, mas sentem exatamente que algo está acontecendo. Sentem a tensão, vivem a dúvida, sentem o que seus pais e mães também estão sentindo. E isso não é algo de todo ruim não, pois mostra que a criança é membro ativo e participante daquela dinâmica familiar, que não é apenas um figurante, e que as decisões tomadas também passam por elas - e muitas vezes são pensadas e tomadas justamente em função delas. Mas sempre é importante lembrar: crianças sentem e vivem o que seus pais e mães estão sentindo e vivendo, estão vinculadas a eles - pelo menos espera-se que estejam, e de maneira positiva...-, sentem suas alegrias e angústias, preocupam-se com eles.
Então chegam as férias e festas de fim de ano, que para tantos é sinônimo de brincar, de se divertir, de estímulo, aventura e descoberta. Algumas famílias chegam a planejar dezenas de atividades divertidas e estimulantes para entreter seus filhos. E começa a corrida contra o "tédio infantil". Corra. Brinque. Divirta-se. Chame seu vizinho para jogar bola com você. Vamos para a colônia de férias. Invente novas brincadeiras. Não desperdice seu tempo e seu verão dormindo. Não fique aí parado. Vá andar de bicicleta. Vá jogar seu novo jogo eletrônico, ou testar um novo equipamento. Faça alguma coisa para se divertir. Mantenha-se ativo.
Mas essa associação quase obrigatória entre criança e estímulos - quando acreditamos que é preciso estimular as crianças cada vez mais para que tenham seu tempo preenchido - pode não ser tão positiva quanto se pensa. Podemos estar atropelando as crianças. Podemos estar sobrecarregando quem também precisa descansar.
Podemos estar esquecendo de ensiná-las que nem sempre ausência de atividade é sinônimo de tédio e que, muitas vezes, tédio é apenas falta de um olhar acolhedor sobre o descanso, sobre momentos de tranquilidade em meio à tão conhecida agitação.
Crianças precisam descansar. Física e mentalmente também, mas principalmente emocionalmente. E as férias são ótimos momentos para isso.
Elas precisam ficar sem fazer nada. E entenda que o "nada" aqui não tem a conotação de "ficar parada em frente à tv, computador ou qualquer outro eletrônico". Tem, isso sim, conotação de CONTEMPLAÇÃO. Contemplação, descanso, relaxamento, tranquilidade. Dormir o quanto quiser. Proporcionar conversas tranquilas e agradáveis com elas. Preparar um café da manhã com calma, paz e tranquilidade, junto com elas. Não soterrá-las em brinquedos mil. Curtir uma preguicinha juntos. Contar histórias "de cabeça", inventar algumas, e não apenas seguir roteiros prontos ou livros de histórias. Observar o mundo ao redor. Calmamente. É preciso ensinar as crianças a valorizarem seu tempo livre, seu tempo ocioso. E mostrar que é também na ausência de atividades que elas podem se conhecer melhor, se observar, entrar em contato com elas mesmas.
Crianças são esponjas humanas. Absorvem tudo ao seu redor, inclusive durante momentos de tensão ou de dificuldades. Elas também se sobressaltam. Elas também ficam exaustas. Elas também precisam descansar, relaxar, contemplar, ficar de pernas e papo para o ar, ouvir o silêncio que vem de si mesmas e desenvolver uma boa relação com isso.
Ensinar as crianças a bem acolherem seus silêncios internos, a bem se relacionarem com os momentos de ócio, é ensinar um futuro adulto que ele não precisa fugir de si ou ter medo de estar sozinho. Que calmaria não significa ausência. Que não é preciso ir atrás de pessoas e aventuras a todo custo. E que contemplação dá um significado ainda mais especial à vida.

Estou viajando com minha filha e assim ficaremos por mais alguns dias. Estamos hospedadas em um trailer pequeno e aconchegante. Trouxemos alguns poucos brinquedos, massas de modelar, um caderno de desenho, lápis, canetas e agora ela acaba de ganhar uma bicicleta. Não temos horários para nada. Acordamos quando os olhos se abrem. Dormimos quando dá sono. E tenho observado atentamente seu comportamento. Ela desacelerou completamente, talvez que pelo simples fato de termos rompido a rotina. E olha que é uma criança sem agenda corrida, sem horários rígidos, e com uma rotina bastante flexível e amigável. Mas acontece que ela vive tudo o que eu vivo, sente o que eu sinto, é parte ativa e participante da família e minhas decisões sempre a envolvem de maneira decisiva. E assim, estando tão fortemente vinculada a mim, pode sentir o que sinto, viver o que vivo, ainda que em grau diferente.
Ontem, quando estávamos deitadas descansando, eu contando para ela, no aconchego do trailer, uma história de uma personagem que criei há um certo tempo e que a acompanha em seu crescimento, ela se levantou, olhou para mim e disse:
- Mamãe, estou adorando essa viagem...
Mostrei-me feliz, disse que também estava amando viajar com ela e perguntei do quê ela estava gostando mais.
- Ah, mamãe... Estou gostando que aqui as coisas não acontecem o tempo todo.
Surpresa com a resposta, pedi que me explicasse melhor o que estava sentindo.
- É que lá em casa a gente fica fazendo, fazendo, pensando, pensando. As coisas ficam acontecendo o tempo todo. É isso, é aquilo. Muita coisa acontecendo. A gente fica feliz, depois fica triste, e depois tem correria. E as coisas não param de acontecer. Aqui a gente pode ficar de preguicinha, e sempre juntas, e descansar muito. E as coisas não acontecem o tempo todo.
Perguntei:
- Você gosta quando as coisas não acontecem o tempo todo, filha?
- Sim, mamãe. Eu fico cansada quando você fica cansada. A gente tem que fazer férias sempre. Férias mesmo se a gente não for viajar. Pras coisas pararem de acontecer. Todo mundo tem que descansar. Criança também tem que descansar...
Nesse mundo tão corrido, não nos esqueçamos disso: crianças também precisam descansar. Precisam de ócio, de silêncio, de contemplação.
Ensinar, ainda na infância, que silêncio e solitude não são sinônimos de solidão e que calmaria nem sempre é tédio, é criar adultos que não sintam necessidade de buscar emoções a todo custo apenas para fugirem de si mesmos.
Estejamos atentos.
Onde houver criança, que possamos ir mais devagar.



Ministério da Saúde divulga medidas para estimular o parto normal e combater a epidemia de cesarianas no Brasil

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O Ministério da Saúde (MS) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) publicam nesta quarta-feira (07/01) uma resolução que estabelece normas para o estímulo ao parto normal e a consequente redução de cesarianas desnecessárias na saúde complementar (aquela que é coberta por planos de saúde). Pretende-se ampliar o acesso à informação das mulheres que utilizam planos de saúde, que poderão solicitar as taxas de cesáreas e de partos normais dos estabelecimentos de saúde que pretendem utilizar, dos médicos e das operadoras.

A resolução pretende ser um marco na mudança do cenário obstétrico nacional, caracterizado por mais de 80% de cesarianas no sistema suplementar, e se baseia principalmente nos riscos imensamente maiores às mães e aos bebês que se submetem às cirurgias para o nascimento: 

- aumento de até 120 vezes na probabilidade de problemas respiratórios no recém nascido
- risco de morte da mãe aumentado em mais de 3 vezes
- 25% das mortes de recém nascidos e 16% das mortes infantis no Brasil estão relacionada à prematuridade, principalmente à prematuridade produzida por nascimento antecipado.

Em breve, vamos discutir de maneira objetiva e simples o que representam essas mudanças e o que de fato elas pretendem modificar na assistência ao parto no Brasil.
Mas é importante ter os pés no chão: mudanças profundas e permanentes não se produzem por decreto ou resolução. Mais importante que isso é a mudança de mentalidade, paradigma e consciência que se pretende alcançar sobre o evento do nascer. Não basta impor medidas. É preciso que toda a coletividade se engaje na discussão do que, de fato, representa humanizar o nascer, combater a violência obstétrica, lutar contra o mercantilismo da saúde e o corporativismo que tenta controlar corpos e vidas e subjugar o processo de nascimento.

Abaixo você poderá ver, de maneira muito didática, a apresentação produzida pelo MS e ANS sobre a nova resolução e o que se pretende.


Medidas para o estímulo ao parto normal na saúde suplementar - MS e ANS

Geraldo Alckmin e a violação dos direitos de mães funcionárias públicas

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Todo mundo sabe que a sociedade ainda caminha a passos lentos no reconhecimento dos direitos das mulheres. Todo mundo sabe que existe uma séria iniquidade no acesso da mulher ao mercado de trabalho, marcado por desigualdades salariais, por serem vistas como indivíduos com menor capacidade intelectual, por serem preteridas. Todo mundo sabe que o mercado de trabalho vê a mulher como um "investimento arriscado", em função de sua capacidade biológica de gerar filhos. Sem qualquer tipo de exagero, mulheres no mercado de trabalho são encaradas como "bombas relógios", prestes a explodir (engravidar) a qualquer momento. Todo mundo sabe que é assim que as mulheres, todas elas, são vistas: como receptáculos em potencial, meros corpos com finalidade utilitária.
Quando estas mulheres se tornam mães, a situação fica ainda mais desigual, ainda mais séria. Exige-se que aquela profissional se dedique de maneira idêntica à sua situação anterior, antes da chegada dos filhos, ignorando a real e urgente necessidade de adaptações. O mercado passa a vê-la como profissionalmente menos disponível. E realmente somos. E parece bastante simples entender o motivo, não? Sim, ainda somos os principais cuidadores dos filhos que não são só nossos. Ainda somos nós as principais responsáveis por levá-los ao colégio, por preparar o lanche, por cuidar de suas roupas, cortar suas unhas, procurar possíveis piolhos que vêm da interação com outras crianças, velar a febre noturna, selecionar um bom pediatra, cuidar da qualidade da alimentação e manter uma rotina de sono minimamente razoável. Agendar o dentista, cortar o cabelo, cuidar do probleminha dermatológico, zelar pela boa qualidade das companhias, providenciar um quarto confortável, aconchegante e limpo, com roupa de cama e banho idem. Ainda somos as principais responsáveis por zelar por sua saúde emocional e entender de psicologia infantil a fim de poupá-los de traumas, experiências desagradáveis e coisas afins. Ainda somos as principais estrategistas no quesito "preparar as crianças para as mudanças de vida". Sim, todo mundo sabe que ainda somos as principais responsáveis por tudo isso. Pais realmente participativos, que não veem as crianças como simples ornamentos a acompanhá-los em seus próprios compromissos, como se acessórios fossem, ainda são muito raros, representam uma diminutíssima parcela, e ainda é muito incipiente o movimento de homens pais em busca de verdadeira participação e disponibilidade - física, material, emocional, afetiva.
Mulheres mães ainda são impedidas de participar de eventos acadêmicos. Mulheres mães ainda são impedidas de amamentar em lugares públicos. Mulheres mães ainda sofrem discriminação em lugares como cinemas, restaurantes, cafés e outros lugares ditos "do mundo adulto", onde adultos se julgam no direito de não encontrar crianças. Mulheres mães ainda são apontadas por um braço do próprio movimento feminista, que as julga como subalternas ou inferiorizadas pela condição da maternidade.

Todo mundo sabe disso. Se não sabe, deveria saber, e olhar para de fato ver.
Que a sociedade, de mentalidade ainda muito tacanha, machista e preconceituosa, trate, de maneira geral, as mães dessa maneira predatória, pode até ser historicamente compreensível - eu não acho que seja, mas tem gente que acha. Agora, que o Estado promova, defenda e legitime práticas que excluem as mães do justo e equitativo acesso ao mercado, ou as prejudique, ou tente mantê-las em situação de defasagem, exclusão e desigualdade, aí é inaceitável. Inaceitável. Indignante. Revoltante. E passível de denúncia por promoção da violência. Contra a mulher. Contra as mães.
E isso está acontecendo. No Estado de São Paulo. Comandado pelo governador Geraldo Alckmin.

No final do mês de janeiro deste ano, o governador Geraldo Alckmin moveu uma ação chamada de Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal contra a lei que regulamenta a licença maternidade das funcionárias públicas no período de estágio probatório. Vou explicar melhor. Todo funcionário público empossado precisa passar por um período de estágio probatório de 3 anos. No caso da mulher funcionária pública que engravida, e que tem direito à licença maternidade garantida por lei com duração de 6 meses, Alckmin quer que essa licença NÃO seja incluída no período de estágio probatório. Ou seja: a mulher mãe precisaria passar por um estágio probatório de 3 anos e 6 meses.

Você consegue enxergar o problema, ou os muitos problemas disso?

1) Ter que repor os 6 meses de licença maternidade garantida por lei atrasa a carreira da mulher que se torna mãe.
2) Mulheres que não se tornam mães durante o estágio probatório serão efetivadas MAIS RAPIDAMENTE (6 meses antes) que as que se tornam mães.
3) Essa é uma ação claramente contrária aos interesses das mulheres mães.
4) É uma ação claramente contrária à proteção da maternidade conferida por nossa Constituição Federal
5) Essa ação PENALIZA mulheres pelo fato de terem ficado grávidas.
6) Essa ação é claramente DISCRIMINATÓRIA e, assim, VIOLA os direitos humanos das mulheres que se tornam mães.
7) Essa ação fere tratados internacionais assinados também pelo Brasil que garantem que nenhum tipo de discriminação seja aplicada contra as mulheres. Fere e descumpre especialmente a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, uma lei internacional que se baseia no compromisso dos Estados signatários de promover e assegurar a igualdade entre homens e mulheres e de eliminar todos os tipos de discriminação contra a mulher.
8) Essa ação tenta DESESTIMULAR as mulheres servidoras públicas a terem filhos. E, assim, age no sentido de controlar a vida pessoal dessas mulheres.
9) Essa ação legitima a quebra da isonomia entre servidores e servidoras públicas, desfavorecendo as mulheres.

Um adendo de extrema importância: embora Geraldo Alckmin esteja entrando agora com a Ação Direta de Inconstitucionalidade, para regulamentar uma violação aos direitos das mães e negar-lhes a inclusão da licença maternidade no estágio probatório, ele não está querendo fazer isso NO FUTURO. Ele já está fazendo AGORA. Isso já está em prática. E agora, choque-se: embora a licença maternidade não esteja sendo contada no prazo do estágio probatório, a licença paternidade está! Que nome se pode dar a isso?

O movimento em defesa dos direitos das mulheres, especialmente o movimento que agrega mulheres MÃES, há bastante tempo deixou de ser visto como um aglomerado de mulheres sem voz ativa para ser visto e respeitado como um movimento organizado, articulado, ativo, atuante e que vem promovendo inúmeras mudanças positivas para a realidade das mulheres que se tornam mães. A luta pela humanização do parto e contra a violência obstétrica é um exemplo. O movimento de mulheres mães brasileiras, a despeito de toda a força no sentido de torná-las seres fragilizados, não vai se calar diante de uma ação claramente discriminatória como essa. Já não se calou.

A Artemis - associação sem fins lucrativos que atua como aceleradora social com vistas à igualdade de gênero, à promoção da autonomia feminina e à erradicação de todas as formas de violência contra a mulher - criada e gerida por mães em defesa também dos direitos de mães, entrou na tarde desta sexta-feira, dia 06 de fevereiro, como AMICUS CURIAE na ação promovida pelo governador paulista Geraldo Alckmin. Entrar como AMICUS CURIAE significa entrar como um "Amigo da Corte" em uma ação em que ele não é parte afetada, mas que ainda assim possui interesse na resolução da questão. É como se fosse um "Amigo do Juiz", agindo no sentido de mostrar a ele um lado importante que está sendo desconsiderado. AMICUS CURIAE é, ainda, uma figura nova no Brasil, sendo muito pouco utilizado. Mas representa o pleno exercício da defesa de direitos que podem estar sendo negados.
A Artemis acaba de fazer uma DENÚNCIA sobre essa ação predatória que o governo paulista está tentando promover contra mulheres mães. A denúncia foi também encaminhada para a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, para a deputada Jô Moraes, deputado Ivan Valente, deputada Luiza Erundina, deputada Ideli Salvatti, para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e para a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.

Cada uma dessas instituições e representações políticas recebeu a denúncia acompanhada da carta abaixo.  A denúncia encaminhada pela Artemis, na íntegra, segue abaixo para conhecimento.

O movimento de mulheres mães encontra-se, atualmente, organizado, atuante, ativo, alerta, pronto para defender a nós mesmas, aos nossos interesses e aos interesses de nossos filhos. Tentativas de anulação ou subjugação de nossos direitos não passarão.
Não somos um grupo frágil. Ainda que se queira, de diferentes maneiras, pintar-nos com a tinta da fragilidade. Estamos atentas e estamos em luta. Junto com nossos filhos.


CARTA DE ENCAMINHAMENTO DA DENÚNCIA

Excelentíssima Senhora Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República Federativa do Brasil, Eleonora Menicucci

 A Associação Artemis, no uso de suas atribuições estatutárias, vem expor o que segue e requer a intervenção de Vossa Excelência para obstar situação que configura violação de direitos humanos e de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, perpetrada através de conduta discriminatória, pelo Governo do Estado de São Paulo, às mulheres servidoras que se tornam mães durante o estágio probatório.

Artemis é uma associação, sem fins lucrativos, que atua como aceleradora social com vistas à igualdade de gênero, realizando projetos que promovam a autonomia feminina e a erradicação de todas as formas de violência contra a mulher.

O trabalho desta Organização é pautado na comunicação, informação, dedicação e articulação sobre as necessárias mudanças para que o coletivo feminino brasileiro adquira, gradativamente, uma imagem mais positiva e uma identidade cada vez mais livre, verdadeira, digna e justa, contribuindo, assim, para a construção de um cenário futuro promissor à toda a sociedade.

As nossas ações são de âmbito nacional e voltadas ao atendimento à mulher, através de influência e incidência em políticas públicas, participação no seu controle social e a criação e divulgação de novas tecnologias sociais.

Matéria veiculada no Jornal “O Estado de São Paulo”, de 28 de janeiro de 2015, informa que o Governador do Estado, Geraldo Alckmin, move uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, questionando a inclusão de licença maternidade em estágio probatório de funcionárias públicas. A ação tem por objetivo ver declarada a inconstitucionalidade de dispositivo de Lei Complementar Estadual nº 1.199/2013, para que assim, ao retornar da licença maternidade, a funcionária pública seja obrigada a repor os 6 (seis) meses do estágio probatório.

Após a veiculação da matéria, esta Associação foi procurada por mulheres que, em estágio probatório no Estado de São Paulo, foram penalizadas com o desconto do período gozado da licença maternidade – o que está ocorrendo desde o ano de 2010 – causando-lhes atraso na carreira e perda financeira em relação às colegas que não se tornaram mães e a colegas homens do mesmo concurso.

O Departamento de Recursos Humanos do Estado de São Paulo tem aplicado o desconto do período usufruído de licença maternidade pela servidora, na contagem do tempo de serviço prestado no estágio probatório, para fins de avaliação de desempenho, penalizando a mulher que se torna mãe durante o estágio, ferindo o disposto na Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (“CEDAW”) e praticando verdadeiro controle de natalidade das servidoras públicas estaduais.

A discriminação contra a mulher que é mãe, praticada pelo Governo do Estado de São Paulo, é uma afronta a tratados internacionais ratificados pelo Brasil, e é violência contra a mulher, que precisa ser prevenida e erradicada.

Assim, rogamos a Vossa Excelência, como Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, como guerreira e como mulher, para que adote todas as medidas cabíveis e necessárias para coibir as violações aos direitos humanos aqui relatadas, garantindo o direito de proteção à maternidade das servidoras paulistas em estágio probatório, sem discriminação e penalidades em razão de sua condição feminina, bem como, a realização de uma AUDIÊNCIA PÚBLICA para a discussão urgente da questão da DISCRIMINAÇÃO DA MULHER EM RAZÃO DA MATERNIDADE NO AMBIENTE DE TRABALHO.

No aguardo de vossa imediata intervenção, apresentamos a Vossa Excelência nossos propósitos de admiração e respeito, e nos colocamos à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários.

 Atenciosamente,

Associação Artemis


Ana Lúcia Keunecke
Diretora Jurídica e de Negócios

CONTATOS DA ASSOCIAÇÃO ARTEMIS:

Raquel Marques, presidência: raquel@artemis.org.br
Ana Keunecke, diretora jurídica: analucia@artemis.org.br
Valeria Sousa, legal advocacy, valeria@artemis.org.br




























"Não queria ser mãe? Agora aguenta!"

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Há mulheres que engravidam depois de muito planejar. Há mulheres que engravidam sem nenhum
planejamento. Há mulheres que engravidam sem sequer terem pensado em ser mães um dia. Há mulheres que engravidam depois de muitos anos desejando um filho. Há mulheres que se tornam mães sem engravidar. Há mulheres que ainda estão esperando - a gravidez, o nascimento, a chegada. Todas essas mulheres, sem exceção, passarão ou já passaram por profundos momentos de mudança quando da chegada do filho. Radicais momentos de mudança. Uma mudança que atinge todos os domínios de nossas vidas. Emocional. De disponibilidade. Logística. Profissional. Para algumas, mudanças de valores. Para outras, de carreira. Para outras ainda, de olhar sobre a vida. Para tantas, todas essas mudanças juntas. No tempo de sono. Na divisão do tempo das tarefas diárias. De ressignificação de si mesma no mundo. De reformulação da rotina. Do círculo de amizades. De hábitos alimentares. E tantas outras... E, sim, tudo isso gera angústia.
E como se isso fosse pouca coisa, ainda precisam enfrentar algo extremamente cruel: o confronto e constrangimento que parte de algumas mulheres que já são mães e que já passaram por situações que as que estão esperando ainda irão passar. Mulheres que nutrem e propagam uma visão ácida, áspera e, sobretudo, não empática da maternidade. E que justamente num dos momentos de maior vulnerabilidade e insegurança, disparam contra outras mulheres frases duras como essas:
"Aproveita agora, porque depois acabou sua vida".
"Espera pra ver... Aproveita enquanto pode".
"Prepare-se para nunca mais dormir".
"Logo sua paz vai acabar".
"Não queria? Agora aguenta".
Se você já passou por uma situação de gravidez, a chance de já ter sido alvo de algumas dessas frases (ou suas correlatas) é alta. Eu as ouvi quando estava grávida. Vejo gestantes passando por isso todos os dias. É absoluta e infelizmente comum.

Que tipo de comportamento é esse?
Seria uma espécie de autoafirmação? De deboche? Ou é apenas mais um tipo de brincadeirinha senso comum, feita por quem sequer se deu ao trabalho de pensar sobre o que de fato significa, e que diminui a maternidade, ridiculariza as mulheres, reduz bebês e crianças a estorvos sociais? Com que tipo de valores se está compactuando quando se escolhe fazer esse tipo de comentário? O que se quer dizer, verdadeiramente, com isso? Que tipo de conceito sobre ser mãe e exercer a maternidade nutre quem se sente à vontade para dizer coisas como essas?
Você acha que a maternidade é isso mesmo e não há nenhuma mentira nisso? Desculpe-me, mas preciso discordar veementemente. Para mim, não é. Para inúmeras outras mulheres mães, não é. Mas se para você é, então talvez já saibamos onde está o problema... E ele não está na maternidade. Está na relação que você, particularmente, estabeleceu com ela. Como diria o escritor italiano, "Così è (se vi pare)". Assim é, se lhe parece...

Minha vida não acabou quando minha filha nasceu. Sim, minha vida mudou. Radicalmente. Acabou? Jamais. Teve início. Teve início uma nova forma de vida. Uma vida mais empática, mais preocupada com questões coletivas, mais ligada à responsabilidade que é bem criar um ser para o mundo. Preocupada com transformações pessoais que pudessem refletir na formação da minha filha - afinal, como sempre digo, é pelo exemplo que se ensina mais e melhor.
Aproveitar enquanto pode? O que? Por que não se pode aproveitar depois? Vai haver algum tipo de castração social? De impedimento que inviabilize uma vida? É isso o que está acontecendo com você? Você está se sentindo castrada de alguma maneira? Está sentindo que não está aproveitando sua vida?
Preparar-se para nunca mais dormir? Seu filho não está dormindo? Ele nunca dorme? Por que? Como a rotina de sono é feita na sua casa? Quais são os seus hábitos de sono? E os do bebê? Como vocês se preparam para dormir? O que o momento de ir para a cama representa para a família? Por que está assim tão difícil dormir, para você?
Ter a paz de uma vida toda interrompida por um filho? Você sinceramente acha que seu filho é a antítese da paz? O que está acontecendo para que você considere impossível sentir-se em paz e ser mãe? Como é ser mãe na sua família? Quem te ajudou a construir essa visão sobre a maternidade? Por que?
Agora aguenta? "Aguentar"? O que? Uma criança? É assim que seu bebê ou sua criança tem sido visto? Como alguém a ser tolerado, suportado?

Consegue perceber onde está o problema? Quem está com problema?


Como sempre, essas são frases que mais dizem sobre quem as profere do que sobre seu próprio conceito. A mim, parece muito claro que mulheres que se sentem confortáveis em confrontar outras mulheres com frases como essas, justamente em uma fase de vida em que o apoio e amparo social são tão importantes e podem fazer tanta diferença, estão com problemas sérios com relação ao modo como veem a maternidade. Ao que, de fato, seus filhos representam para elas. Sentem-se diminuídas, prejudicadas, nutrem uma espécie de raiva pelas mudanças que a maternidade operou em suas vidas. Não as enxergam como parte natural da decisão de gestar e criar uma criança. De certo modo, veem a chegada dos filhos como uma espécie de "castigo". Sim, elas estão com problemas. E se elas estão com problemas, elas também precisam de ajuda.

Eu sei que, para você, gestante ou mãe recente, enfrentando as angústias do novo modo de vida, ainda incerta sobre como conseguirá conciliar tudo, comentários como esses podem parecer cruéis, injustos, agressivos, violentos. E realmente são. Mas interrompa o mal estar que você possa estar sentindo e responda à pergunta: ONDE ESTÁ O PROBLEMA?
Não. Ele não está na maternidade. Não está em ter um novo filho. Nem, sequer, na mulher que te disse isso. O problema está no que se incentiva e reforça por aí, nessa sociedade patriarcal agressiva, onde mulheres são consideradas sempre as únicas ou maiores cuidadoras e responsáveis pela criação dos filhos, onde poucos são os homens que, de fato, se responsabilizam pelo filho que também colocaram no mundo. Sim. Essas mulheres estão com problemas. De alguma forma, podem ter sido deixadas sozinhas na missão tão complexa de cuidar de crianças. Sim, podem estar se sentindo castradas, enraivecidas, solitárias.
Assim, te pergunto: quem está com problemas?
Onde está o problema?

Michelli é uma amiga dos tempos da graduação. Nós fizemos o mesmo curso, na mesma universidade, em anos diferentes (ela foi minha caloura). Não tivemos mais notícia uma da outra por bastante tempo, até que nos reencontramos na virtualidade das redes sociais. Hoje, ela está esperando a Isabel, há 7 meses na barriga, bebê muito esperada. Ela mora em outro país, sente-se um tanto longe da família e dos amigos, perdeu um primeiro bebê com 11 semanas de gestação e agora aguarda, ansiosa, a chegada da filha. Por ser mãe pela primeira vez, está sensível, confusa, sentindo-se sozinha, trabalhando dobrado pra compensar a licença maternidade. Muitas de nós sabemos exatamente como é se sentir assim... Num momento de desabafo e buscando alguma forma de apoio, Michelli me escreveu e perguntou à queima roupa:
"Será que as mulheres, depois que seus bebês nascem, tentam aparentar serem melhores que as outras, se tornam sádicas ou simplesmente se esquecem do que passaram?". 
Sua pergunta vem do fato de, ao buscar apoio em outras mulheres, que já são mães, receber de volta, com muita frequência, aquele tipo de comportamento não empático sobre o qual estamos falando.
"Essa é a parte mais fácil... Espera nascer pra você ver!", "Depois piora...", "Esquece a vida como você conhece! Acabou namoro com o marido, cinema, restaurante, viagem...", "Não vai dormir por anos!", "Não queria tanto ser mãe? Agora aguenta...".
E ela termina seu desabafo dizendo:
"Incrivelmente, tenho encontrado mais palavras de alento com as amigas que não têm filhos. Óbvio que não é uma regra, mas  a maioria (esmagadora) das mães parecem tentar se supervalorizar, diminuir ou assustar (como se já não fosse insegurança o suficiente) quem ainda está chegando nesse novo “grupo”. (...)  Já existe pressão demais na sociedade com quem quer ser mãe... Portanto, MULHERES, VAMOS NOS AJUDAR!"
Minha resposta a ela foi a seguinte:
"Quando alguém disser coisas desse tipo pra você, confronte. Diga, docemente: 'Estou numa campanha: troque uma palavra de desânimo para uma grávida por uma de apoio".
Sim, depois que a Isabel nascer, Michelli vai ficar cansada nos primeiros meses, vai sentir que não tem tempo para as outras coisas. Todas nos sentimos assim, isso é totalmente natural. E estar preparada para isso, entender que é uma fase de adaptação e ajustes, é o que nos ajuda a passar por essa fase de maneira mais tranquila. Mas o mais importante é que, embora cansadas, vamos sentir uma coisa nova muito forte, algo sem precedentes, e que algumas pessoas chamam de AMOR. Um tipo diferente de amor, que não conhecíamos antes. E em meio ao cansaço, é possível que também sintamos uma grande força surgir, por vezes uma euforia, que talvez nos leve a dançar no meio da sala, ou a cantar, ou a fazer algo diferente do que já fizemos. Talvez queiramos mudar a vida. Talvez nossa vida anterior não nos caiba mais. Talvez passemos a ver o mundo como um imenso universo a ser desbravado. Talvez tenhamos mais coragem para assumir quem de fato somos. Pelo nada simples fato de termos nos tornado mães. 
Não é fácil ser mãe, não. Mas ninguém que decide seguir adiante com uma gravidez e escolhe ser mãe faz isso buscando facilidade, não é mesmo? O que a gente busca é criar filhos bacanas, sentir essa mudança, fazer bem feito, com responsabilidade, com afeto, sentindo que depende de nós e está em nossas mãos o tipo de mundo que queremos ajudá-los a criar. E isso será mais forte que o cansaço. E a gente vai encontrar novas formas de viver. Vamos namorar na sala, sem gritar, pra não acordar o bebê. Iremos à universidade com nosso bebê à tiracolo. Trabalharemos embalando o bebê-conforto. Vamos inventar novas reuniões sociais, inclusivas, kids friendly. Vamos construir novos círculos de amigos. Vamos fazer yoga com as crias (viu, Michelli, você vai ter tempo sim). Vamos colocar cadeirinhas nas bikes para andar com elas. Vamos dormir agarradinhos em horários estranhos. Vamos passar madrugadas vendo o leite escorrer das boquinhas. Vamos ter coragem para nos libertar de padrões que não nos servem mais. Vamos chorar sim, também. De cansaço, de angústia, de dúvida, teremos crises. 
E é, também, nos braços umas das outras que vamos encontrar morada, força, apoio e sustentação.
Precisa ser assim. Tem que ser assim.
Nós já temos muita gente nos oprimindo. É justo - e necessário - que nos apoiemos umas às outras. Uma mãe "lava" a outra. 

Eu poderia citar muitos artigos que já mostraram os comprovadamente benéficos efeitos do apoio social materno. Ter um grupo de mães que te apoie, sustente, acolha, empodere, fortaleça, ajuda nas adaptações do puerpério, aumenta o sucesso da amamentação, diminui o isolamento social e o embotamento afetivo característico da chegada de um novo filho, torna mais fácil a volta ao trabalho, diminui o cansaço e, principalmente, diminui a possibilidade de ocorrência de agressão contra as crianças. 

Eu poderia falar sobre tudo isso e citar inúmeros artigos. Mas eu prefiro recorrer à afetividade e dizer: chega de frases angustiantes, de ressaltar as dificuldades, de constranger, de oprimir. Nós precisamos umas das outras. Uma mãe que vê outra mãe dar conta, acolher com amor e fortaleza a maternidade, é uma mãe fortalecida. E uma mãe fortalecida pode apoiar e sustentar outra. E isso não tem mais fim.
"Vai piorar"?
Não. Pode ser que não.
Pode ser que sua angústia por não saber o que virá adiante seja, também, a sua força. 
Filhos nos tiram o sono. 
E nos dão inúmeros motivos para querermos estar despertas. Em muitos sentidos. Muitos sobre os quais jamais pensamos antes deles chegarem...


Culpa: de quem a sociedade quer que ela seja?

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Desde segunda-feira (02/03), circulam pelas redes sociais alguns links, postagens e comentários que têm um ponto em comum. Um ponto que está sendo negligenciado em função de uma cegueira social bem séria e importante, cujas consequências vão muito mais longe do que a gente pensa. Este curto post tem, portanto, somente um objetivo: trazê-lo à tona e chamá-lo à conversa. Não pretende discutir ou aprofundar. Pretende perguntar. Apenas isso.

O estudante de engenharia elétrica Humberto Moura Fonseca morreu por overdose de bebida alcoólica, no último sábado, na cidade de Bauru, em uma festa universitária. O jornal O Estado de São Paulo publicou então, hoje, 04/03, uma breve entrevista com a mãe do estudante. A ela foram feitas perguntas como "A senhora sabe em que circunstâncias seu filho morreu?", "A senhora tomou alguma providência?", "A senhora sabia que seu filho consumia bebida alcoólica?". 

O portal Pragmatismo Político repercutiu ontem, 03/03, uma entrevista feita pela Revista Crescer com a senhora Olinda Boturi. Ela é mãe de Jair Bolsonaro, deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro, aquele sujeito com claros problemas emocionais, éticos e humanos, e que vem colecionando afirmações terrivelmente absurdas contra grupos oprimidos, especialmente contra nós, mulheres, lutando para que tenhamos salários menores - como se isso fosse necessário, como se isso já não acontecesse - em função da possibilidade que temos de engravidar, entre insanidades advindas de profundos desvios de empatia. Dona Olinda afirma veementemente que nunca o maltratou, que nunca defendeu que crianças apanhassem e que crianças devem ser educadas com conversa. E que não consegue entender o atual comportamento impulsivo e bruto de seu filho, que era uma criança "digna, amorosa, humilde, mansa, reservada, quieta"...

Uma empresa pertencente a (como eu posso definir Luciano Huck? Socialite? Apresentador? Comediante? Empresário? Sem noção? Caçador de polêmicas baseadas em preconceito e discriminação? Dono de pousada em Área de Proteção Ambiental?) colocou à venda camisetas supostamente "infantis" com dizeres como "Vem ni mim que eu tô facin", utilizando crianças como modelos. Os grupos feministas e de defesa das crianças vieram todos a público repudiar esse extremo mau gosto e falta de noção, que vulnerabiliza e expõe as crianças, e a pressão popular causou a retirada do anúncio do ar. Tão rápida e ostensiva quanto a veiculação e divulgação desse detestável anúncio também foi a exposição do rostinho das crianças. E tão logo isso aconteceu, lá veio o tribunal inquisidor culpar não a empresa, mas as mães das crianças, com perguntas como "Onde está a mãe dessa criança que permitiu isso?!". 

As perguntas feitas à mãe do estudante morto no sábado foram extremamente culpabilizantes. Vejo não um jornalista as fazendo, mas um investigador policial. O tom das respostas de Dona Olinda são de justificativa, de busca de uma suposta mea culpa, até mesmo de melancolia. E não sei como estão se sentindo agora as mães das crianças em cujas camisetas brancas e sem dizeres foram aplicados, posteriormente, com ferramentas digitais, os dizeres absurdos da empresa de Huck, ao se virem culpabilizadas pelo Tribunal Inquisidor Feicibuqueano.

Então, eu só gostaria de fazer algumas perguntas: E OS PAIS? E os homens? Cadê eles em todas essas histórias? Por que o foco nas mães? Onde estão os homens criadores? Onde estão os homens cuidadores? Cadê eles na conversa? Onde eles estão? Onde estavam? Quem são? Onde vivem? O que estão fazendo? De quem a sociedade quer que seja toda a culpa?

Mas, calma. Tenhamos calma. Não sejamos feminazis, xiitas, radicais. Estamos na semana do Dia Internacional da Mulher e vamos ganhar muitas, muitas flores. E descontos para produtos de beleza a fim de ficarmos mais atraentes. E duas depilações por uma. E bombons diet. E as flores do tiozinho que as oferece nos bares para o cara honrar a namorada que está ao lado vão vender como água. E vai ficar tudo bem, não vai?
Não. É claro que não vai. 
Porque enquanto assim for, assim será.

Fim do post.
Ah, e uma feliz Semana da Mulher pra você. 


Ser mãe é padecer calada?

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Sim, ter filhos é diferente de ser mãe. Sim, ser mãe é algo que envolve disponibilidade, entrega e aprendizado. Não, ninguém nasce sabendo ser mãe. Sim, ser mãe é algo que precisamos aprender enquanto somos. Não, ter filhos não é algo que toda mulher queira ou deva querer. Não existe nenhuma obrigatoriedade feminina em desejar ter filhos e ser mãe. 
Embora grande parte da sociedade pense que ser mulher seja sinônimo de querer ser mãe, não é. Nunca foi. O que, sim, sempre existiu é uma atitude social determinista de querer incutir obrigatoriamente na mulher o sentimento de "dever de maternidade". E isso é bem fácil de ser constatado, nas perguntinhas constrangedoras de "E aí, quando vai dar um neto pros seus pais?", ou "Já faz tempo que você está casada, não vai encomendar um herdeiro?", ou então "Só pensa em estudar, estudar, estudar. Quando vai casar e ter filhos?", entre outros tantos exemplos de tentativas de controle social do "ser mulher". 
Uma mulher deve ser absolutamente livre para escolher e decidir aquilo que quiser sobre sua própria vida. E isso não traz a ela nenhum tipo de desvalor ou menos valia. E também não deve subentender julgamento de quem faz escolhas diferente das suas. Ponto final.
Porém, a escolha pela maternidade - e ela se faz de diferentes maneiras, com planejamento prévio ou sem, com filho no ventre ou já crescido - também não subentende felicidade, completude, epifania, deslumbramento, romantismo e ausência de desafios. Muito pelo contrário. Todo mundo que assume a maternidade de maneira integral e completa sabe que mais frequentes são os momentos de dúvidas que de tranquilidade. E isso não diminui o fato de ser mãe. A não ser que você tenha a ilusória ideia de ser mãe como sinônimo de felicidade. Não são sinônimos e nunca serão. O que, sim, pode acontecer, e de fato acontece com muitas de nós, é tornarmos a experiência da maternidade algo positivo, enriquecedor, onde criar uma criança também nos ajude a nos criarmos e nos desenvolvermos como seres humanos melhores. Não existem paraísos ou padecimentos obrigatórios. 
E é justamente por compreendermos a maternidade como uma experiência sobretudo humana, na mais ampla acepção do termo, que precisamos tanto acolher suas manifestações amorosas quanto suas manifestações de angústia. É difícil ser mãe. É difícil tornar-se mãe. É difícil passar por transformações que vão muito além de uma barriga que cresce e peitos que produzem leite. É difícil nos ressignificarmos no mundo. É muito difícil. Não é à toa que tantas e tantas mulheres passam por maus bocados logo após o nascimento de seus filhos, em períodos que podem variar de um leve baby blues a uma depressão profunda.
Inúmeros estudos já mostraram que há algo extremamente relevante para uma mulher que se torna mãe e que a protege e fortalece a ponto de evitar o aparecimento de transtornos emocionais maiores: o apoio social. A acolhida. A rede de proteção e cuidado. Sentir-se compreendida, amparada, cuidada, amada. Pela família, pelos amigos, pela comunidade. Isso é ponto pacífico - ou pelo menos deveria ser...
E parte extremamente relevante deste apoio e cuidado social é o OUVIR. Permitir que elas falem, que sejam ouvidas. Que tenham voz. Meu trabalho de doutorado e todas as ações ativistas que venho desenvolvendo ao longo dos últimos 4 anos se baseiam exatamente nisso: OUVIR A VOZ DAS MULHERES. Estimular que elas falem. Que nós falemos. Que sejamos ouvidas. Que nossas vozes ecoem e ajudem a transformar realidade a partir de nossa própria transformação. Impedir que a voz de uma mulher que se torna mãe seja ouvida, ou desestimulá-la e desencorajá-la a falar e compartilhar suas dificuldades e dores, ou ridicularizar ou menosprezar sua voz é agredi-la. É violentá-la. De maneira bastante sutil e nem por isso menos cruel. É torná-la uma afônica social apenas porque se tornou mãe.
É por isso que recebi com tão bons olhos o texto enviado por Gabriela Ruggiero Nor, e que publico agora. E que é, na verdade, uma resposta a um texto de uma escritora que eu ainda não conhecia. Procurei o texto em questão, li e a opinião de Gabriela reflete também a minha. Por isso, abro agora espaço a ela por um único motivo: vozes femininas, quando pedem apoio e proteção, não podem ser caladas, especialmente no contexto do combate ao machismo e ao patriarcado que vivemos hoje. Especialmente as vozes das mulheres que se tornam mães. E que por muito tempo foram deixadas à margem, inclusive por um braço do movimento feminista, justamente por terem se tornado mães.


Ser mãe é padecer calada?
Gabriela Ruggiero Nor
(Gabriela é mãe da Maria Clara, nascida e residente em São Paulo. Por muitos anos lecionou idiomas para crianças e adultos. Atualmente, faz formação em psicanálise e doutorado em Literatura Brasileira)

Recentemente, a escritora Monica Montone publicou, em sua coluna no site Obvious, um texto a respeito da maternidade. O artigo retoma ideias de um texto anterior, no qual ela afirmava a vontade de não ter filhos, e defendia o direito à escolha de ser ou não ser mãe.
Até aí, estou de inteiro acordo. Ter filhos não é para todos. As mulheres e homens que optam por não serem pais têm direito às suas escolhas de maneira livre, sem julgamentos, sem cobranças. Se há dúvida sobre o desejo de ter uma criança, melhor repensar, adiar, não ter um bebê. Neste ponto não tenho nenhuma discordância com a autora.
Porém, ela continua seu texto dizendo que apenas 20% das mães que conhece parecem felizes – creio que este número é meramente especulativo – já que a maioria, diz ela, está descontente com os desafios que chegam com os filhos.
Essas mães infelizes, segundo a colunista, “detestam suas novas rotinas que incluem cuidar da alimentação diária, higiene e da boa educação das crianças, levar e buscar em escola, natação, médico; passar noites sem dormir. Reclamam constantemente de suas aparências, não apenas do ganho de peso que não conseguiram se livrar [sic] após o nascimento da criança, mas também de olheiras, flacidez, unhas por fazer, cabelo por cuidar. Queixam-se de falta de envolvimento, romance e apetite sexual do parceiro (ou delas próprias)”. Além de tudo isso, Monica Montone apresenta dilemas inconciliáveis às mulheres: as mães que deixam de trabalhar se deprimem (para a autora, é apenas uma questão de tempo), e as que continuam a trabalhar “parecem bombas relógio”. A autora também afirma que o trabalho em dobro sempre será da mãe, e que a cobrança de que os pais participem mais “desgasta bastante os relacionamentos”.
Ela acusa tais mulheres dizendo: “Impossível acreditar que, em plena era da informação e da tecnologia, com milhares de revistas e blogs sobre o assunto, algumas mulheres não tenham ciência do quão trabalhoso é criar um filho.E arremata com a pergunta, dirigida às mães: vocês não sabiam que seria assim?
Bem, eu não sabia. Nenhuma informação – blog, artigo, revista, todas essas facilidades da “era da informação e da tecnologia” – pode ser comparada à mudança profunda que significou ser mãe, em todas as áreas da minha vida. E não sou uma mãe infeliz. Muito pelo contrário. Minha filha me traz felicidade todos os dias, e há um requinte na intensidade do vínculo que se estabelece com um filho que não se equipara a nenhuma outra forma de amor. Porém cuidar de minha filha, zelar por sua segurança, educá-la, são exercícios diários desse afeto que nem sempre são fáceis. E, quando há dificuldade, recorro a pessoas próximas, a alguma escuta solidária e, principalmente, empática. Pois é isso que espero dos outros, e é isso que espero principalmente das mulheres – mais sororidade, por favor – independentemente de serem mães ou não.
No entanto, de acordo com a colunista, aparentemente mãe que reclama é mãe infeliz. Então quer dizer que mãe feliz é mãe calada?
Eu não estou preocupada com as mães que reclamam. Eu estou preocupada com as mães que maltratam, ignoram, batem em seus filhos, os agridem das mais diversas maneiras, terceirizam sua educação ao ponto mais extremo de não conhecerem suas rotinas e preferências. Eu me preocupo com as mães que buscam atalhos para o exercício da maternidade, procurando maneiras de calar a boca de seus bebês e crianças, procurando maneiras de criar um filho que não exija trabalho, escuta e paciência. As mães que reclamam? Elas, se reclamam, é provavelmente porque estão no mesmo caminho que eu, sem atalhos. E esse caminho, se tem muitas alegrias e compensações, também é repleto de momentos frustrantes.
Então eu reclamo, sim. 
Reclamo quando tenho de levantar pela décima vez no intervalo de três horas, também digo que sinto falta de ter mais tempo com meu marido, mais tempo para estudar. Reclamo porque sou humana, e o amor que sinto pela minha filha e a felicidade que sinto por ser mãe não me impedem de sentir cansaço, desespero, frustração. Nós, mães que reclamamos, na maioria das vezes temos exatamente a perspectiva do quanto somos sortudas de termos nossos filhos perto de nós, seguros, alimentados, saudáveis. E ter uma escuta ética, compassiva e amiga para os momentos de dificuldade só faz reforçar o sentimento de privilégio por estar próxima de minha filha, e ser responsável por ela, por todos os cuidados do dia a dia. Quando reclamo e sou ouvida, retorno à minha função de mãe com o coração leve, pronta para dar atenção e carinho.
E, se cobrar o pai por sua responsabilidade em criar e educar o filho for causar “desgaste” no relacionamento, creio que é um risco que nós, mulheres, estamos dispostas a correr. Pois esse casamento em que a mulher é a única e eterna responsável pelos filhos, esse casamento em que a mulher não fala nada e não demanda nada por medo de desgastar o relacionamento, bem, esse casamento não é o meu – ainda bem – e não é o que desejo. Se tem algo que minha filha fez por meu casamento, foi tornar a mim e a meu marido mais transparentes com relação a nossas demandas, necessidades, limitações. O ideal? Que não exista mais a ridícula pergunta “seu marido te ajuda?” ao se falar de filhos e de trabalho doméstico, pressupondo sempre que o trabalho é da mulher. O ideal? Que haja licença maternidade digna, que permita estabelecimento de vínculo e de amamentação, para as que assim desejam, por seis meses exclusivos.

Ninguém gosta mais de mulher calada do que o machismo. Então por enquanto, seguimos reclamando sim, reclamando e amando nossos filhos, enlouquecendo por causa deles e de amor por eles. 





Paulo Freire e as mães

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Minha forma de entender o mundo, se eu pudesse categorizá-la (não posso, mas se pudesse), é bastante freireana.
Considero que, como pessoa, eu me formo na minha relação com o mundo. Mundo esse que, por ser composto por diferentes situações e contextos, e sendo essas situações e contextos bastante variáveis, também é muito variável. Se eu me construo por interagir com algo variável, então compreendo que é preciso, também, refletir sobre essas variações e mudanças e, se for preciso, também mudar.
Ação e reflexão: esse é um dos propósitos humanos, segundo Paulo Freire.
Agir e refletir sobre seus atos, de forma que a ação mude e gere uma nova reflexão. Até que, um dia, seu coração pare e você não tenha mais condições de refletir sobre isso. Mas, até lá, agindo e refletindo.
O objetivo desse jogo da vida seria, então, agir, avaliar, aperfeiçoar a ação, agir novamente, reavaliar e vamos que vamos.
E porque acho que a vida deve ser vivida assim, é assim também que penso a maternidade.
Quando fiquei grávida, por não saber nada sobre ser mãe e não ter muitas amigas mães, achava que as coisas eram meio pré-definidas, que não haviam tantas possibilidades. Que havia apenas um lugar para parir, uma só forma de alimentar, um só jeito de transportar o bebê, uma só forma de voltar ao trabalho, aquela coisa que a gente só sabe de ouvir falar, nunca tendo ido muito a fundo. E foi então que, com o crescimento da barriga - que crescia muito menos que minha intuição e vontade de aprender (essas sim, alcançando proporções inacreditáveis e tomando-me por completo) - descobri que as possibilidades eram muitas.
E qual foi meu deslumbramento frente a essa quase infinidade de formas de viver a vida como mãe, de cuidar de uma nova pessoa, de tornar-me, também, uma nova pessoa! Quão grande foi o meu espanto diante da vida e sua amplitude e sua riqueza, experimentado pelo simples fato de ter me tornado mãe - esse evento tido por tantos como simplesmente biológico, quase corriqueiro, que por tantas vezes é feito sem qualquer tipo de reflexão ativa sobre a busca de possibilidades...
E, desde então, esse tem sido o meu caminho: a busca constante de possibilidades.
Questionar-me, constantemente, sobre "Como posso fazer isso?", "Quais são as possibilidades?", "Será que só assim?", "Será que não consigo fazer diferente?".
E, agindo, refletindo sobre a ação e a readequando quando necessário, tenho estado, geralmente, satisfeita com as escolhas nesse - tão novo para mim, mas já tão profundamente imerso nele - mundo da maternidade. E é quando a insatisfação aparece que a busca por possibilidades recomeça...

A história de cada um de nós e a história dos nossos filhos são apenas possibilidades, são devires, como diria Paulo Freire. O que talvez tenhamos de concreto são, apenas, os propósitos. A emancipação humana, ao meu ver, passa por termos a liberdade de construir nossas histórias e contribuir para a construção das histórias dos nosso filhos, não a despeito das inúmeras possibilidades, mas justamente em função delas. Nossa história, ao final do caminho, poderá ser contada, então, pela análise das escolhas frente às possibilidades e, principalmente, pelo grau de liberdade, ação e reflexão que se pode ter frente a elas. Algo como: "Aqui jaz uma mulher que teve tais e tais possibilidades e, usufruindo da liberdade que conquistou como ser autônomo e emancipado, aproveito-as ou as deixou de lado e, em função disso, essa foi a sua história".

Acredito que maternidade também é isso: a constante avaliação da nossa prática como mães, de forma que ela reflita aquilo que realmente pensamos e valorizamos, o constante ajuste e reajuste, correções de margens e readequações, para que o que era válido até ontem mas parece não ser mais, possa mudar também.
Se a vida é dinâmica, então os ajustes também precisam ser.
E mãe é essa pessoa que age em sua própria vida e na dos filhos em função dos ajustes, escolhas, ações e reflexões que faz. Que, desenhando, desenha a si própria. Que, olhando aquilo que ajuda a construir, vê a si própria em construção - tal qual a obra de Escher.
Quão boas somos nisso?
O quanto cada uma se dedicar a ser.
Quão boas precisamos ser?
O quanto conseguirmos. Sem dor ou sofrimento.
O quanto conseguirmos. Sem vitimização.
O quanto conseguirmos. Mas com dedicação e empenho ativos. Sem subterfúgios.
O quanto conseguirmos. Mas sem essa de deixarmos as decisões que dizem respeito somente a nós nas mãos das outras pessoas.
O quanto conseguirmos. Mas sem delegar nosso exercício de maternidade.

Como mães, nossa opção é progressiva.
Como mães, é preciso entender o que é equidade para, só depois, termos condições de ensiná-la.
Como mães, não temos outro caminho a não ser viver a nossa opção: nos tornarmos mães, enquanto somos e nos tornamos mulheres.
E, assim:
"Encará-la, diminuindo, assim, a distância entre o que dizemos e o que fazemos".
Depois de ter me tornado mãe, gosto ainda mais de ser gente.
Porque...
"Inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado". (Paulo Freire)


*Texto originalmente publicado em maio de 2012. Republicado agora como forma de reforçar todo meu apreço e gratidão pela obra do maior educador e filósofo que o Brasil já teve: Paulo Freire. 


A voz de Adelir - 1 ano de uma menina e da luta de sua mãe

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Muitas das coisas que estão acontecendo atualmente no Brasil vêm de uma falta nossa de memória. Vem de uma liquidez dos dias, que transforma o dia anterior em passado obsoleto, com o qual pouco ou nada podemos aprender. Vem da desvalorização das experiências, do humano, dos sofrimentos de tantas pessoas. Vem de não sabermos ou não nos interessarmos por ajudar o outro a superar sua dor e a ressignificar seu sofrimento, a transmutá-lo e a transformá-lo em fortalecimento. A rapidez da disseminação da informação transforma a notícia de ontem em notícia velha, o ocorrido da semana passada em irrelevante, o sofrimento vivido no ano anterior em coisa a ser esquecida. E é também por isso que as pessoas se sentem descartáveis, solitárias, sozinhas e desvalorizadas. É bastante interessante para os valores atuais que assim seja: a solidão vende o consumo, a dependência e o medo. E é com base nisso que damos poderes aos outros para que legislem sobre nós. É com base nisso que aceitamos ser governados por outros.

Cada vivência pode ser motivo para uma transformação. Cada dor ouvida, valorizada, ecoada, pode ser a ausência de dor no futuro. Não apenas de quem a viveu, mas de quem pode não chegar a vivê-la em função do enfrentamento que podemos propor e fazer, coletiva ou individualmente.

Há exato 1 ano, em 01 de abril de 2014, uma mãe, em uma cidade do sul do país, era arrancada de sua casa em trabalho de parto, a caminho de parir sua quarta filha, e obrigada por força policial a uma cesariana desnecessária e sem justificativa médica plausível. Ela foi tirada de dentro de casa, no meio da madrugada, em trabalho de parto, na frente de seus outros filhos, de seu marido e de sua doula, por alguns policiais que seguiam uma ordem judicial baseada em falsas indicações de cesariana e de sérias omissões. Ela seguiu as ordens e, pouco tempo depois, foi submetida a uma cirurgia contra a sua vontade.
Essa vivência tão difícil deu origem a muito mais que uma denúncia e uma audiência na Comissão de Direitos Humanos em Brasília, deu origem a uma transformação profunda em muitas de nós. Nós assistíamos, mas não com sentimento de passividade, à apropriação pelo Estado do corpo de uma mulher. E sabíamos e sentíamos que isso não era novidade, que isso não era caso isolado, que isso não era fato raro, pois que conhecemos e vivemos coisas tão degradantes quanto. Talvez não da obrigatoriedade jurídica e contra nossa escolha de uma cirurgia, mas certamente da apropriação que sentimos todos os dias, por parte da sociedade e do Estado, do corpo que é nosso e das decisões sobre ele, que apenas a nós, mulheres, diz respeito.
Embora naquele dia nascesse uma grande ação mobilizadora nacional, bem como uma luta ainda mais organizada pela humanização do nascimento e contra a violenta assistência obstétrica a que estamos sujeitas, não era isso que, de fato, nascia. Não éramos nós quem nascíamos. Nascia, naquele dia, uma menininha que transformaria a vida de sua mãe e de toda sua família, e que já vinha transformando desde a gestação. Pela busca que estimulou sua mãe a fazer por uma forma respeitosa de nascimento. Pela união que promoveu entre seu pai, seus irmãos e sua mãe. Pelo fortalecimento que ajudou a promover.
Nascia Yuja. E nascia uma nova mãe. Uma nova Adelir.

Hoje, presto homenagem à querida Adelir, que representa a luta por uma maternidade respeitada, a luta contra a judicialização do corpo feminino, a luta contra a violência obstétrica, a luta pelos direitos reprodutivos.

Parabéns, Adelir, por 1 ano como mãe de Yuja.
Parabéns, Yuja, por 1 ano de vida, como filha dessa mulher forte e combativa. Que sua vida seja doce, longa, saudável e amorosa. Como deve ser a vida de toda criança.

Hoje é Adelir quem conversa com a gente. Vamos ouvir sua voz.
Para que não nos esqueçamos. Para que nunca mais aconteça. Frase que deveríamos repetir todos os dias, em diferentes circunstâncias...


Se "o inssino no Brasiu não está ótimo", o que você tem a ver com isso?

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E além de criticar? O que você tem feito para que isso mude?

Educação é questão estratégica para um país? Educação é motor de arranque para a mudança, presente e futura? Educação é direito do cidadão? É dever do Estado? Como vai a educação no Brasil? Qual a condição de grande parte das escolas brasileiras? As crianças e jovens vêm recebendo educação emancipatória, educação problematizadora, verdadeira educação dentro das escolas brasileiras? E de quem é a culpa? Há culpa?

Nos dias correntes, marcados por numerosas e efusivas manifestações "em busca de direitos", todos parecem ter respostas prontas para cada um desses questionamentos. Mas, como tudo aquilo que vem fácil demais, com frequência são respostas que carecem de maiores problematizações, aprofundamentos, verdadeiras reflexões e inclusão de múltiplas dimensões.
É também por isso mas não só, que tenho verdadeiro apreço pela pergunta que vem a seguir. O que você tem feito verdadeiramente pela melhoria da educação brasileira? O que nós temos feito?
Por incrível que pareça, muita gente tem respondido a essa pergunta com a ingênua resposta: "EU TENHO VOTADO! É isso o que eu tenho feito! Já faço a minha obrigação votando! Que os políticos façam a sua!". Isso é, por si só, um exemplo claro e fatídico da qualidade da educação no Brasil: produzindo gente que prefere omitir-se da ação, reflexão e posicionamento. E, como disse Bertolt Brecht, "O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos". Votar não basta para haver participação política. Nem tampouco para exercitar a democracia. Muito menos para o exercício da cidadania. Isso, tudo isso, fazemos ou deixamos de fazer todos os dias, no silenciamento que produzimos sobre assuntos tão relevantes ou na amplificação de vozes e temas que dizem respeito à coletividade. Votar é praticamente nada quando não se fiscaliza, exige e acompanha a atuação de quem elegemos. Quando não se investiga a história e o verdadeiro comprometimento de quem se elege. Quando se acredita que problemas sérios como a estrutura educacional de um país se resolverão de uma hora para a outra, sem a participação e envolvimento popular.

Os professores da rede estadual de São Paulo estão em greve desde 16 de março. Na assembleia da última sexta-feira, 27/03, decidiram manter a greve em função da insuficiente (ou ausente) proposta do governo do estado. A APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) contabiliza mais de 60% de profissionais paralisados. Enquanto isso, o governador do Estado afirma que não há greve, que 2% de profissionais paralisados não representa greve. E quando nós, que trabalhamos com divulgação de informação, divulgamos isso, não há discussão produtiva ou producente. Há tiro, porrada e bomba por parte de um pessoal que parece muito pouco interessado na mudança, na real mudança, embora pareça muito interessado na confusão, na propagação do ódio e na ofensa gratuita. Talvez numa tentativa de silenciar as pessoas. De silenciar as exigências populares. Fazer isso é uma coisa só: compactuar com todos os problemas educacionais que as crianças brasileiras vêm sofrendo. Compactuar com a falta de professores, com a precariedade estrutural da escola brasileira, com a baixa remuneração dos profissionais da educação, com a falta de qualidade da educação oferecida. E quando nos tornamos comparsas, então não é muito coerente ir às ruas clamar por mudanças, porque a mudança que deveria partir de nós não parte e estamos sendo hipócritas. Toda tentativa de silenciamento é, também, forma de violência. Silenciar pessoas que lutam por direitos e pela disseminação de informações relevantes a toda a coletividade, visando sua emancipação, é prática corrente de regimes ditatoriais e que desrespeitam a democracia. Por esse motivo, abaixo segue um texto escrito por professores. Da rede estadual paulista. E sobre a greve que, sim, existe.

Se você não vê, ou é cego ou está muito mal intencionado.
Porque, citando Brecht mais uma vez, "Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso".
Se nós queremos que nossas crianças, todas elas, tenham acesso a uma educação verdadeiramente emancipatória, digna, que valorize o humano, é preciso que apoiemos quem está sendo negligenciado. A luta pela educação de qualidade começa com o não silenciamento e com a rejeição à negação dos problemas.


Por que os professores cruzaram os braços?
                  
Marco Antonio Milani, professor e mestre em História pela Unesp - Assis
Vanessa Pultrini Rovaris, professora da rede pública estadual paulista


É comum ver na televisão imagens do caos na educação pública: brigas entre alunos, agressões a professores, escolas caindo aos pedaços, indicadores de qualidade decrescentes. Só isso seria um motivo para os brasileiros não só se indignarem, mas também se empenharem na mudança da educação.
Mas o cotidiano das escolas é muito mais perverso que isso. Um jornalista que se dispusesse a se passar por um professor substituto em uma escola estadual descobriria que as salas dos professores são um dos lugares mais deprimentes desse país. Antidepressivos e ansiolíticos costumam ser o tema principal das conversas ali. Os professores estão doentes.

As condições de trabalho são pra lá de degradantes nas escolas públicas de todo o país. E no estado mais rico da Federação não é diferente. Pior do que não saber ao certo quanto se vai receber no final do mês é saber que, no final do bimestre, seu trabalho não valeu de nada.
Não há, em nenhum lugar do mundo, uma resposta para como adequar a escola à realidade dos jovens de hoje. Mas, sem dúvida, há modelos de educação pública que funcionam melhor. Poucos brasileiros sabem, mas seu país tem educadores conhecidos mundialmente. Entretanto, nem suas teorias nem as de qualquer outro país podem funcionar nas nossas escolas sem que todos os profissionais da educação tenham condições de aplicá-las.

No Estado de São Paulo, desde o final do ano passado, agravou-se a já preocupante falta de recursos de todo o tipo. Falta de papel higiênico até professores, além de espaço físico. Há salas de aula com o dobro do número de alunos permitido por lei. Mas a ordem silenciosa que se ouve diariamente nos corredores é que os alunos sejam mantidos dentro das salas a qualquer custo.
Podemos oferecer remédios tarja preta aos professores, podemos pedir que os alunos tragam papel higiênico de casa e continuar fingindo que tudo vai bem. Mas quem ganha com isso? Se perguntarmos para qualquer pessoa que estiver passando na rua qual a importância da educação, ela terá uma resposta na ponta da língua. Mas não bastam palavras bem escolhidas, em slogans de governo ou na boca do povo, se não há ações concretas para construir uma educação digna para nossas crianças.


É em nome disso que os professores das escolas estaduais de São Paulo estão cruzando os braços. Se falam em melhor remuneração e em melhores condições de trabalho é porque estão preocupados com os nossos filhos – ou, como diria o educador José Pacheco, com os filhos dos nossos filhos. Se não estivessem, seria mais fácil fingir que nada acontece ou simplesmente mudar de emprego. Os professores estão cruzando os braços, para que possam levantá-los com orgulho, amanhã. O orgulho de um trabalho bem feito, o orgulho de construir o futuro.


Desligue a câmera e acolha o outro

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Acabo de ver circulando por aí um vídeo onde um garotinho muito pequeno se despede de seu peixinho dourado, que morreu, e o joga no vaso sanitário. Ele lida naturalmente com a situação de perda e é orientado por sua mãe a jogá-lo no vaso, dar descarga e se despedir, e assim faz, sem maiores problemas. Até que, ao se dar conta de que a água levou seu amiguinho embora, ele começa a chorar. Aquele choro sentido de perda que acompanha a criança que se dá conta de que alguém querido foi embora... Muita gente achou o garotinho lindo e aquele gesto emocionante. Mas eu senti foi pena. Não pena apenas por ele estar vivenciando uma situação de perda, mas pelo tipo de "acolhimento" que ele recebeu. Chocou-me um pouco o fato do filho estar chorando pela perda de quem ele gostava e a mãe continuar filmando... Para mim parecia muito óbvio que era momento de desligar a câmera e aninhá-lo nos braços. É possível que aquela tenha sido sua primeira vivência de perda... O que era mais importante, registrar o momento em que ele joga seu amigo no vaso ou cuidar de suas emoções com todo o desvelo e cuidado?

Sinto verdadeiramente que o intuito daquela mãe era apoia-lo naquele momento, não constrangê-lo ou expô-lo, sua voz é carinhosa e ela o abraça. Mas o vídeo reflete algo muito frequente nos dias de hoje, filmados, fotografados e registrados em todas as suas nuances: a banalização do sofrimento. Sofrimento, do mais simples ao mais intenso, tem sido encarado mais como oportunidade de registro que de acolhimento. Pessoas caem nas ruas e são fotografadas. Acidentes de trânsito são fotografados.  Brigas entre vizinhos e agressão entre pessoas são filmadas. E postadas e intensamente compartilhadas. O que isso diz sobre nós?

Diz que estamos incapazes de acolher a crise humana, a dor, o sofrimento e de atuarmos como mediadores. Queremos ver sangue, queremos ver a confusão, estimulamos e incentivamos o mal estar coletivo. Estamos incapazes de acolher o choro, a dor. Sentimo-nos confortáveis em ridicularizar o outro, em jogar indiretas, e isso nada mais é que gostar do clima de animosidade, de incentivá-lo, de se sentir confortável neste tipo de situação. Estamos mais preocupados em constranger que em acolher.

Fazer esse tipo de problematização sobre um vídeo aparentemente tão corriqueiro nos ajuda a refletir sobre de que forma estamos, também, acolhendo o choro das crianças e, assim, ensinando-as a acolher a dor do outro - ou a desprezar a dor do outro. O que fazemos quando nossos filhos estão chorando? Nós os mandamos ficar quietos? Engolir o choro? Dizemos que não é motivo para chorar? Contamos até 3 para que o choro passe? Ignoramos o choro para que, assim, a criança "aprenda" (diga-se, seja treinada, tal qual bichinho de estimação) que não vai conseguir o que quer? O que fazemos com o choro infantil? Choro de criança é, por vezes, sua única ou mais contundente forma de dizer que algo ali não vai bem. Pode ser causado por algo grave ou sutil, mas o fato é que choro é manifestação comportamental de tristeza, desagrado, incômodo, desamparo. Ignorá-lo ou tratá-lo com indiferença, além de não amparar ou acolher a criança, ensina a ela que é assim que tratamos a dor das pessoas: como se nada fosse. E daí para a banalização dos sentimentos é um pulo mínimo. Na verdade, já é a própria banalização...

Para alguns, isso parece um exagero ou supervalorização de uma bobagem. E é interessante para o modo de vida atual que assim pareça. Quando somos ignorados em nossas dores, substituímos o acolher pelo adquirir. Compramos afetos, compramos sentimentos em cápsulas, transferimos para coisas a falta que sentimos do humano. E isso vende. De companhia a medicamentos, passando por objetos de uso pessoal e todo tipo de futilidade.

Acolher o choro da criança é acolher o humano nela, em nós, em todos. É o momento de desligar a câmera, o computador, o celular, de pausar a conversa, de baixar o som, de interromper a atividade, de ir até lá, de agachar e abraçá-la e dizer: "O que foi? Venha aqui. O que está errado? Como posso te ajudar?", e acalmá-la, e aninhá-la, e enxugar carinhosamente seu rosto e dizer: "Vamos respirar fundo e nos acalmar. Estou aqui com você".

Certa vez, andando por uma rodovia, deparei-me com uma moça chorando copiosamente, andando meio sem direção debaixo do sol muito quente. Pedi para que parassem o carro e desci. Fui até ela. Ela me olhou como se eu fosse uma louca, ou quisesse roubar sua bolsa, ou fosse esfaqueá-la a qualquer momento, até que eu disse: "Vi você chorando. Há algo que eu possa fazer para te ajudar? Quer que te leve a algum lugar?". Então ela percebeu que era só ajuda que eu queria oferecer. E começou a chorar mais. Perguntei novamente como poderia ajudá-la e ela simplesmente disse: "Já está ajudando...". Respeitei seu direito de estar sozinha, despedi-me e fui embora. Havia me distanciado quando ela disse: "Viu? Obrigada por ter parado pra ver se eu precisava de algo. É também por isso que estou chorando... As pessoas não se importam mais com os outros...". E ela tinha razão... Quase fui embora chorando também.

Choro não precisa ser calado ou banalizado.
Choro precisa ser acolhido, entendido e transmutado em empatia, fortalecimento e vínculo.
Vamos desligar nossas câmeras, filmadoras e equipamentos e ligar o humano em nós.
É assim que a gente se conecta. Não postando e compartilhando a dor alheia.



Uma jornalista comprometida com a maternidade: Giovanna Balogh

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"Informação sobre maternidade"é uma questão extremamente problemática no Brasil. Há uma quantidade gigantesca de informação espalhada pela rede, bem como inúmeras revistas voltadas para o tema. Mas, como sabemos, quantidade nunca foi sinônimo de qualidade e falar sobre maternidade de um ponto de vista crítico, reflexivo, saindo do senso comum, indo em direção à maternidade emancipatória, ainda é coisa muito rara e difícil. Tão difícil quando facilitar seu acesso. Pauteiros, editoras e revistas parecem estar mais preocupados em preencher seus espaços com matérias fúteis e superficiais - mas que vendem - do que debruçar-se sobre as que podem, realmente, fazer a diferença. Isso é um problema sério por inúmeros motivos, especialmente por contribuir para a construção de uma visão estereotipada, ingênua e fútil de prática materna.

Felizmente, parece estarmos em um novo tempo, onde os que se dedicam a pautar questões realmente relevantes do mundo materno, que visam lançar novos olhares, abrir espaço para a defesa dos direitos das mulheres mães, estão sendo mais valorizados, mais lidos, mais procurados. São pessoas que visam tratar da maternidade para além da roupinha, do bercinho, do enxovalzinho a serem comprados durante a gestação, para além das crendices e reduções infantilizadoras sobre maternidade. É claro que fazer isso quando se está em um ambiente independente de produção de informação, como são os blogs e alguns portais, é mais fácil. Não mais fácil no sentido de produzir com qualidade, porque sabemos que isso é tão difícil e raro quanto - basta ver o imenso número de blogs que reproduzem a mesma maternidade cor de rosa e estereotipada que a massa quer, que a grande mídia gosta, que movimenta o ciclo do consumo e do controle. É mais fácil no sentido de termos autonomia para decidir sobre o que escrever, sobre o que tratar. Mas escolher falar sobre as questões que realmente importam do mundo materno, sobre os problemas sociais que de fato enfrentamos como mães, sobre as iniquidades a que estamos sujeitas, estando dentro de uma mídia hegemônica - e bastante reacionária - é tarefa para as fortes. Para as destemidas. Para aquelas que veem seu trabalho como ferramenta de mudança, que posicionam-se de maneira crítica no mundo e assumem um compromisso com o grupo ao qual pertencem.

Hoje, o blog Cientista Que Virou Mãe e suas milhares de leitoras vêm homenagear uma jornalista que, de 2013 até muito recentemente, esteve dentro do jornal Folha de São Paulo pautando temas de fundamental importância para nós, mulheres que viraram mães. Ela fez uma escolha: estar verdadeiramente ao lado das mulheres mães. Por muitos meses, pautou temas essenciais: o direito de amamentar, a epidemia de cesarianas, as consequências da violência contra a criança, a violência contra a mulher, a violência obstétrica, entre outros assuntos que deram ainda mais visibilidade às questões que realmente nos importam.
Ano passado, por ocasião do lançamento do nosso livro, Educar sem violência - Criando filhos sem palmadas, ela nos entrevistou e produziu uma excelente matéria. Agora, tenho a honra de inverter os papéis e entrevistar essa mãe a quem carinhosamente chamo de "a jornalista infiltrada": Giovanna Balogh. Giovanna, receba meu sincero agradecimento pelo trabalho que fez durante esses meses em nossa defesa. Foi mais que uma atuação jornalística, foi assumir a responsabilidade social de sua profissão. Em nome de tantas mães: muito obrigada. E muito sucesso em seu novo projeto, que continuará a nos representar.


Quanto tempo você trabalhou como colunista da Folha de SP? Todo esse tempo foi à frente do Maternar ou não?

Entrei na Folha em novembro de 2005 no jornal Agora SP, que é do mesmo grupo. Lá, fui repórter, pauteira e editora de Cidades. Ao me tornar mãe, em 2010, passei a ver a profissão de uma outra maneira e a mudar as minhas prioridades. Optei por trocar de função para ficar mais perto do meu filho Bento e fui transferida para a Folha. Com o nascimento do meu segundo filho, em 2012, surgiu a ideia de criar o blog Maternar, que só foi ao ar em 2013.

Quanto tempo você escreveu para o Maternar?

O blog Maternar foi criado 2013. Apesar de ser recente, o trabalho apresentou muito retorno dos leitores. Com isso, notei a grande demanda que existe de mulheres e homens que querem informações sobre parto, amamentação, criação com apego e têm dificuldades de achar esses dados na grande imprensa.

Como foi escrever, em uma mídia hegemônica, sobre temas relacionados à maternidade e à saúde da mulher que vira mãe?

No Maternar tinha total liberdade para escrever os textos. Eu conciliava o trabalho do blog com o meu trabalho de repórter no site de Cotidiano. Como algumas matérias eram relevantes, acabavam sendo utilizadas também no jornal. Entre elas, o caso Adelir, que foi submetida a uma cesárea contra a sua vontade, a da mãe que foi impedida de amamentar em um Sesc de São Paulo, o fechamento da maternidade do hospital Santa Catarina, entre outros.

Alguma vez você encontrou algum tipo de resistência, dentro do jornal, a algum tema que gostaria de tratar? Já precisou cancelar alguma pauta? Qual?

No blog sempre pude escrever o que aparecia de pauta e eu considerasse relevante. Consegui abordar até temas mais polêmicos que até então não eram divulgados pela grande mídia, como a violência obstétrica. Ao publicar esses textos, recebi vários comentários de leitoras surpresas ao saber que tinham sido vítimas durante o nascimento de seus filhos. O aborto é um tema sempre delicado e deve ser tratado com cuidado.

De todas as matérias que você produziu, qual foi, pra você, a que mais te tocou? Qual foi a mais difícil de ser produzida? E qual você sentiu ser a que teve maior repercussão?

Sem dúvida nenhuma, o caso Adelir, que foi submetida a uma cesárea contra a sua vontade, me marcou muito, pessoal e profissionalmente. O caso ganhou repercussão internacional após ser noticiado pela Folha. Outro caso que eu noticiei primeiro e que ganhou muita repercussão foi o caso da maior doadora de leite materno que foi satirizada pelo humorista Danilo Gentili. Os dois casos foram os mais importantes para mim na época do Maternar.

Você tem dois filhos. Como foi conciliar a maternidade e a profissão de jornalista durante esse tempo no Maternar?

Conciliar a maternidade e o jornalismo diário não é fácil. Acho que é até por isso que são poucas mães que encontramos na redação. No começo, quando meus filhos eram menores, era mais difícil pois é aquela dificuldade que toda mãe tem – eles não dormem a noite toda,  tirava leite para mandar para a escolinha, ficavam mais doentes, etc. Acho que no meu caso a dificuldade também era grande pois meu marido trabalha no mesmo jornal. Para conseguir conciliar, mudei meu horário no trabalho (entrava mega cedo para sair no início da tarde). Meu marido entrava à tarde e passava todas as manhãs com os meninos, que ficam meio período na escola na parte da tarde. 
Sem dúvida, o mais difícil nessa carreira que escolhi são os plantões aos fins de semana e feriados. Muitas vezes apelava para os meus pais para ficarem com eles nessas datas quando as escolas não abrem. Realmente não é fácil.

Você já está tocando um novo projeto, o “Mães de Peito”.  Conte um pouco sobre ele. O que é,
qual sua motivação, onde pretende chegar?

O Mães de Peito surgiu como uma continuidade do trabalho que eu fazia no Maternar. Minha ideia é seguir o trabalho que já fazia, mas desta vez trabalhar em casa onde posso ficar todas as manhãs com meus filhos e marido. A ideia é continuar orientando as mulheres sobre parto respeitoso, amamentação, como fugir de uma violência obstétrica, como criar com apego e sobre os direitos das mulheres.


Agora é hora de fazer o que fez por todas nós enquanto esteve dentro da Folha: use o espaço e atinja suas leitoras. O que você gostaria de dizer a todas as mães que estão nos lendo? 


Primeiro quero agradecer o carinho que tenho recebido dos leitores nesses últimos anos e pedir para que acompanhem, compartilhem, opinem no novo blog e na nossa página do Facebook. A ideia do blog não é falar sobre as minhas experiências pessoais, como vemos em vários blogs de maternidade, mas entrevistar profissionais da área da saúde que podem ajudar os pais com os dilemas da maternidade e a trilhar bons caminhos na criação de seus filhos. Todas as questões relacionadas aos filhos são mais importantes, desde a gestação até a vida adulta. Vou trabalhar como jornalista e usar o blog para informar, acima de tudo. É um grande desafio pessoal e profissional, por isso, conto com a ajuda de todas as leitoras e leitores. O tema maternidade é muito usado de forma fútil e superficial, não só pelos blogs, mas também pelas grandes mídias. Percebi o quão necessário é explorar este tema de forma profissional e qualificada. Desde o início, conto com a ajuda de mulheres super informadas como doulas, obstetrizes, médicos e psicoterapeutas, entre outros especialistas, para a construção das pautas.


Cor de rosa, princesas e Claras

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Minha filha e eu saímos hoje para, entre outras coisas, comprar uma bota de borracha para dias de chuva. Eu já sabia onde encontraria uma sem personagens, sem divulgação, sem licenciamentos que vão viciando a criança. É caneta da tal da personagem, é jogo da tal da personagem, é gente que incentiva isso, é você que dá dois passos pra frente e o povo que faz questão de atrapalhar e dar três passos pra trás... Lutar contra o licenciamento de produtos com personagens já é difícil. Imagina lutar contra a influência de pessoas que estimulam isso...
Mas estávamos lá na tal loja e encontramos a bota, nas cores preta, roxa e rosa. Clara ficou em dúvida entre a preta e a rosa. Por fim, escolheu a rosa. Eu dificilmente compro coisas cor de rosa para ela. Nada contra quem compra, apenas fiz a escolha de explorar diferentes cores, de variar bastante, de não fortalecer a dicotomia rosa-azul que a sociedade por si só já faz excessivamente. Ela não tem um quarto cor de rosa nem nunca teve, pelo contrário. Seu quarto já foi vermelho e branco e hoje é azul, com nuvens e céu estrelado. E embora eu lute bastante contra o sexismo das cores na infância, já tive que explicar inúmeras vezes para ela que rosa não é cor de menina e que azul não é cor de menino - o imenso poder da convivência com outras crianças que são estimuladas e incentivadas a pensar assim... E olha que ela tem apenas 4 anos e não é escolarizada... Quando ela ainda era muito pequena e era eu quem escolhia todas as suas coisas, geralmente escolhia cores diversas. Hoje, que ela faz suas próprias escolhas dentro de algumas opções que ofereço, não a impeço de escolher algo rosa se assim ela quiser, respeito sua vontade. E foi assim que, hoje, ela escolheu uma botinha cor de rosa.
Fomos ao caixa para pagá-la. Clara entregou as botinhas à moça que nos atenderia para o pagamento. A moça, em tom muito gentil, dirigiu-se a ela:
- Linda a sua botinha! E é da cor das princesas!

Foi como se todo meu trabalho de ter ido até ali porque eu sabia que encontraríamos botinhas sem personagens tivesse ido para o fundo da privada. Foi assim mesmo que eu me senti: como se um balde de cocô tivesse sido despejado sobre minhas intenções. Foi visível meu desconforto. Fiquei olhando para aquela atendente, que estava tratando minha filha de maneira tão gentil e carinhosa, e vi claramente o tamanho do problema: não era uma questão de má educação, ou de antipatia, nada disso. Ali estava uma moça crente de que estava fazendo o melhor por uma criança, com gentileza e empatia. Mas que estava completamente envolta naquilo que o senso comum propaga, reforça, que a mídia macera todos os dias no interior das mentes que se deixam macerar...
Desanimei. Decidi não falar nada.
E foi quando aconteceu.

- Não, não é da cor de princesas - Clara dizendo...
- Não é?
- Não. É "da cor de rosa" porque eu achei mais bonita. Eu gostei de duas, da preta e da rosa. Mas preferi a "da cor de rosa" porque essa que eu estou - e levanta a perna - é azul com amarelo e eu gosto de coisas muito coloridas e preta não é tão colorida assim.
Eu quieta. Meio em choque. Aguardando ansiosa o desenrolar.
- É verdade, você tem razão. Como é o seu nome?
- Meu nome é Clara - Ela ainda não consegue falar o ERRE direito, enrola um pouco a língua, então às vezes as pessoas não entendem.
- Como? - perguntou a moça.
- Cla-ra. Clara. Como a do ovo, sabe?
A atendente riu gostoso.
- Eu sabia que você ia gostar - e Clara também riu - Todo mundo gosta quando eu digo isso e eu acho legal dizer, porque é quando as pessoas entendem.
Eu ali. Em modo paralisia.
- Você não gosta de princesas, Clara?
- Gosto. Elas são legais. Conheço algumas.
- Quais você conhece?
- Conheço a Elsa, a Ana [eu sabia, eu sabia que ia chegar nelas, tudo nessa vida parece levar a Elsa e Ana, não se passa um dia nesta minha vida de mãe que não se fale em Elsa e Ana - essa era eu pensando]. E outro dia eu pedi pra minha mãe e ela me levou no cinema pra assistir Cinderela.
- Nossa! A Cinderela é muito linda naquele filme né?
- Ah, ela é. Tadinha, vive toda suja...
- Você gostou do sapatinho dela?
- Sim.
- E do vestido?
- Sim.
- E do príncipe?
- Sim - [eu já querendo devolver a bota e sair correndo...]. Mas eu gostei de uma coisa mais ainda.
- Do que você gostou mais?
- Do que ela sempre diz - e encenou com os bracinhos: "Todas as pessoas precisam sempre ter coragem e gentileza".

A moça se virou para mim e elogiou minha filha, dizendo algo como: "Puxa, que menina esperta, que menina inteligente". Eu estava meio emocionada... Confesso. Com aquele sorriso meio espremido que esconde os dentes mas mostra que você está sorrindo. E disse, cordialmente, à atendente: "Diz pra ela isso...". E ela:
- Clara, você é uma menina muito inteligente.
- Eu sei, obrigada. Minha mãe sempre me diz.

Quando todo aquele diálogo começou, naquele momento da sensação do cocô escorrendo na minha cabeça, eu já me via pagando a bota, indo para o carro com minha filha, colocando-a na cadeirinha, pedindo para esperar a mamãe um segundinho, voltando e explicando para a atendente porque aquilo não era legal de ser feito e blá blá blá e tome discurso e tome explicação e tome mais blá blá blá. Mas acontece que não precisou. Não precisou porque minha filha, de 4 anos, já interiorizou os valores que eu tanto a estimulo a ter, que eu tanto prezo, pela qual tanto luto, e que é tão difícil de vingar num mundo "licenciado" - em todas as acepções possíveis - como o nosso. Senti-me orgulhosa e feliz mas, principalmente, senti-me descansada. Essa é a palavra: descansada. Clara está na luta também. E isso aconteceu muito cedo e de maneira muito natural.

Por fim, gostaria de falar sobre as princesas.
Eu sou a chata das princesas. Muito, muito chata. E, olha, não é por seus lindos vestidos e cabelos maravilhosos - eu realmente as acho lindas, quase tive um troço quando me apareceu aquela Cinderela com aquele vestido translumbrante, azul turquesa, royal, sei lá que azul é aquele, com borboletas, coisa mais linda de viver, na telona do cinema. Eu não gosto das princesas pelo tipo de valores que elas representam. Mas tenho percebido algo: talvez não seja pelos "valores que elas representam". Mas pelos valores que a sociedade QUER E INCENTIVA que elas representem. Essa coisa deletéria e prejudicial de se estimular a crença em príncipe encantado, de se ter modos de menina (que fucking modos de menina?!), de ser meiga como condição sine qua non para a condição de ser mulher, essa coisa que se associa a uma condição feminina estereotipada e vulnerabilizada. E, também, pelo massacre princezóide que se faz sobre as meninas. E pela associação rosa-princesa, claro, não vou mentir. Ou seja, não são as princesas. É a sociedade. Somos nós. É a cabeça das pessoas que incentivam esse tipo de (des)valor. Porque numa casa onde isso não é valorizado, onde isso não é incentivado, onde se combate veementemente esse tipo de estereotipia, o que uma menina de 4 anos guardou de um filme como Cinderela não foi o fato do príncipe dar uma festa pra escolher mulher. Não foi o fato das mulheres do reino disputarem um homem. Foi uma coisa só: a importância da coragem e da gentileza para todas as pessoas.
Desde que eu a levei para assistir Cinderela, tenho refletido sobre isso. Sobre o que, de fato, essas princesas viveram em suas histórias fictícias de contos de fadas e o que é que a sociedade gosta de falar sobre elas. Penso na princesa Aurora e no amor verdadeiro de sua mãe adotiva, Malévola. Penso na Branca de Neve, que foi beijada sem seu consentimento estando desacordada. Penso na Valente, com seus incríveis cachos vermelhos. Penso na Astrid (que nem princesa era) domando dragões. E, tá bom, sim, eu também penso na Elsa e na Ana: irmãs com um amor profundo uma pela outra.
O problema não são as princesas.
O problema é o uso que se faz dessas personagens. Um uso que beira o controle e a doutrinação.
Quando a gente cria crianças fora desse contexto, elas não se deixam controlar nem doutrinar. A ponto de que o que realmente saltará a seus olhos serão as mensagens humanas. Algo como "Coragem e Gentileza".

Fui apenas comprar uma bota sem personagem.
E tive uma aula sobre consequências de escolhas, ativismo e luta contra o sexismo e a estereotipia do mundo das princesas.
Dada por uma menina de 4 anos. Com nome de ativista feminista marxista alemã: Clara.


Ela pode ser quem ela quiser: uma princesa artesanal ou uma guerreira "minja" - que não pode arrumar o quarto porque está em missão. Ela pode usar azul, rosa, preto, roxo e qualquer cor que ela quiser.
Ela, como todas as crianças, não precisa de produtos licenciados.
E não merece ser massacrada por eles.






Você foi criado por mãe e pai? Não? Então mande um abraço à sua mãe...

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O dia das mães vai se aproximando e um fenômeno bastante sintomático acontece: dezenas de jornalistas começam a pautar temas que acreditam bem representar a maternidade e a vida e interesse das mulheres que viram mães.
Eu, que sou apenas uma mãe cientista e blogueira, já recebi pelo menos cinco contatos para conversar sobre questões referentes ao fato de ser mãe. Aceitei duas delas, por considerar a relevância do foco da matéria, pelo menos aparentemente. Claro que o resultado final é sempre imprevisível, pois que reflete tanto o posicionamento pessoal do profissional quanto a linha seguida pelo veículo de comunicação. Ainda assim, acredito ter selecionado temas relevantes para o qual contribuir, caso de uma reportagem que falará sobre mulheres mães que mudaram suas vidas com o objetivo de lutar pelo direito de outras mulheres.
Um desses convites me incomodou particularmente. Um jornalista me convidou para participar de uma matéria sobre como a maternidade representa o sonho de toda mulher. Fiquei um tempo incomodada com aquilo até decidir responder. Perguntei o que o havia levado a pautar tal tema e ele não entendeu minha pergunta. Fui mais explícita: você acha que a maternidade representa o sonho de toda mulher? Ele não entrou na questão, disse apenas que tinha interesse em fazer uma matéria que contemplasse todas as mães e esse parecia ser um tema universal.
Há muitas questões de fundamental importância sobre o universo e os interesses das mulheres mães que precisam ser pautados, cada vez mais. Coisas como a iniquidade no acesso ao mercado de trabalho, as dificuldades encontradas para conciliar carreira e maternidade em um contexto social em que mais de 80% das crianças são criadas prioritariamente por mulheres - ainda que tenham o nome do pai no registro de nascimento -, a humanização do nascer e do tornar-se mãe, os preconceitos sobre maternidade, a maternidade enquanto ferramenta para a emancipação, as questões relacionadas ao abortamento inseguro que mata centenas de mulheres, o puerpério, momento tão complexo que sucede o nascimento de um filho, tão marcado pela completa falta de apoio social e culpabilização da mulher, a maternidade no cárcere, a maternidade do filho não idealizado, tanta coisa de extrema relevância... Mas maternidade como sonho de toda mulher? Não, meu senhor. Não. Maternidade não pode representar sonho. Sonho é algo idealizado, baseado na fantasia do porvir, em uma pretensa ilusão. Uma mulher pode muito querer ser mãe, mas é bom que se reforce que tal desejo não é uma universalidade. E mesmo entre as que desejam a maternidade de todo seu coração, ela não pode ser encarada de maneira ilusória, fantasiosa, utópica. Tornar-se mãe é até bem fácil quando comparado com "exercer a maternidade". Taí algo extremamente difícil, complexo, desafiador. E reduzir a discussão ao "sonho de toda mulher" não é algo que contemple meu posicionamento ideológico. Essa qualidade de discussão reflete o posicionamento do jornalista e/ou de seu veículo. Mais que isso: reflete o que vende, o que dá ibope, o que, de certa forma, alcança mais aceitação.
Mas como este veículo independente aqui não está e nunca esteve em busca do que vende, do que é aceito - basta ver o conjunto dos temas defendidos, ditos não-hegemônicos - preferi eu mesma pautar o que considero de extrema relevância para a discussão sobre maternidade, entre tantas outras questões idem: a experiência de maternidade que vivem as ditas "mães solteiras".
E já podemos parar por aí mesmo, porque essa expressão "mãe solteira"é, por definição, reducionista e positivista demais pro meu gosto. Pessoas não podem ser reduzidas a seus estados civis ou situações de conjugalidade. Pessoas não podem ser reduzidas a nada. Pessoas são amplas, múltiplas e pouco importa se somos casadas, solteiras, namoradas, poliamoristas ou se decidimos abrir mão desse tipo de envolvimento. E muito importa as condições a que, pelo nada simples fato de criarmos crianças, estamos sujeitas dentro de uma sociedade que é machista, que é patriarcal, que é preconceituosa e adora rótulos e reduções. E não me venha com esse papo de enaltecer as mães que criam seus filhos sozinhas - das múltiplas formas possíveis - por sua força, coragem e determinação porque na grande maioria das vezes isso não é e nem foi uma escolha e esconde ali uma ausência e/ou omissão importante que a sobrecarrega, oprime e contribui para a perpetuação da cadeia de iniquidade.

Neste sentido, ontem estava rodando pela timeline da rede social quando encontrei o depoimento
abaixo. Sua autora é minha grande amiga de muitos anos. Trabalhamos juntas há mais de 10 anos em um estabelecimento de ensino no Grande ABCD paulista, eu dando aula de Biologia e Química e ela de História. Ela é uma das historiadoras mais sérias e competentes que conheço. É mãe de três filhos, graduada em Pedagogia, depois em História, mestre em História Social, doutora em História Econômica, fez seu pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia e hoje á professora adjunta de História do Brasil Colonial na mesma universidade. Uma mulher ativista, atuante, posicionada, uma mãe que criou suas duas filhas, hoje adultas, da mesma maneira que cria seu filho pequeno: com postura crítica em busca de autonomia enquanto cidadãos. Ela é Patrícia Valim, a quem tenho a imensa alegria de ter como amiga. E ela também foi procurada para uma matéria para o dia das mães. E encerro por aqui minha participação, pois o depoimento dela me representa de muitas formas. Muito grata, amiga querida, por permitir sua publicação neste blog.

"Não tem jeito, nesses últimos quatro anos perto do dia das mães é o constrangimento de sempre: recebo e-mail querendo meu telefone para uma entrevista sobre "mãe solteira na contemporaneidade" (desse vez repórter incluiu contemporaneidade e achei que ...). Passo o telefone, o rapaz me liga e depois de 3 minutos de papo, ele manda a pergunta com um risinho cheio de pouca vida: "E os namorados? Qual a reação deles quando descobrem (oi?) que você cria seu filho sozinha?"... 
Isso não é só formação ruim. É pouca vida real, é falta de sangue na veia, falta de circular por aí, de olhar além do umbigo e tal. Mas como ando generosa nos últimos tempos, resolvi responder exatamente o que esse moleque queria ouvir: 

- Rapaz, a vida de uma mãe solteira é uma loucura e o seu plural em relação aos namorados faz muito sentido. Porque veja: nós carregamos essa coisa de mulher phodona e tal e os homens piram. No meu caso que sou bonita, charmosa, inteligente, interessante, engraçadinha e irônica é uma loucura. Toda manhã meu porteiro me liga pra avisar que os ramalhetes de rosas chegaram. 3 ou 4 por dia, um horror. Sem contar os que descobrem o número do meu celular e e-mail e ficam noite e dia com convites pra jantar, almoçar, café da manhã e tudo o mais, uns desocupados. Quando me encontram na rua, num show, numa praça com meu filho então: já vem logo pedindo em casamento. Como pode isso?! Só param de me azucrinar quando digo a palavra mágica: sou petista. E tem sido assim nesses últimos quatro anos, sem trégua ...

- D. Patrícia (sic), a matéria é séria e pode ser uma boa visibilidade pra sua carreira (hahahahahahahahaha)

- Eu também sou séria, por isso essa resposta. Na boa, com carinho e para o próximo ano: leia os relatórios da secretaria das mulheres, especialmente sobre monoparentalidade feminina. Leia sobre femininização da pobreza e sobre mulheres sozinhas em situação de rua ou não e que tem seus filhos arrancados por adoção à revelia. Leia sobre criminalização da monoparentalidade feminina muito associada recentemente à degeneração moral dessa nossa sociedade impávida e católica. Ou procure uma cocota egóica pra te contar como ela faz pra arrumar namorado. Só uma dúvida: você foi criado por pai e mãe? 

- Não ...

- Mande um abraço à sua mãe.

- ......
Vida que segue na luta pelo fim da cocotagem na militância selfie e por mulheres mães cada vez mais empoderadas".

Novamente, Patrícia: meu total agradecimento. Em muitos sentidos.


Não, nunca foi uma capa. É um vestido mesmo. E ela continua sem rosto...

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Há um discurso corrente que reforça a ideia de que mulheres que se tornam mães se tornam, também, super heroínas. 
Que são super mulheres que dão conta de diferentes demandas e acumulam diferentes tarefas.
Mulheres maravilhas, dotadas de capacidade diferenciada do restante da população, capazes de modificar agendas, de se transformar em múltiplas e até, quem sabe, multiplicar os pães. 
Tudo isso para dar conta da casa, da vida profissional, dos filhos, da alimentação, das roupas, de suas demandas individuais e mais as demandas individuais das pessoas de sua convivência. 
E então nós, as mães, batemos no peito, ostentamos nosso orgulho e bradamos ao coletivo: SIM, SOMOS FODA. Somos mulheres maravilhas e damos conta de tudo. Dane-se que você não dê, dou conta no seu lugar, faço a sua parte e faço muito bem feito.
Sabe o que é isso? Não é um super poder.
Sabe o que é isso? Não é um dom, uma dádiva.
Sabe o que é isso?
Isso se chama: falácia. Isso se chama: opressão.
Isso se chama: discurso criado pelo senso comum (machista, patriarcal e opressor) e reverberado por nós mesmas e que não, não nos representa. Não nos privilegia. Não nos ajuda. E nos oprime. Ainda mais.
Veja. À medida que reforçamos o fato de termos poderes que não temos (porque não, gente, não temos...), dizemos à sociedade: “Tudo bem essa sobrecarga, eu aguento”. “Tudo bem esse acúmulo de tarefas, eu dou conta”. “Tudo bem que você não queira fazer sua parte com seus filhos, eu faço”. Nós dizemos: “Tudo bem. Eu aceito. E faço desse limão uma caipirinha”. “Deixa pra mim, eu faço o que você deveria fazer”.
E assim, aceitando esse discurso que nos sobrecarrega, nos cansa, nos esgota, vamos tocando em frente, achando que, por isso, somos especiais.
Nós não somos especiais. 
Nós nos cansamos, e sofremos, e sentimos, e choramos de exaustão, e fingimos que não dói e que tudo bem, somos resilientes e vamos superar. Porque o que não nos mata faz o que? “Nos torna mais fortes”. Pode ser que sim. Mas também pode ser que não. Querem te fazer acreditar que sim. Mas tente perguntar a si mesma: está legal como está?

E assim, as pessoas vão deixando sobre nossos ombros, disfarçado de “elogio e reconhecimento de nossas capacidades e habilidades”, tarefas que não são nossas, responsabilidades que deveriam ser divididas, papéis que não deviam estar sendo desempenhados apenas por nós. Emocionalmente, fisicamente, moralmente, financeiramente. É como se você, sendo CEO de uma empresa cujo bom desenvolvimento depende da atuação equilibrada e equânime de toda a equipe, depositasse sobre um único funcionário as tarefas e responsabilidades de dois, três, sabe-se lá quantos. E, a respeito desta carga desrespeitosa e desumana, é como se você dissesse: “Parabéns, Fulano. Você é nosso melhor funcionário. Faz o que dois ou três deveriam fazer, e ainda faz bem feito”. Sai dando tapinha no ombro e enaltecendo o cara – desrespeitado e violado em seus direitos – por sua admirável capacidade de... fazer o que todos deveriam estar fazendo. Esse funcionário tem algumas alternativas para sobreviver dentro desta organização, entre elas duas: fantasiar que, sim, ele é especial, tem habilidades diferenciadas e essa sobrecarga na verdade o enaltece e engrandece perante os demais e "Puxa! Isso é ótimo! É um sinal de alto reconhecimento social e profissional". Ou... Ele pode perceber a exploração e a sobrecarga e recusá-la. E se manifestar. E mostrar que não, aquilo não é uma benesse, é um prejuízo. E pode se rebelar, exigir melhores condições para desempenhar suas tarefas, reivindicar tratamento equânime e tudo mais que sabemos ser justo para a busca do equilíbrio coletivo. Pode ser que ele seja demitido. E tudo bem para a empresa, porque, ao ser demitido, outras pessoas farão o seu papel – afinal, o mundo capitalista produz gente implorando por vaga de trabalho, logo ele será substituído, quiçá por alguém que aceite sem reclamar e sem “fazer beicinho ou dar xiliquinho” o acúmulo de tarefas e a sobrecarga de funções que ele se recusou a aceitar.
Tal qual a analogia, mães podem perceber a exploração e sobrecarga. Mães podem se manifestar. E mostrar que, não, não é uma benesse, é um prejuízo, um desrespeito. E podem se rebelar sim, e exigir melhores condições para desempenhar suas tarefas, para ser e viver como mãe sem que se sinta funcionária, podem reivindicar tratamento equânime e tudo mais que sabemos ser justo em busca do equilíbrio coletivo. Mas sabe o que elas não podem fazer? Não podem se demitir. Porque, paradoxalmente, parece que ali não entra a tal relação mercadológica de oferta e procura. Porque não, NÃO HÁ NINGUÉM PARA FAZER EM SEU LUGAR. E não é porque talvez existam 3, 4, 5 ou 6% de “personagens” que fazem seu papel e contribuem para a manutenção da equidade nas relações familiares e nas demandas necessárias – e estou sendo bem, bem generosa -, vamos pintar com cores mais coloridas os 97, 96, 95 ou 94% que não fazem e que, por não fazerem, estão sobrecarregando essas mesmas proporções de mulheres mães. Elas não podem deixar de fazer porque isso significaria deixar crianças ao deus dará, soltas no mundo, no “cada um por si e deus contra todas”. E a sociedade se esforçou muito para incutir nessas mulheres a crença de que NÃO PODEM fazer isso e oferecer a elas doses alopáticas de CULPA por todo e qualquer pensamento que tenham nesse sentido.

Então, ladies queridas, tenham cautela ao se proclamarem super mulheres e heroínas porque vocês possuem múltiplas habilidades, suficientes para suprir ausências. Vocês não são. Nós não somos. Isso foi uma grande falácia criada para nos sentirmos especiais por fazer o que TODOS deveriam estar fazendo. Não há coerência nenhuma em defender o tão sábio e verdadeiro discurso do “É PRECISO TODA UMA ALDEIA PARA CRIAR UMA CRIANÇA” se, quando a aldeia falta – e parece que ela sempre falta – disfarçamos essa ausência sob rótulos maravilhosos de heroínas.

Se somos mulheres maravilhosas? Sim, somos. Mas não porque damos conta daquilo que outras pessoas não dão. Somos maravilhosas porque estamos organizadas e nos organizando em busca de apoio social, de formação de redes que nos apoiem mutuamente, em busca de educação não violenta para nossas crianças, porque estamos fugindo dos rótulos medicalizantes, porque nos dedicamos às nossas vidas pessoais e profissionais INCLUINDO nossas crianças – e não pensando no próximo horário para nos livrarmos delas. Somos maravilhosas porque sobrevivemos em um mundo chauvinista, machista, segregador, agressivo e violento. Especialmente com a gente.
Se somos heroínas? Não somos. Estamos é sobrecarregadas. Não porque trabalhamos. Mas porque continuam a achar que as crianças são responsabilidades apenas nossa - ou principalmente nossa. E não são. 
Não douremos a pílula nem banalizemos o mal. Nunca foi uma capa. Era um vestido mesmo. E a moça do vestido continua sem rosto, despersonificada no meio da multidão, bastante cansada. E cuidando da aldeia. Mesmo sem querer ser e estar assim, mesmo sem ser isso. Não queremos capas. Queremos respeito e equidade. Super mulheres? Mulheres maravilhas? Não queremos mais esse título, obrigada. Pegue-o para si, aldeia.


Semana passada, por conta de um desafio que tivemos que cumprir, eu e minha parceira de trabalho entrevistamos, de uma vez, 106 mulheres mães que fazem parte da minha rede virtual. Perguntamos a essas mulheres o que eles estavam sentindo, quais eram os principais desafios que precisavam vencer, o que as deixava felizes como mães, quais eram suas metas e anseios como mulheres também mães. Sabe o que resultou disso? Um perfil muito, muito sério e preocupante. De mulheres cansadas e tristes. As poucas que se mostraram felizes e satisfeitas com o papel – ou papéis – desempenhado, reconheciam-se como privilegiadas e isso porque “sabiam que felicidade não está entre os sentimentos mais frequentes das mães atuais”. Essa angústia não suplanta qualquer bem querer e forma de amor que tenham por suas crianças. Mas parece que algo nós já sabemos: não basta só amar. É preciso que sejamos apoiadas e que as relações desiguais desapareçam. Ou seremos sempre representadas como mulheres maravilhas felizes com suas neuras em busca do melhor alvejante para o chão e que conseguem preparar a comida enquanto terminam um relatório.


Por mais apoio social a mulheres mães: CASA GESTAR!

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Esse blog aqui deixou há muito tempo de ser meu para se transformar em NOSSO, uma co-criação feita pela interação tão grandiosa e positiva entre leitoras, leitores, eu, nossos aprendizados, nossas experiências como cuidadores, nossas vivências como pessoas em busca de constante crescimento. Especialmente, entre mulheres mães em busca de apoio, acolhimento, fortalecimento e empoderamento. Ele acaba de atingir o inimaginável, para mim, número de 4 milhões de visualizações, alcançando mais de 25.000 visitas em um único dia, justamente em função de um texto que evidencia a falta de apoio social às mulheres que se tornam mães
Em função da minha tese, que se encontra em processo de construção final, e também da minha própria história de vida até o momento, tenho me deparado com isso todos os dias, na leitura de relatos de todos os cantos do Brasil, na convivência com mulheres, em todos os lugares: a falta de apoio a mulheres que viram mães. Total falta de apoio. Social, político, financeiro, moral, emocional, parental, familiar. Todas as formas de ausência. E é para isso que tem sido direcionado quase todo meu foco de atenção e ação. Então, quando, bem aqui do meu lado, a partir de pessoas com quem convivo, que admiro e que me foram trazidas pela maternidade, surge uma iniciativa poderosa que tem como principal objetivo oferecer acolhimento e apoio a mulheres mães, é preciso parar tudo e apoiá-las. Gente que, agindo, me faz ter a seguinte certeza: estamos indo, estamos mudando. Tem gente se reunindo, tem gente fazendo do bem estar social também o seu foco, a sua meta. Tem gente trabalhando pelo outro.
Pela outra.
Por mim.
Por você.
Por todas nós.

Bel, Camilla, Cris, Denise, Karine, Marina e Veri: 7 mulheres em uma casa. Que, ao contrário da minissérie em cuja casa viviam mulheres à espera de homens que voltavam da guerra, estão organizadas em torno de algo diametralmente oposto: à espera de mulheres que, isoladas e sem apoio, também estão em busca umas das outras. Elas acabam de criar uma iniciativa linda, amorosa e acolhedora. Com base em duas coisas: muito trabalho e vontade de ajudar outras mulheres. Estive lá. Posso dizer. A casa é linda. Mas é mais que isso: ela pulsa. Pulsa forte. E emana uma energia revigorante. Que nossa memória ancestral remete ao tempo em que todas vivíamos juntas e imersas em valores matriarcais.

Chega de papo. São elas que conversam com a gente hoje.

QUANDO EMPATIA, ACOLHIMENTO E MATERNIDADE SE ENCONTRAM NO MESMO LUGAR

Foto de Natalia Brasil
Empatia, acolhimento e maternidade são palavras que raramente se encontram na mesma frase. Nossa sociedade está tão centrada no individualismo que é incapaz de enxergar mães com empatia e acolhimento. Entende-se que se a mulher desejou ter filhos (ou se “deixou acontecer”), precisa dar conta das demandas da maternidade sozinha, preferencialmente com um sorriso largo estampado. Expressar as dificuldades e o cansaço é abrir portas para julgamento.
Precisamos rever esse conceito e agir diferente urgentemente. A maternidade é belíssima, mas também um caminho feito de difíceis escolhas todos os dias. Ainda atribuímos aos pais a tarefa de ajudar, quando na realidade as responsabilidades deveriam ser compartilhadas. Mulheres que criam os filhos sozinhas, quando a figura paterna é ausente, sofrem ainda mais com a invisibilidade. Não há apoio que venha dos círculos próximos.Quando iniciamos nossa caminhada em Florianópolis, há um ano, depois da Semana Mundial de Respeito ao Parto e Nascimento, criando o Grupo Gestar de apoio à gestante, pensávamos em disseminar informações com base nas evidências científicas para que mulheres se empoderassem para um parto digno e respeitoso. A ideia era basicamente essa. No entanto, no meio do caminho, ao longo desse ano de encontros, percebemos que não haveria como se tratar somente disso. Mulheres necessitam de apoio em toda a jornada da maternidade. A gestação é só o começo.

Vimos ao longo desse tempo que nem mesmo dentro do núcleo familiar as mães se sentem acolhidas, desde quando decidem se empoderar e enfrentar todo um sistema para parir, por exemplo. Parto e criação com apego são vistos como caprichos e não como segurança para mãe e a criança. Não foram raras as vezes que recebemos mulheres relatando que o único lugar onde poderiam dividir suas escolhas era dentro das rodas do grupo. Isso porque a sociedade não acolhe os desejos bem informados de mulheres que se debruçam estudando os melhores caminhos da maternagem. Porque o senso comum, o status quo, é aceitar que decidam por nós, desde a via de parto até o desenvolvimento e educação dos filhos.A ideia da criação de uma Casa para acolhimento de casais grávidos, mulheres, famílias, é uma ideia linda, é claro. E temos muito orgulho de ter tido a presença de espírito, a coragem e a conspiração do Universo para que a Casa Gestar se tornasse possível.Mas lindo mesmo seria um mundo em que espaços como a Casa Gestar fossem desnecessários. Pois esse mundo seria permeado de acolhimento sem julgamento.Enquanto esse mundo ainda não existe, vamos criando pequenos aldeias onde maternidade, acolhimento e empatia possam estar frequentemente na mesma frase.Nós somos Bel, Camilla, Cris, Denise, Karine, Marina e Veri. Mulheres de origens e profissões distintas, mas que tiveram seus caminhos traçados pelo ativismo, vontade de transformar a sociedade e também pela maternidade. Convidamos você a conhecer nossa pequena aldeia. Se a ideia lhe inspirar, você pode contribuir para a construção de nosso espaço, na campanha de financiamento coletivo do portal Eco do Bem, sua ajuda é muito importante para melhorarmos a infraestrutura da casa e ampliarmos nossos serviços. Colabore conosco: http://ecodobem.com.br/projetos/criacao-das-casa-gestar/

Sobre a Casa Gestar


A Casa Gestar representa a realização do sonho de criar um centro de atenção que acolha com muito carinho todas as necessidades de famílias que estão iniciando ciclos gravídicos-puerperais, que muitas vezes são cercados de dúvidas, incertezas e medos. Nosso objetivo é oferecer suporte físico e emocional por meio de várias práticas, incluindo as já tradicionais rodas gratuitas do grupo de apoio à gestante - Gestar, que auxiliam a transformar e encarar essa passagem da vida de uma família com tranquilidade, apoio e ofertando as melhores práticas para vivenciar esse momento da melhor maneira possível, com muito amor. Estaremos de peito aberto e mãos dadas nessa jornada de muita entrega, troca de experiências e energia positiva.A Casa Gestaré um espaço para ministrar cursos que estejam de acordo com a nossa proposta, workshops e oficinas para famílias relacionados à gestação e cuidado dos filhos; cursos de especialização e atenção básica para profissionais que trabalham com parto, além de regularmente manter aulas de yoga, dança, colocação de brinco por auriculoterapia, atendimento psicológico, hipnoterapia, EFT (Emotional Freedom Techniques) consultoria em amamentação e materno infantil, acompanhamento pré-natal especializado (enfermagem), exposição e venda de produtos para maternidade e mais uma infinidade de atividades que a casa possa abrigar.  Tudo apoiado por uma brinquedoteca, onde tanto a mãe que trabalha quanto os usuários dos serviços possam deixar seus filhos em segurança. O espaço permanecerá aberto em horário comercial e períodos com aulas regulares.Estaremos sempre atentas às necessidades da comunidade e projetando diversas formas de acolher e movimentar gestantes, mães, pais e demais interessados nas práticas e atividades oferecidas.Inauguramos no último dia 21 e queremos covidar você a conhecer a Casa Gestar. Vem! A Casa Gestaré nossa...Em tempo, queremos agradecer a nossa querida Cientista Que Virou Mãe, Ligia. Você é muito responsável por termos chegado até aqui, afinal de contas, tudo começou há um ano atrás, na Semana Mundial de Respeito ao Parto e Nascimento. Gratidão, querida! Você nos inspira... 


Um adendo final. Queridas, não sou responsável por vocês terem chegado até aqui. Vocês são. Vocês fizeram. Vocês. Se eu organizei, aqui em Florianópolis, o evento que fez parte da Semana Mundial de Respeito ao Parto e Nascimento de 2014, foram vocês que transmutaram o que sentiram naqueles dias em algo concreto. E recebam meu sincero agradecimento por isso, como mãe moradora desta cidade. Vou terminar de postar isso e vou lá contribuir no crowdfunding.


"Você é gentil. Você é inteligente. Você é importante" - O poder do discurso de todos nós

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Nota pós-publicação
Centenas de pessoas tiveram acesso a esse texto, e o compartilharam nas redes sociais e manifestaram seu apreço pela questão levantada, acerca do poder de um discurso afetuoso sobre a personalidade de uma criança e da importância de refletirmos sobre o modo como a sociedade se dirige à criança e considera a infância. Porém, há uma questão neste texto que perpassa toda a discussão trazida e que não foi por mim considerada. E não ter sido considerada faz parte de algo muito danoso, muito sério, que é a invisibilidade de quem sofre com diferentes formas de preconceito, opressão e discriminação: as mulheres negras. Quando eu falo da criança branca que recebe como única forma de afeto o carinho de sua principal cuidadora, que é uma empregada doméstica negra num contexto histórico de total violência, eu secundarizo essa mulher e priorizo a criança. E isso não pode acontecer, é preciso lançar diferentes olhares às diferentes questões, mas olhá-los. Algumas mulheres pertencentes ao movimento negro entraram em contato comigo apresentando esta questão. Assim, na semana que vem (entre 22 e 26 de junho), um novo texto será publicado neste blog, escrito por alguém que se voluntariou a fazê-lo, levantando exatamente esta temática. Desculpo-me publicamente com toda mulher negra que tenha se sentido negligenciada. E aproveito para agradecer pelas contribuições respeitosas que recebi, especialmente de Flávia Ribeiro, Guaraciara Gonçalves e Lu Bentia, neste constante processo de aprendizagem. 


Inúmeras vezes, nesta incrível e desafiadora aventura como mãe, eu me pego recordando deste exato trecho do filme "Histórias Cruzadas" (The Help), representado nestas fotos que eu mesma tirei na quinta vez que assisti ao filme. "Histórias Cruzadas"é um filme sobre direitos humanos, luta pelos direitos civis das pessoas negras, sobre mulheres e sobre crianças, centrado na figura das empregadas domésticas negras das décadas de 50 e 60 nos Estados Unidos. 
Este trecho mostra a interação entre a garotinha Mae e sua "mãe de criação", Aibileen, a empregada negra da família. Mae é bastante negligenciada por sua mãe, sendo criada com todo amor, carinho e respeito por Aibileen no tão problemático período de explosão da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, que culminou com a Marcha sobre Washington, liderada por Marthin Luther King. 

O filme mostra uma negligência familiar totalmente centrada na figura da mãe, uma vez que a figura paterna é praticamente inexistente. Tal negligência aparece na forma de ausência de cuidados, violência física, ausência de tratamento afetuoso e estabelecimento de vínculo negativo. Todo o amor, carinho e cuidado que a garotinha recebe vem da figura de Aibileen, que se dedica ativamente a estimular na pequena valores relacionados à manutenção de sua autoestima. No início do filme, inclusive, ela diz que cuidou de 17 crianças em toda sua vida. E que tudo começou a fazer sentido quando ela percebeu que podia estimular nessas crianças o amor por si mesmas. A pequena Mae, embora tão novinha, já reconhece a negligência por parte de sua mãe, dizendo, inclusive, que sua verdadeira mãe é Aibileen. O trecho que tanto me marcou é o que mostra Aibileen se despedindo de Mae. A pequenina implora para que ela não se vá. Aibileen então se agacha e explica que precisa ir. E pede a Mae que nunca se esqueça de tudo o que a ensinou, perguntando: "Do que você precisa sempre se lembrar?". E a menina responde:


- Eu sou gentil. Eu sou inteligente. Eu sou importante.

Aibileen fez questão de repetir isso inúmeras vezes para Mae, tantas vezes que ela incorporou ao seu próprio autoconceito. E isso é uma questão extremamente importante para mim. Todos os dias desde que me tornei mãe, busco fazer exatamente a mesma coisa: ensinar minha filha como é importante que ela saiba dos seus próprios valores. Mais que isso: que por meio do meu discurso sobre ela mesma, ela possa se constituir como criança, menina e futura mulher consciente dos valores que tem. Que, enquanto cresce, possa se lembrar sempre, em qualquer momento, de sua mãe dizendo como ela é importante, como ela é gentil, como eu a amo. E que não tenha nenhuma memória de desvalor, ofensa, humilhação, rebaixamento ou constrangimento partindo de mim, sua mãe, uma das pessoas que mais deveriam protegê-la, amá-la, cuidá-la e apoiá-la. Para que ela cresça sabendo que, sim, sua mãe a apoia, sua mãe está ao seu lado, sua mãe acredita nela e reconhece seus valores.

Dedicar-se a fazer com que um filho e uma filha saibam que sua mãe e/ou seu pai os amam é contribuir para criar crianças seguras de si mesmas. E esse amor não pode vir misturado com violência física, verbal, emocional ou moral, pois que, desta maneira, ensinamos às crianças que violência e amor podem, sim, caminhar juntos. E não podem. Quantos de nós aprendemos isso... Quantos de nós nos esforçamos ativamente para nos livrarmos dessas correntes... Dedicar-se a transmitir um bom conceito sobre elas mesmas é parte indelével de uma criação empática e respeitosa. Por um motivo muito simples: sim, os discursos têm poder. É a partir dos discursos que ouvem que as crianças introjetam valores sobre os outros e também sobre si. Que elas alimentam em si mesmas valores preconceituosos e discriminatórios sobre as outras pessoas, que elas criam crenças limitantes, que constroem sua visão de mundo. Que elas se sentem mais. Ou se sentem menos...

Muito se fala sobre o poder do discurso materno. Sim, o poder que uma mãe têm sobre uma criança com seu discurso é grande. Mas não por ser um poder intrínseco atribuído à mãe por alguma divindade ou entidade cósmica, ainda que receba o nome de um grande psicanalista europeu. Mas porque somos as principais cuidadoras. Não no sentido de "melhores", mas muitas vezes no sentido de "únicas" ou realmente "principais". Há que se ter muito cuidado com isso. Muito cuidado. Porque disfarçada de análise psicológica, pode haver uma grande opressão contra quem já é bastante oprimido. Pior: pode haver também uma intensa culpabilização da vítima. Porque, afinal, se uma mulher está praticamente sozinha na responsabilidade de transmitir valores às crianças, não apenas por uma escolha sua mas, principalmente, por uma imposição social, então o peso que suas ações e seu discurso exercem sobre suas crianças torna-se grande. Então, muita calma nessa hora, senhoras. O discurso materno tem poder? Sim. Tem. Mas especialmente, ou principalmente, porque, muita vezes, ele foi o único discurso ouvido pelas crianças...

Eu gosto do trecho que ressaltei do filme justamente porque mostra como o discurso é de fundamental importância na formação das crianças e de seus autoconceitos. E não é um discurso dito pela mãe da criança, mas pela principal cuidadora. Isso nos mostra a imensa responsabilidade que TODOS temos com relação ao que dizemos às crianças. Ao que dizemos sobre infância. Crianças crescem ouvindo adultos emitirem suas opiniões sobre o mundo, sobre elas. Sendo formadas por essas opiniões. Via mãe, pai, avó, avô, tias e tios. Via escola, mídia, profissionais da saúde. Via livros. Via todo tipo de meio construtor de informação. Via gente babaca sentada na mesa de um restaurante que não se furta a um comentário discriminatório contra a criança, no que poderia ser chamado, inclusive, de PEDOFOBIASe eu cresço num ambiente que chama a crianças de pestes, eu, criança, verei a mim mesma como uma peste. Se eu cresço num ambiente que diz a mim, menino, que todas as amiguinhas são minhas namoradinhas, é assim, com esta visão objetificada, que eu crescerei vendo minhas amigas. Se eu cresço num ambiente que diz a mim que meninas namoram meninos e meninos namoram meninas, qualquer sentimento diferente disso que eu possa vir a ter será interpretado por mim mesma como ruim, como desviante, como patológico. Se eu cresço ouvindo que sou impossível, que sou insuportável, que tenho algum tipo de transtorno, que eu sou incapaz de lidar com os outros, ou que sou burra, ou que sou lerda, ou que não sei fazer nada bem feito, então será assim que eu passarei a me ver. E aí, queridas e queridos, sabemos o tamanho da dor no futuro... Sabemos o tamanho do esforço para lutar contra a baixa autoestima que crescemos nutrindo sobre nós mesmos, alimentados pelo que diziam sobre nós... Quem "diziam"? Nossas mães? Não. Toda a sociedade.  

Toda e qualquer pessoa, seja ela responsável ou não por crianças, deveria ser consciente da importância da infância. Inclusive aquele seu amigo babaca que se sente confortável para dizer "Criança?! Não, credo. Tenho horror a criança". Ninguém tem o direito de se dirigir assim a outro ser humano. Você não quer ter filhos? Ótimo. Seu direito. Lutarei por ele também. Você odeia crianças? Problema seu. Grave problema seu e seria interessante procurar ajuda para tentar entender o porquê de se sentir tão incomodado com elas. Porque neste mundo pelo qual lutamos não haverá espaço para ódios. A qualquer grupo oprimido. E crianças representam um dos principais grupos oprimidos. Nós só não as vemos marchando na Paulista porque estão em suas casas sob os cuidados de seus responsáveis - pelo menos é o que se espera, e sabemos que nem todas estão. Você tem dúvidas sobre as crianças serem grupo oprimido? Basta ver o incentivo social que há para que as punamos com violência, enquanto criamos leis e movimentos que combatem a violência de gênero, a violência contra a pessoa idosa, a violência contra gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. É sempre bom lembrar que as organizações de defesa dos animais surgiram antes das que defendem crianças... Tire suas conclusões.

Todos nós precisamos despertar para a importância do nosso discurso com relação às crianças. Precisamos reformular completamente a forma como nos dirigimos a elas. Se todas as pessoas que têm crianças sob seus cuidados escolhesse palavras amorosas, ainda que firmes, para estimular nas crianças o amor por si mesmas e o reconhecimento de seus valores, muita coisa poderia ser diferente. 

É também por isso que eu me dedico todos os dias a escolher as palavras que dirijo à minha filha. Porque um dia ela se lembrará das palavras que eu disse sobre ela em sua infância e quero que essas sejam lembranças felizes, cheias de um significado profundamente amoroso. 

No filme, o amor de uma empregada doméstica é capaz de ajudar uma criança em seu próprio autoconceito, a despeito da negligência que recebe da própria família. Porque amor é isso: amor ensina, amor grava, amor cura, amor previne, amor regenera.


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