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Channel: Cientista Que Virou Mãe
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Convite: Simpósio Internacional de Assistência ao Parto

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De nada adianta reivindicarmos assistência e acesso a um nascimento digno, humanista, respeitoso e
não intervencionista se não tivemos profissionais preparados para tal. Profissionais embasados em práticas coerentes, não opressivas, voltadas para uma experiência transformadora do nascer, não sustentados por uma obstetrícia patriarcal e obsoleta.
Obviamente, também de nada adianta o conhecimento técnico se não houver comprometimento pessoal, mente aberta, comportamento pró-ativo em busca do acolhimento afetuoso e respeitoso de parturientes, seus bebês e suas famílias.
Não contemplar qualquer desses lados significa abrir as portas para a má prática e para a perpetuação da violência obstétrica e do intervencionismo que leva a ainda mais cesáreas, a ainda mais mulheres insatisfeitas e frustradas com suas experiências de parto e nascimento, a ainda maior aumento da morbimortalidade materna e neonatal.
Deveria ser uma obrigação das instituições de ensino e do governo fornecer oportunidades para que os profissionais da área obstétrica pudessem atualizar suas práticas com base no que de melhor vem acontecendo, no Brasil e no mundo. Mas como de nada adianta cobrar, cobrar, cobrar e vangloriar-se de produzir ácidas críticas sem, de fato, nada fazer pela mudança, um grupo de pessoas envolvidas com o respeito ao parto e nascimento no Brasil se organizou para trazer profissionais relevantes em todo o mundo e reuni-los em um dos maiores e melhores eventos já organizados sobre o assunto no Brasil: é o SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ASSISTÊNCIA AO PARTO, e a essas alturas você já deve saber que ele acontecerá aqui no Brasil, em maio deste ano.



Ele acontecerá de 1 a 4 de maio, em São Paulo.
Serão no mínimo 8 horas de atividades diárias, durante 4 dias, conduzidas pelos profissionais mais relevantes em suas áreas, todos envolvidos com uma prática não intervencionista, atual, cientificamente embasada e humanista da obstetrícia.

Serão 15 palestrantes conhecidos por sua excelência, vindos de diferentes países e estados brasileiros, tais como Elizabeth Davis (parteira norte-americana especializada em saúde da mulher, educadora e consultora há mais de 30 anos), Frank Louwen, (professor de obstetrícia e perinatologia da Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e considerado referência mundial na assistência ao parto pélvico), Joshua Johannson (graduado pela University of Michigan Medical School e referência na assistência ao parto natural humanizado no estado do Alabama), Karen Strange (parteira norte-americana e diretora clínica na Maternidade La Luz, um centro de parto de alto volume de atendimento e Escola de Parteiras na fronteira EUA/México, referência internacional em reanimação neonatal), Lesley Page (enfermeira formada pelo Hammersmith Hospital School of Nusing, em Londres, e doutora pela University of Technology, na Austrália, integrando prática, políticas públicas e atuação acadêmica no Reino Unido e Canadá), Melania Amorim (uma das maiores referências em parto humanizado no Brasil, professora da Universidade Federal de Campina Grande, professora de pós-graduação do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, coordenadora da Unidade de Gravidez de Alto-Risco do Instituto de Saúde Elpídio de Almeida, entre tantas outras atividades pioneiras no Brasil), Roxana Knobel (obstetra formada pela Unicamp, especialista em obstetrícia, com mestrado e doutorado em Tocoginecologia pela mesma universidade, professora de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, uma referência em parto humanizado no Brasil), e mais oito profissionais de igual renome, os quais você pode conhecer um pouco melhor neste link.

Quanto custa para participar?
Até hoje, 28/02, meia noite, inscrições a R$ 500,00
De 01/03 a 30/04: inscrições a R$ 600,00

Quem está envolvido em atividades científicas, acadêmicas e de formação, sabe que esse é um valor baixo frente a eventos desta monta que acontecem no país. São cerca de R$ 150,00 por dia, para participar de um dia inteiro de atividades formativas, com os melhores profissionais do mundo em suas áreas, em local especialmente escolhido por sua fácil localização e conforto. E esse valor se torna ainda mais em conta quando lembramos de um detalhe fundamental: este evento não conta com patrocínios ou financiamentos de órgãos ou instituições públicas. Não há dinheiro sendo investido nele. Há, isso sim, um comprometimento de alto risco assumido pelo grupo organizador, especialmente por sua idealizadora e coordenadora geral. Ainda que nem todas as vagas sejam preenchidas (o que, pelo fluxo de inscrições, já sabemos que não acontecerá), todos esses profissionais serão trazidos, terão suas passagens aéreas pagas, estadia, alimentação e valores de trabalhos pagos, além do aluguel do local e do pagamento de todos os serviços fundamentais para sua boa realização, como tradução simultânea, equipamentos audiovisuais, entre outros. E é de fundamental importância ter isso em mente, a fim de lembrar que muito esforço está sendo feito há muitos meses para que seja um evento da mais alta relevância científica e profissional, bem organizado e com envolvimento voluntário do grupo organizador.

Fica aí, então, o convite à participação.
E que essa iniciativa, comprometida, altamente profissional e dedicada, sirva de inspiração e exemplo a outros grupos em todo país, para que se organizem a fim de prover aquilo que não tem sido oferecido por quem deveria.
E que todos os envolvidos com a assistência respeitosa e cientificamente embasada ao parto e nascimento possam aproveitar esta grande oportunidade.

Visite o site do evento, conheça o grupo organizador, conheça os palestrantes, veja a programação. E nos ajude a divulgar: I Simpósio Internacional de Assistência ao Parto: Ciência, Cuidado e Tecnologia.




Dos direitos radicais das crianças

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Toda criança tem direito de explorar livremente o ambiente onde vive.
De interagir com o ambiente natural.

De experimentar novas sensações e afetos.

De admirar o mundo.

De ser estimulada a respeitar todas as formas de vida.

De se sentir parte delas.

De sentir cheiro de flor, de água, de riacho, de comida fresquinha, de casa limpa.
Toda criança merece expandir seus horizontes e seu olhar.

Conhecer outras formas de viver e outros hábitos de vida.

Toda criança precisa ser levada em consideração nas tomadas de decisões familiares.
Toda criança merece ser incluída ativamente nos programas da família, não como uma “bagagem” que se carrega secundariamente, mas como parte que influencia a escolha.

Toda criança merece e tem direito de interagir com outras crianças, principalmente com aquelas que vivem de maneira diferente delas próprias, uma vez que isso constrói o respeito e a equidade.

Toda criança merece receber uma educação livre de preconceitos e discriminações de qualquer tipo.
Merece saber que amor não escolhe sexo, cor, classe social, etnia, nacionalidade.
Toda criança merece passar menos tempo em frente à TV e mais tempo junto à natureza.

Toda criança tem direito de saber de onde vêm seus alimentos e de conhecer aqueles que realmente lhe são bons.

Tem direito de saber se aquilo que está sendo oferecido a ela é realmente saudável, é realmente benéfico, fará realmente bem, ou é apenas reflexo do despreparo de quem oferece.
Toda criança merece ter seus medos compreendidos e acolhidos, nunca ridicularizados, nunca menosprezados, nunca ignorados.

Toda criança precisa sentir-se parte do todo, influenciada por ele e o influenciando.

Precisa ser respeitada como ser integral e a ela ser oferecido o que de melhor houver diante das possibilidades de cada contexto.

Todo choro de criança precisa ser acolhido e compreendido, jamais ignorado, jamais minimizado.

Toda criança precisa ser protegida contra todas as formas de alienação. 
Ao mesmo tempo em que precisa e merece ser protegida contra todo tipo de violência, a fim de que aprenda que um mundo cordial é possível e que violência é retroalimentada.

Toda criança merece ser protegida contra riscos desnecessários ou situações que representem perigo, qualquer que seja ele.
Toda criança merece não ser medicada por qualquer bobagem. Merece ter sua saúde e integridade física respeitada. Merece viver longe de drogas ativamente oferecidas por seus cuidadores sem que exista real e indiscutível necessidade.
Precisa saber que sempre haverá quem a ajude, quem a proteja, quem lute por ela.
Acima de tudo, toda criança merece ser olhada como uma semente já germinada, porém sedenta daquilo que a fará grande, forte e viçosa, e nutrida com o mais puro amor e disponibilidade.

Nenhuma criança é ônus.

Nenhuma criança é empecilho.

Nenhuma criança é dispendiosa.

Se uma criança assim estiver sendo vista, o problema está em quem assim a vê.


Tudo isso parece demasiadamente óbvio. Mas infelizmente não é. Se assim fosse, não nos depararíamos repetidas vezes com situações que simplesmente ignoram o bem estar da criança, ou o minimizam, ou o preterem em função do mundo adulto e suas pseudonecessidades.
É preciso lembrar repetidas vezes que crianças têm direitos fundamentais que precisam ser respeitados e que vão muito além dos enumerados na Declaração dos Direitos da Criança
Direitos que passam por mais sensibilidade, por mais acolhimento, por mais afeto, mais entendimento, mais entrega e acesso, mais verdade, mais sinceridade, menos subterfúgios e desculpas as mais variadas.
Crianças não são extensões de seus pais.
Crianças não são propriedades deles.
Crianças não são receptáculos vazios onde inseriremos todo nosso despreparo.
São novos seres. 
Que merecem um mundo novo.
Ou uma nova forma de viver neste velho mundo.
Uma forma que valorize o sentido básico da infância, sua essência mais profunda e indivisível, sua raiz primordial.
Uma forma que é, por seu mais profundo significado, radical: que diz respeito a raízes, a princípios, a essências.
Em um mundo de moderações e contemporizações, onde ser complacente com a violência é visto como ser "moderado", onde aceitar uma palmada, um xingamento, é visto como ser "tolerante" com diferentes formas de cuidado parental, em um mundo como esse, o que as crianças precisam é de um olhar mais radical sobre elas. 
Um olhar radicalmente contra a violência.
Radicalmente contra a negligência.
Radicalmente contra o abandono.
Um olhar que busque a verdadeira raiz de ser criança.
Se é esse é o seu olhar, saiba que você não está só: a radical que mora em mim saúda a radical que mora em você.
"Radical" não é uma ofensa e "ser radical" não é um desvalor.
Embora, em um mundo de "moderados", as pessoas se esforcem tanto para que pareça ser...
E é sempre bom lembrar: quem não é radicalmente contra a violência à criança é, também, seu cúmplice.



Bullying: invisível, naturalizado e faz sofrer

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Quando eu tinha 8 para 9 anos, precisei mudar de escola. A escola anterior organizou uma excursão cheia de falcatruas e o que deveria ter sido uma experiência encantadora foi um desastre. Resultado: crianças com medo, pais indignados, processos contra a escola e a empresa de turismo, e muitos dos alunos sendo transferidos para outras instituições de ensino na metade do ano letivo.
Eu fui uma delas.
Com a ajuda de uma amiga da família, minha mãe conseguiu para mim uma vaga em um dos melhores colégios da cidade em pleno agosto, quando pouca ou nenhuma vaga ainda estava disponível. Um colégio particular caríssimo, concentrando dezenas de crianças advindas de famílias tradicionais da cidade ou do nouveau riche, e onde estudei até chegar ao ensino médio.
Nossa situação financeira não era ruim, mas não era como a dos demais. A escola, por exemplo, era custeada pela multinacional onde meu pai trabalhava, como benefício incorporado ao salário. E a educação que recebíamos em casa não era, nem de longe, algo que valorizasse facilidades financeiras, pelo contrário. Fomos criadas para dar o devido valor ao dinheiro, nem mais, nem menos, e para nos sabermos filhas de gente trabalhadora. Não fomos criadas sendo incentivadas a consumir roupas ou tênis de marcas famosas, nem achando que o dinheiro proliferava nos canteiros da casa. Tudo era bastante suado e batalhado e não havia grandes luxos. Com certeza, o maior deles era podermos estudar em um colégio como aquele.
Ao ser transferida na metade do ano para uma turma cujos alunos se conheciam desde o ensino pré-escolar, fui alvo de bullying. Tanto porque era um membro estranho ao grupo, quanto porque eu era quem eu era e sempre fui: alguém que não aceitava desrespeito, ou ofensas, ou distratos, ou qualquer tipo de intimidação sem que houvesse confronto.
Lembro-me do primeiro dia de aula como se fosse hoje: crianças sentadas em carteiras dispostas em duplas, uma dupla atrás da outra, de frente para o quadro negro. Todos uniformizados, em uniformes cinza e branco, em cuja camiseta destacava-se, em vermelho, o nome da escola.
Cheguei muito constrangida. Fui acolhida pela professora, que me apresentou como "a aluna que precisou mudar de escola no meio do ano" e fui orientada a sentar ao lado de um garoto da minha idade - ao que ele prontamente disse: "Do meu lado não!". Ela o repreendeu e me conduziu até lá.
Excelente... Estava eu, então, sentada ao lado de alguém que não me queria ali...
Todos ao redor começaram a brincar com ele, como se fosse realmente muito grave alguém desconhecido sentar ao lado de um aluno já conhecido da escola.
Ignorei as brincadeiras, engoli a vontade de chorar que brotava com toda força em mim, sentei-me, abri minha mochilinha - muito constrangida, ouvindo as piadas que faziam ao redor em função de estar sentada ali - peguei meu estojo, abri e tirei de dentro dele dois lápis e uma borracha.
A professora continuava a aula de onde havia parado, talvez contando com o fato nada óbvio de que uma criança de 8 anos não precisasse de um melhor acolhimento frente a tamanha mudança...
E, estando de costas para a turma e escrevendo no quadro, não foi possível que ela acompanhasse o que me acontecia naquele momento.
O garoto ao lado de quem sentei passou a me ridicularizar. Falava sobre como minha mochila era feia, como meu uniforme estava grande demais para mim, como eu parecia zangada, como meu estojo era esquisito, sendo incentivado por um pequeno grupo ao redor, enquanto outros apenas dirigiam um olhar solidário para mim, como dizendo: "Não ligue... Eles fazem isso com todos".
Então, não sendo percebido pela professora, recebendo reforço dos colegas e percebendo meu constrangimento, a intimidação foi aumentando. Passou a jogar meus lápis no chão - lápis que minha mãe havia comprado um dia antes, como forma de me acolher e tornar a reinserção mais fácil -, a jogar meu estojo para outros colegas, a abrir minha mochila. E foi quando decidi pedir que parasse.
Mas meu pedido piorou a situação...
Ele ia jogando minhas coisas, me ofendendo, rindo de mim, e tudo isso enquanto a professora se mantinha de costas para nós, ignorando o que estava acontecendo ou apenas dizendo: "Xiiiu!".
Eu apenas pedia para que ele parasse. Dizia que meu estojo e meus lápis eram novos, pedia para não jogá-los. E ele ignorava. Tudo ia parar no chão e, quando conseguia recolher um, outro já estava lá.
Então, em uma medida desesperada e angustiada, fiz o que jamais havia feito: levantei-me, peguei a cadeira, sustentei-a no ar e... joguei com tudo sobre ele.
Eu, a "aluna que precisou mudar de escola no meio do ano", havia acabado de jogar uma cadeira sobre um menino bem popular daquela escola desconhecida... E, claro, havia conseguido chamar a atenção da professora para o que estava acontecendo há quase 1 hora.
Quem você acha que foi rotulada como "problemática"?
Acertou: eu.
Fui imediatamente levada para a direção da escola e telefonaram para meus pais. O que eu havia feito tinha sido, de fato, muito errado.
A diretora era uma senhora muito, muito cordial e simpática. Minha simpatia por ela foi imediata. E percebi que a dela por mim também. Enquanto meus pais não chegavam, ela foi me perguntando porque eu havia feito aquilo, contando que eu o havia machucado bastante, que seu nariz havia sangrado muito, perguntando o que eu achava daquilo. Lembro-me da minha resposta como se fosse hoje: "Sim, fiz uma coisa muito errada e nunca fiz isso a ninguém. Mas eu estava sendo xingada, minhas coisas estavam sendo jogadas, eu não sabia o que fazer. Pelo menos isso parou e ele não fará mais".
Meus pais, então, chegaram.
Eu estava apavorada.
A diretora conversou com eles. Eu não entendia nada, mas pelo semblante dela, parecia que tudo ficaria bem. Foi quando, talvez em uma tentativa de conciliação, ela perguntou:
"E então, Ligia... Agora que você sabe que o que fez foi errado, me diga: você não fará isso de novo, não é?"
E, sob o olhar ostensivo dos meus pais, eu muito sinceramente respondi:
"Farei. Se ele me xingar ou me maltratar novamente, farei. Ninguém tem o direito de maltratar o outro. Se ele me maltratar, eu vou me defender".
Achei que quebraria o recorde mundial de expulsão por tempo de escola e que seria expulsa após poucas horas de matrícula.
Mas o que aconteceu? A diretora - a despeito do constrangimento máximo dos meus pais - olhou para mim, riu francamente e disse: "Você é uma menina justa. Sei que não fará...".
Bem... Fui para casa, voltei no dia seguinte e... ninguém mais me ofendeu ou maltratou.
Até a semana seguinte.
Então, por alguns anos, sofri bullying naquele colégio.
O que fiz com aquilo? Uma das alternativas que alguém tem para sobreviver em um meio hostil: incorporar a violência à sua própria prática.
E eu, aquela menina "justa", tornei-me também uma bully.
Enquanto minha auto-estima enquanto criança e pré-adolescente ia sendo minada por um mesmo grupo de crianças, eu também me tornei uma agressora.
Por pelo menos dois anos, atormentei a vida de uma garota. E ela a minha. Fomos "inimigas", quando tudo o que precisávamos era nos unir. Ambas sendo oprimidas e agredidas. Ambas agredindo uma à outra. E não há um só dia da minha vida que eu não sinta muito por isso. Em todos esses anos - e já se passaram mais de 20 - eu a procurei. Quando surgiu o Orkut, lembro-me de tê-la procurado lá. Não a encontrei. E eis que hoje, nos tempos do Facebook, há poucos meses eu a encontrei. Mas confesso: ainda não consegui pedir desculpas a ela como deveria pedir... Tenho medo de que ela se ofenda, ou de que reviva más lembranças, ou que já tenha enterrado tudo e eu vá lá, novamente, "buliná-la". Mas só de lembrar, tenho vontade de chorar... Sofremos tanto, quando a união podia ter nos salvado...
Por muitos anos, sofri as consequências do bullying constante. Chorava muito, estava constantemente irritada, não gostava que brincassem comigo de nenhuma maneira. Como forma de sobreviver àqueles longos anos, tornei-me exímia esportista. Era a primeira a ser escolhida nos times em todas as modalidades. Tornei-me a queridinha dos professores e professoras de educação física. Tornei-me, também, aluna muito dedicada em todas as demais disciplinas, e as altas notas me davam uma espécie de "aval" para confrontar os professores por suas más condutas ou más práticas de ensino - vejam vocês... E, quando percebi, eu havia me tornado amiga daqueles que, por tantos anos, haviam me constrangido. Quando percebi, os "bulinadores" de outrora haviam se tornado meus amigos...
Bem, não é surpresa que eu não tenha querido manter quaisquer dessas amizades. Não tenho orgulho dessa fase da minha vida. Uma fase que, do ponto de vista familiar, também ia acumulando más experiências e dificuldades de todos os tipos.
Culminando com o desemprego do meu pai e a separação dos meus pais.
Foi quando precisei ir da escola particular de elite diretamente para a escola pública, período noturno, sem escalas.
Foi um choque imenso para mim, que sempre tive como sonho estudar em boas universidades e me formar com pompas. Achei que havia perdido a oportunidade... Que minhas chances haviam ficado para trás... Sofri muito com todas aquelas mudanças.
Já há muitos anos sei: foi muito mais que um choque. Foi a minha salvação.
Foi somente alguns anos depois que consegui processar realmente a grande chance que eu havia tido na vida, de sair de uma bolha e conhecer pessoas que batalhavam por suas vidas. E naquela escola pública fiz grandes amigos. Fui acolhida e respeitada. Amparada e fortalecida. Foi quando senti-me, pela primeira vez, crescida. E jamais sofri novamente qualquer tipo de constrangimento ou outra forma de bullying - ah, claro, até o advento deste blog, que me rende dezenas de manifestações impregnadas de rancor, com pessoas me chamando de "radical" ou "comunista" ou "esquerdista" ou qualquer dessas coisas que são dirigidas como se fossem xigamentos... e que me enchem de certeza de estar no caminho certo.
Mas a minha história é uma entre muitas. Entre muitas que, infelizmente, não têm um mesmo final, digamos, "feliz". Muita gente, em função de ter sido vítima de bullying, se perdeu pelo caminho. Não é raro sabermos de histórias de crianças ou jovens que desenvolveram um grave embotamento afetivo em função de anos de ridicularização, preconceito, discriminação ou qualquer outro tipo de violência.
O bullyingé, infelizmente, muitíssimo comum, frequente e - o que é pior - naturalizado. Visto como uma fase "natural" da vida. E não é. Nem deve assim ser visto. Bullyingé violência e não pode ser minimizado. E não acontece somente entre crianças ou jovens. Muitos adultos cometem bullying. Muitas vezes contra seus próprios filhos. Muitas vezes contra seus próprios alunos.
Eu fui vítima do bullying de uma professora de matemática. Seu nome era Sandra e ela trabalhava naquela mesma escola onde eu já sofria bullying de outros colegas. Não se surpreenda ao saber que matemática sempre foi, a partir daí, meu problema acadêmico... Infelizmente, não fui alvo único. Era com escárnio e desdém que ela tratava muitos dos alunos, embora dissesse em alto e bom som que era apaixonada por esse, aquele e aquela outra.
Depois de muitos anos, tornei-me professora. E jamais compreendi como era possível agir assim. Sempre tive por meus alunos o mais profundo respeito e não é raro encontrar muitos amigos entre meus antigos alunos. E vejo que, para além do preparo individual, há também uma questão de como encaramos nossos papéis como professores, educadores, mães e pais. Enfim, como cidadãos.

Quando decidi escrever sobre esse assunto, estava imersa em um tanto de dados sobre vítimas de bullying no Brasil, em uma pesquisa para um capítulo de livro que estava escrevendo. Quase segui pela abordagem mais acadêmica, mostrando porcentagens, consequências, citando estudos e tudo mais. Mas não. Decidi contar o meu caso. E, por uma incrível coincidência - ou sincronicidade - naquele exato momento uma moça chamada Vanessa entrava em contato comigo contando sobre a iniciativa que ela estava organizando. Que ela ESTÁ organizando, melhor dizendo.

Então, a partir daqui, eu abro espaço para ela e peço a você que ouça/leia essa história. É uma chance muito bacana para desmistificar a questão do bullying entre nossas crianças. Para que ninguém mais precise ser vítima. Para que ninguém mais vitimize.

Por Vanessa Bencz

Burra, lixo, desperdício de oxigênio, avoada, cabeça de vento. Esses foram alguns dos “apelidos” direcionados a mim quando eu era adolescente. Na época, tive duas escolhas: ou acreditava nesses apelidos, ou tapava os ouvidos e acreditava naquilo que meu coração dizia. Por sorte, escolhi a segunda opção. Infelizmente, sei que muitos estudantes que são vítimas de bullying acabam sem querer acreditando nos adjetivos pejorativos que ganham e aceitam a violência que sofrem.

Nos dois últimos anos, me dediquei a visitar escolas falando sobre literatura, livros e motivações. Percebi que os estudantes tinham muita curiosidade sobre minha trajetória escolar. Eles ficavam surpresos e emocionados quando eu falava que tirava notas baixas e tinha dificuldades de aprendizado. Depois, em particular, me chamavam e diziam que passavam pela mesma situação que vivi. Tiravam notas baixas, eram vítimas de uma zoação implacável e se sentiam desamparados. Ganhei a confiança dos professores e eles me pediram para lançar um trabalho que falasse sobre bullying, respeito ao próximo, motivações e sonhos. 

Tive a ideia, então, de desenvolver uma história em quadrinhos baseada em algumas situações do que vivi. Foi aí que surgiu a história da Menina Distraída, pronta, na minha cabeça. 
A protagonista se chama Leila. Ela tem 14 anos, treina kung fu, é apaixonada por desenhar e, obviamente, é a distração em pessoa. Ela não resiste a uma boa janela. O passarinho que pousou na árvore é mais interessante que o professor de matemática ou as placas tectônicas da aula de geografia. Em vez de prestar atenção nas aulas, ela fica desenhando e, pra lidar com o tédio, cria uma super-heroína perfeita, a Mulher Raio.

A consequência disso é que a garota não consegue tirar notas boas. As coisas pioram quando ela recebe a primeira nota zero. Leila vai ter que lidar com o bullying dos colegas e com os apelidos maldosamente criativos que vão minar a motivação dela, já baixa. Mas a coisa fica séria mesmo quando ela precisa confrontrar o bully da turma, um valentão chamado Samuel que vai preparar uma bela sacanagem com a protagonista. É a partir daí que Leila resolve assumir as características de força e motivação da Mulher Raio e encarar o garoto. Ela vai enfrentar, também, suas próprias limitações como uma pessoa com problemas de atenção.

A minha intenção é que Menina Distraída cause empatia e, ao mesmo tempo, transmita incentivo. É uma história super engraçada, motivadora e cheia de lições. Eu tenho certeza que essa HQ vai ser visualmente deslumbrante, vai encantar e ser útil para motivar todas as pessoas que, de alguma maneira, se sentem menosprezadas pelas outras.

Eu demorei para entender que sofri bullying na adolescência. É engraçado porque, quando as coisas não tem nome, elas vivem em uma dimensão abstrata e vaga. Quando essa palavra começou a pipocar na imprensa e na boca dos professores e psicólogos é que eu entendi. Quando comecei a pensar sobre a expressão “bullying”, levei um susto. De repente, me vi vítima. E eu não gosto desse papel, porque geralmente é carregado de fraqueza e submissão. E eu não me considero nada disso. Quando lancei meus livros, em 2012, comecei a visitar as escolas públicas de Joinville para falar sobre literatura. Mas a coisa cresceu, e literatura era apenas uma desculpa para começar o papo. E o tema que mais sensibilizava os alunos era o tal do bullying. É uma ferida aberta – e acredito que sempre vai estar aberta, até que as escolas tenham uma postura mais responsável e ativa sobre isso. Por isso, resolvi que ia me abraçar nesse tema e elaborar uma ferramenta para discussão nas escolas. Foi assim que “Menina Distraída” surgiu.

Já ouvi muita gente falando que também viveu “zoações”, e que nem por isso se sentiam abaladas. Pelo contrário: alguns disseram até que havia sido saudável. Um amigo meu chegou a dizer que o tal do bullying deixava as pessoas mais fortes, com mais personalidade. Absurdo, né? Eu acho que existe um fenômeno de negação; algumas pessoas parecem não conseguir abrir a cabeça para entender e se sensibilizar. Eu acredito, sim, que a palavra foi banalizada. Qualquer coisinha já é diagnosticada como bullying. Mas não é bem assim: o bullyingé uma agressão repetitiva, cruel, do mais forte para o mais fraco, e começa sem motivo nenhum. A pessoa ser gordinha, usar óculos, ter sardinhas ou ser negra já é “motivo” para que seja zoada até se sentir deslocada de todo um convívio. Meus amigos me mandaram depoimentos chocantes sobre isso. Alguns, como vítimas. Outros, como agressores arrependidos. O bullying, quando “amadurece” e vai para as empresas, é chamado de assédio moral. E o assédio moral tem graves conseqüências, ele é o bully que não foi combatido. 


Conheça o projeto da Vanessa. Ele está na plataforma de financiamento colaborativo Catarse. Se você puder, ajude a torná-lo realidade.
Eu ajudarei!
E espero ver em breve uma excelente obra para nos ajudar a lutar contra o bullying nas escolas.

Outras pessoas também contaram, lá na fan page do blog, um pouco sobre o bullying que sofreram. Dê o seu relato. Vamos ajudar a tirar o bullying da invisibilidade e, assim, desnaturalizá-lo.


Transmissão de saberes: dentro e fora da escola

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Quem acompanha o blog sabe da minha busca por novas possibilidades educacionais e da
identificação que tenho, pelo menos no presente momento, com a discussão em torno dos processos de desescolarização.
Acompanho diferentes grupos e pessoas que se comprometem a discutir a questão de maneira verdadeira, comprometida, incluindo em sua análise diferentes pontos de vista e tentando compreender melhor as motivações e questões que levam diferentes famílias, em diferentes regiões, a optar por desescolarizar, ou não, seus filhos.
Sigo aprendendo e participando dos debates e, até o momento, minha opinião sobre o movimento ainda incipiente de desescolarização no Brasil - ainda que receba outros nomes ou seja representando por diferentes iniciativas - vai na seguinte direção: vejo grande semelhança, em termos de motivações, princípios e quebra de paradigmas, entre o que leva as famílias a desescolarizarem seus filhos e o que leva as mulheres a desinstitucionalizarem seus partos e lutarem pela humanização do nascimento.
Mas não me aprofundarei nisso agora. Deixo para outro momento a discussão desse meu ponto de vista, que está longe de ser consensual para mim mesma e está em constante processo de construção, pois que me dedico constantemente a refletir sobre o assunto.
Por buscar novos olhares que possam contribuir para a questão da inserção (ou não) das crianças no processo educacional formal, tenho verdadeiro respeito pelo olhar dela: Carolina Pombo. Para além de concordarmos ou não uma com a outra com relação à desescolarização, ou de vivermos em países diferentes (eu no Brasil, ela na França), temos um entre muitos pontos em comum: estamos em busca de refletir profundamente sobre o assunto, incluindo diferentes olhares em nosso próprio olhar sobre a questão.
Hoje, tenho a honra de tê-la como autora deste Guest Post.
Convido vocês, então, para nos acompanhar nesse processo de reflexão.
E agradeço à Carolina por ter enviado este texto para publicação.

O dilema da transmissão de saberes dentro e fora das escolas

Por Carolina Pombo

É inevitável pensar na escola (e nos modelos escolares que temos disponíveis ao redor de nossas residências e nesse mundo globalizado) quando temos filho/a/s, mesmo que ainda sejam bebês. Todas as sociedades já encontradas nesse mundo afora desenvolveram técnicas de transmissão de saberes, dos mais elementares, do tipo “como extrair a manteiga de karité das amêndoas”, e dos mais complexos do tipo “como tornar a manteiga de karité um produtos lucrativo no mercado internacional”. Por que estou usando o exemplo da manteiga? Bom, a ideia aqui é refletir sobre como coisas aparentemente distantes estão estreitamente ligadas, coisas que passam pela peneira de nossas escolhas aparentemente tão bem fundamentadas, ao pensarmos no desenvolvimento e na escola de nossas crianças. Tentamos pensar em tudo! Tentamos preveni-las de quase tudo! Mas, no quesito transmissão/criação de conhecimentos, há muito mais entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia... A ideia desse texto é trazer alguns pontos de reflexão que podem fazer você ficar um pouco mais angustiada com essa escolha ou que podem até fazê-la relaxar e aproveitar o que a vida escolar (e extra-escolar) pode oferecer.

  
Voltemos a nosso exemplo: a manteiga de karité está presente em diversos produtos, inclusive em cosméticos e remédios que nós, mulheres ocidentais (ou quase ocidentais, já que fazemos parte dos trópicos), consumimos em larga escala. Sua descoberta é, na verdade, oriunda de uma cultura africana, onde as mulheres trabalham tradicionalmente buscando amêndoas e desenvolvendo técnicas de extração dessa gordura vegetal. Esse saber tem sido passado de geração em geração, fazendo parte das práticas cotidianas, da organização social, das comunidades e das famílias. As relações entre mães e filhas são atravessadas pela transmissão dessa técnica, assim como pela atribuição de valores espirituais e materiais ligados ao produto. Utensílios são criados, materiais para a manutenção e o transporte, relações com distribuidores, consumidores, etc., geram toda uma rede dependente dessa matéria-prima. A importância dela em certas comunidades em Burkina Faso é tão grande que tornaram-se alvo de missões humanitárias e projetos internacionais para a emancipação das
mulheres burkinesas. Elas tem sido praticamente invadidas por uma gama de “boas intenções” de Ong's internacionais para aprenderem a “vender seu peixe” no mercado globalizado. De fato, esses novos aprendizados têm servido para que as burkinesas ganhem reconhecimento mundial e saibam lidar melhor com suas poderosas compradoras multinacionais. Mas conflitos têm aparecido. Essas artesãs não querem ser simplesmente ensinadas pelos engravatados conhecedores do marketing. Elas também querem preservar sua forma tradicional, espontânea, de conhecimento, já que ela está tão ligada a outros aspectos de sua cultura e identidade.


Então agora eu traço um paralelo com a relação entre famílias e escolas formais. A princípio, queremos que nosso/a/s filho/a/s façam parte de uma rede de transmissão de conhecimentos importantes para se viver em nossas sociedades. Queremos que se sintam incluídos nessa sociedade, a ponto de contribuírem para sua manutenção e também transformação. Mas, quando as escolas começam a sobrecarregá-lo/a/s com deveres e mais deveres de casa baseados na apreensão de conteúdos formais pura e simplesmente, parece que seu papel está contradizendo justamente aquilo que tínhamos desejado ao pensar no desenvolvimento dele/a/s. Não queremos apenas detentores de um conhecimento supostamente melhor jogando um monte de matérias a serem decoradas e jamais aplicadas por nossas crianças. Isso toma o tempo delas, rouba sua oportunidade de aprender brincando, de desenvolver maneiras criativas de ensinar e aprender, e de se divertir. Não queremos que essa ânsia pela decoreba roube nosso tempo em família, invadindo nossas casas e espaços de convivialidade com a tensão já tão rotineira da ameaça de reprovação ou de uma nota baixa na escola.


Quando esse modelo escolar se torna dominante, há que se resistir. O nó da questão está em que nós não vivemos numa aldeia onde as regras sociais e as identidades culturais estão intimamente ligadas a saberes tradicionais. Há séculos atrás, a sociedade brasileira foi idealizada como uma das terras prometidas do progresso moderno, ordenado e encabeçado por uma crença científica na educação formal. Nossa sociedade constituiu sua ordem democrática a partir do letramento, da alfabetização, do direito a ler, escrever e se comunicar dentro de um modelo estabelecido. E isso gera muitas tensões. Se, por um lado, estamos muito satisfeita/o/s em fazer parte de uma democracia (apesar das  ameaças que de vez em quando aparecem), não acreditamos que o direito a participar dela deva estar atrelado a uma educação massificadora. O Brasil aprendeu muito com as críticas de Paulo Freire à “educação bancária”, aquela que foi inventada como modelo ideal mas que excluía, violentava e calava muito/a/s brasileiro/a/s. Paulo Freire chegou a fazer parte de uma secretaria de educação e influenciou bastante a transformação do projeto de transmissão de conhecimentos no nosso país. Chegamos enfim num modelo escolar perfeito que concilia inclusão, democracia e respeito às formas espontâneas de aprender? Infelizmente não.


Outro nó desse conflito está na privatização da educação. O sonho de uma escola perfeita foi atropelado pela globalização da educação focada no lucro. No Brasil, os projetos e instituições escolares se diversificaram tanto que mal conseguimos entender a relação desses projetos com as Diretrizes Nacionais para a Educação. No fim das contas, temos escolas públicas baseadas numa concepção libertária da educação, porém, constrangidas pela falta de investimento, pela desvalorização dos professores e atravessadas por enormes problemas sociais dos quais as instituições não podem dar conta sozinhas. No outro lado, temos as particulares, as instituições privadas que tem sido orientadas pelo lucro e portanto não tem muita crítica quando à prática conteudista. E há também algumas poucas iniciativas associativas, que são mais livres da ânsia pelo lucro e conseguem ter um pouco mais de recursos para se manter. Porém, acontece que muitas salas de aula que deveriam abrigar formas emancipatórias da transmissão do conhecimento viraram bancos de depósitos dos conteúdos e das regras excludentes. Chegamos no fim do poço, sem esperança para uma escola que realmente cumpra o papel que sonhamos? Eu acho que não.


Eu acredito na capacidade daquelas mulheres burkinesas em resistir de alguma forma à invasão da globalização, sem contudo abrir mão das oportunidades que ela pode trazer. Antes dos projetos humanitários, a maioria dessas africanas vivia em condições extremamente desiguais, trabalhando sem salários, submissas aos homens. Hoje, elas detém uma parte importante da renda familiar e estão adquirindo conhecimentos que contribuem para sua emancipação profissional e afetiva. Mas, para que a resistência e o aproveitamento dessas oportunidades sejam conciliáveis, é necessário que instituições e cidadãs dialoguem, debatam, disputam os espaços.


Se é necessário conhecer o mercado global para desenvolver técnicas de negociação e proteção do patrimônio cultural, que as burkinesas sejam as atoras por excelência da apropriação e transmissão desse conhecimento. Que as instituições internacionais sejam, nesse caso, facilitadoras, mediadoras desse processo e não depositantes do saber. Então, eu acredito também na capacidade das nossas crianças e de nós, mães, pais e educadore/a/s, em ocupar as escolas com os valores de educação que julgamos fundamentais. Algumas experiências associativas tem mostrado que isso é possível. E mesmo em escolas não associativas é possível exercer alguma influência, participando mais das reuniões, oferecendo-se a cuidar de alguma atividade ou estrutura da escola que não estejam em funcionamento ideal, conversando com as crianças e procurando resistir à enxurrada de deveres de casa que podem aparecer. Particularmente, eu não acredito que excluir minha filha da vida escolar seja uma boa estratégia de resistência, porque reconheço que, mesmo com suas enormes contradições, a educação formal é uma baliza fundamental da sociedade democrática. Eu quero que minha filha contribua para uma sociedade melhor, porém, antes disso, quero que ela se sinta incluída e confiante de que pode fazer alguma diferença, sem que essa diferença exclua outras crianças com recursos e contextos menos favorecidos.



*Por Carolina Pombo, autora do livro “A Mãe e o tempo: ensaio da maternidade transitória”, doutoranda em Saúde e Bem Estar Social, mãe da Laura e editora do blog www.maetempo.net

Vacina contra o HPV: nem tudo que reluz é ouro

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Durante todo o mês de março, a polêmica sobre o oferecimento da vacina contra o HPV pelo SUS e
sistema suplementar de saúde no Brasil esteve em alta. Muita gente emitindo sua opinião sobre o assunto, às vezes de maneira inflamada, mas, via de regra, sem embasamento médico-científico consistente, mais prejudicando que auxiliando a discutir um assunto tão sério quanto esse.
Interesso-me por essa questão por múltiplos motivos: sou mulher, sou mãe de menina, trabalho na área da saúde coletiva, sou pesquisadora, sou cidadã e, tendo acesso, prefiro buscar informações a partir de fontes confiáveis.
Pessoalmente, realizei uma série de buscas em bases de artigos científicos internacionais e o que encontrei não serenou minha angústia, pelo contrário. Para mim, algo ficou absolutamente claro: não há consenso sobre a efetividade e inocuidade desta vacina entre a comunidade científica. E há, sim, inúmeros casos graves relacionados a efeitos pós vacinais registrados na literatura científica mundial.

Então, neste último domingo, Daniel Becker publicou em sua página, Pediatria Integral, seu posicionamento sobre o assunto.
Daniel é médico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também trabalha atualmente, tendo atuado com Médicos sem Fronteiras e um dos criadores do Programa Saúde da Família. É fundador e conselheiro do Centro de Promoção da Saúde e pioneiro da Pediatria Integral no Brasil.
Pessoalmente, eu o admiro muitíssimo, especialmente por sua posição contra a medicalização da infância e em defesa da saúde integral das crianças. Nossos pontos de vista são convergentes em inúmeros pontos.
Recomendo fortemente, inclusive - e sinceramente não sei como ainda não havia recomendado aqui... - a entrevista que Daniel concedeu ao programa Roda Viva, na TV Cultura, em dezembro do ano passado. Assista. Inúmeras questões de fundamental importância foram discutidas com muita clareza e pertinência por ele.

Por estar plenamente de acordo com a reflexão proposta, é, para mim, uma honra ter sido autorizada a publicar aqui seu posicionamento com relação à vacina contra o HPV. Agradeço desde já ao Daniel por essa deferência, além de outras formas de apoio e incentivo que venho recebendo dele enquanto profissional. Meu objetivo ao publicar aqui essa discussão é facilitar o acesso a informações que talvez muitas pessoas ainda não conheçam. 


A Vacina contra o HPV: nem tudo que reluz é ouro

Por Daniel Becker

(Advertência: esta é uma publicação que expressa uma opinião pessoal, formada através de leituras, experiência e reflexão. Mas ela não deve substituir – como todas as outras encontradas nesta página - um aconselhamento médico pessoal. Ninguém deve receber um diagnóstico ou recomendação de tratamento através da internet. Isso deve ser feito sempre por um médico em interação pessoal, que pode fornecer um diagnóstico apropriado e,
 em seguida, discutir as opções de tratamento. Todas as decisões sobre vacinas devem ser feitas também após discussão com seu médico.)

(Advertência 2 – este é um texto longo, sobre um assunto complexo...)


Começou: o SUS está oferecendo para meninas de 11 a 13 anos a vacina que previne novas infecções contra alguns tipos de HPV. 

Segundo o discurso oficial e sobretudo o das indústrias que produzem as vacinas, trata-se de uma vacina que “previne o câncer de colo”, que mata milhares de mulheres no Brasil anualmente.

Só que as coisas não são assim tão cristalinas. Há controvérsias. Começando pelo fato de que ela previne entre 16 e 70% dos casos de câncer, e portanto, não pode prescindir do exame preventivo.

É muito difícil para um médico se posicionar fora do consenso quase universal que é gerado em torno de produtos da indústria farmacêutica. Suas estratégias de publicidade e ação política são muito inteligentes, e maciçamente financiadas. Sua influência sobre a corporação médica é extremamente poderosa. Daí suas verdades parciais tornam-se universais e absolutas. Mas algumas vozes vêm se levantando em resposta a este “massacre”, que propõe que para todo e qualquer problema existencial existe uma pílula ou uma injeção. Inclusive para problemas que não existem, e precisam ser inventados. Mesmo as grandes revistas médicas já reconhecem o poder da sua influência nas pesquisas e realizadas e nos artigos publicados. Como observou a ex-editora-chefe do New England Journal of Medicine, Dra. Marcia Angell: 

"As indústrias farmacêuticas agora financiam a maioria das pesquisas clínicas com medicamentos, e há evidências de que elas muitas vezes as distorcem, para fazer suas drogas parecerem melhores e mais seguras”. 

Sabe-se que muitas vezes são ocultados estudos que mostram fracassos ou efeitos negativos. Sabe-se cada vez mais sobre a influência da indústria sobre as agências reguladoras, aquelas que liberam ou autorizam o uso de remédios e vacinas.

Como pode um médico se posicionar contra uma vacina que “previne o câncer”? 
Mas pode ser que nessa frase estejam ocultos truques de linguagem. 
Que na verdade essa afirmação não seja tão absoluta. 
Um outro exemplo de truque de linguagem: a vacina contra a “gripe” não é exatamente isso. No Brasil a palavra gripe é usada para definir estados gripais, causados por inúmeros vírus. E em vez de chamar a vacina de “contra Influenza”- um vírus que causa uma gripe séria, mas é um entre muitos – a indústria promove a vacina como se fosse contra a “gripe”, genericamente. Não é à toa.

É fácil, portanto, distorcer a realidade complexa e cheia de controvérsias com relação ao HPV, e torná-la um discurso publicitário, destinado a vender uma vacina que talvez não seja essa maravilha toda. Aliás, as razões que levaram a Organização Mundial de Saúde e o governo americano a recomendar, e o governo brasileiro a comprar a vacina para oferecê-la gratuitamente à população em tempo recorde, podem estar relacionadas aos fortes e nem sempre lícitos laços entre a indústria farmacêutica e os tomadores de decisão em governos e sociedades médicas, como veremos abaixo. 

O fato é que a recomendação da vacina vem sendo questionada. O governo japonês, por exemplo, abandonou a recomendação após a reação da sociedade civil, pela ocorrência de casos de problemas graves em seguida à aplicação: síndrome de Guillain-Barré (uma polineurite grave), uveítes, convulsões e encefalites agudas. Muitos dirão que ainda não há estudos demonstrando a falta de segurança da vacina. Que as análises até o momento não mostram relações causais. Mas os relatos se repetem em diversos países. 

Até setembro de 2012, no VAERS (Sistema de Informação de Reações Adversas a Vacinas) do CDC, um total de 21.265 reações adversas foram associadas temporalmente ao Gardasil, só nos EUA: 78 mortes, 363 reações com risco de vida, e 609 eventos que resultaram em incapacidade permanente. Em comparação com todas as outras vacinas, o Gardasil foi associado com 60% de todas as reações adversas graves (incluindo 61,9% de todas as mortes, 64,9% de todas as reações com risco de vida e 81,8% dos casos de invalidez permanente) em mulheres com idade inferior a 30 anos. Um relatório de um sistema de vigilância de vacina passiva, como o VAERS (qualquer pessoa pode inserir informação no sistema), por si só não prova que a vacina causou a reação – apenas informa a associação. No entanto, a elevada freqüência de reações relacionadas com a vacina em todo o mundo, bem como o seu tipo (consistentemente doenças relacionadas ao sistema nervoso), aponta para uma relação potencialmente causal. Só para termos uma idéia da complexidade do assunto, a Merck utilizou placebos (injeções sem o remédio) na comparação para efeitos colaterais com o Gardasil. Só que os placebos usavam alumínio, também presente na vacina, e este componente pode ser responsável por boa parte das reações. Isso faria com que, na comparação, a vacina não tivesse provocado mais reações que o “placebo”.

Veja com detalhes aqui, neste excelente artigo médico, do Journal of Law, Medicine & Ethics: 

A medicina deveria guiar-se pelo princípio da precaução. Um dos fundamentos da bioética é: primum non nocere– antes de mais nada, não provocar danos. Se tratamos de evitar a meningite, por exemplo, uma doença para a qual não há outras estratégias de prevenção, podemos correr certos riscos de efeitos colaterais. Mas é preciso refletir se para uma vacina que previne apenas 70% dos casos de uma doença para a qual já existe uma estratégia eficaz de prevenção – o exame de papanicolau – e que continuará sendo necessário – vale a pena correr estes riscos e gastar uma fortuna dos cofres públicos ou do bolso das famílias.

Quando estava começando a escrever sobre a vacina, li uma reportagem de Claudia Collucci, da Folha de São Paulo, que expressava muito bem o que penso sobre o tema. Reproduzo aqui um resumo do artigo, e em seguida acrescento algumas questões que creio serem muito importantes para compreendermos como funciona a relação entre indústria, medicina e governo, e desta forma podermos nos situar mais criticamente em relação a medicamentos e vacinas. 


No último congresso de prevenção quartenária, em novembro último, o médico de família e comunidade Rodrigo Lima fez uma apresentação sobre os senões da vacina contra o HPV. ...A seguir, trechos de um texto que Rodrigo Lima escreveu...:"Quando a gente pensa na possibilidade de tomar uma vacina para evitar uma doença, eu considero que devemos fazer algumas perguntas:1) Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção da doença? O que a vacina traz de novo?2) A vacina realmente funciona?3) Ela é segura?4) Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?Então, vou tentar organizar uma resposta para as questões.1 - Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção do câncer de colo uterino?Temos sim. E quase todo mundo conhece: é o famoso papanicolau, ou citopatológico cérvico-uterino (popularmente conhecido como "preventivo de câncer de colo").É muito raro uma mulher apresentar câncer se realizar o papanicolau na periodicidade recomendada (anualmente, e após dois exames normais com intervalo de um ano, o exame passa a ser recomendado a cada três anos). Sabem por que? Porque o câncer de colo de útero é uma doença de evolução muito lenta (normalmente em torno de dez anos), e o papanicolau permite que detectemos formas precursoras do câncer (ou seja, alterações na células que ainda não são cânceres).O papanicolau está recomendado para as mulheres de 25 a 64 anos, e deve SER REALIZADO INCLUSIVE EM MULHERES QUE RECEBEM A VACINA (meu grifo), pois ela não protege contra todos os tipos de HPV.Então, se temos um exame confiável, barato e disponível para todas as mulheres do país, o que nos faria mudar de estratégia, partindo para usar uma vacina que NÃO EXCLUI a necessidade de realizar o mesmo exame ao longo da vida? O que esta vacina traz de novo?2 - A vacina realmente funciona?Depende. Para que? Vamos lá. O HPV é um vírus transmitido através do contato sexual. Por isso, alguns pesquisadores tiveram uma idéia: se conseguíssemos evitar a infecção pelo HPV não teríamos mais câncer de colo uterino. Faz sentido, certo? Mas essa hipótese tem alguns probleminhas.O primeiro problema desta hipótese está em como evitar a infecção. A transmissão do HPV é sexual, e basta o contato íntimo mesmo sem penetração para que a passagem do vírus aconteça.... ... Considerando que o vírus vai acabar circulando mesmo por aí, a solução mais óbvia seria vacinar as pessoas contra ele. O problema é que o HPV possui mais de 100 subtipos, e as vacinas ainda não conseguem cobrir todos eles, embora cubram os principais. Isso significa que mesmo que a vacina proteja alguém contra os subtipos que ela cobre, ela ainda permite que outros subtipos provoquem o câncer. Ou seja, ela não dá 100% de certeza de que as mulheres não terão câncer de colo uterino. A propaganda não explica isso, né? Mas é por este motivo que a bula da vacina avisa que a vacinação não exclui a necessidade de que a mulher continue realizando o papanicolau.E tem mais: nem toda infecção pelo HPV provoca câncer. Na verdade, a minoria delas faz isso. Então mais importante do que se preocupar com a infecção, parece mais importante acompanharmos se a infecção evolui para lesões perigosas ou não, né? Ou seja: dá-lhe papanicolau nessa disputa, ganhando de lavada da vacina.Outra coisa: a eficácia da vacina foi verificada apenas em meninas sem vida sexual. E o HPV é tão frequente na população que podemos dizer que se alguém já iniciou sua vida sexual, a chance de ter sido contaminado pelo vírus é de quase 100%. Ou seja, se a pessoa não é mais virgem, tomar a vacina não vai fazer nenhum efeito, porque a resposta que ela provoca no organismo não elimina os vírus que já estejam lá, apenas evitaria o contágio (OBS: a indústria já propõe a vacina para mulheres sexualmente ativas). ...Nem vou discutir os efeitos da vacina na mortalidade, porque nem deu tempo ainda de estudarem isso direito. O câncer de colo uterino é de evolução muito lenta, e acaba só sendo perigoso para mulheres que não fazem o papanicolau na periodicidade recomendada.
3 - Ela é segura?Há alguma controvérsia. Apontando a segurança da vacina nós temos os estudos feitos pelos fabricantes e as recomendações do CDC (órgão do governo dos EUA). No entanto temos alguns casos de doenças mais graves, ao ponto de existirem processos correndo na França movidos por vítimas da vacina, e casos semelhantes levaram o governo do Japão a não mais recomendar a vacina. Doenças como síndrome de Guillain-Barré, falência ovariana, uveítes, além de sintomas como convulsões e desmaios têm sido associados à vacina, mas esta relação ainda não foi demonstrada em grandes estudos.Então vamos supor que isso aconteça em uma menina a cada 30 mil que sejam vacinadas (a proporção é baseada nas notificações de efeitos adversos do CDC, chamada de VAERS, e está disponível na internet). Será que compensa o risco, mesmo que seja baixo, de ter uma doença grave, se a vacinação não é melhor do que a estratégia que temos hoje para controlar o câncer de colo uterino (o papanicolau)?4 - Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?Pra mim não compensa. Só de imaginar uma filha minha com paralisias causadas por uma vacina dessas eu descarto a idéia rapidinho. Pretendo promover uma educação sexual boa para minhas filhas, para que saibam que precisam se proteger usando preservativo (até porque outros problemas como gravidez indesejada, HIV, hepatite B, entre outros, estão batendo na porta o tempo todo). E acima de tudo, demonstrar sempre a importância de fazer o papanicolau na periodicidade recomendada. Se conseguir, duvido que elas sofram deste mal. E sem essa vacina cara e suspeita. Minhas pacientes e suas famílias receberão a mesma recomendação."
Pois é. A discussão não é simples, e a decisão de vacinar ou não é complicada. Pode-se argumentar que num país de dimensões gigantescas, com a desigualdade social e a dificuldade de acesso a serviços de saúde que temos, a possibilidade de termos a maioria das mulheres realizando seu preventivo é pequena. Mas em vez de gastar 350 milhões de reais por ano com a vacina, o Ministério talvez pudesse usar estes recursos para melhorar os serviços de saúde da mulher. A vacina contra o HPV é a mais cara da história. O lucro da Merck com ela em 2012 foi de 1,6 bilhões de dólares. Num cálculo rápido, se nosso programa vai custar 360 milhões (cerca de 150 milhões de dólares), 10% do lucro da Merck virá do nosso bolso – nossos impostos. [grifo da autora do blog]

Existe ainda a possibilidade de que, iludidas com a proteção fornecida pela vacina, muitas mulheres deixem de fazer o preventivo com regularidade – o que elevaria mais ainda a incidência de câncer, em vez de diminuí-la.

Uma reportagemdo New York Times de 2008, dois anos após o lançamento da vacina, contava algumas historias interessantes. 

A publicidade em torno das vacinas foi maciça, e recebeu prêmios de “melhor campanha de marketing de produto farmacêutico" (ah, bom...). Em anúncios no cinema, internet e TV, um elenco multi-étnico de jovens profissionais moderninhos instava meninas para se tornar "uma a menos na estatística" do câncer de colo. Os fabricantes também ofereceram grandes somas de dinheiro para grupos de mulheres, organizações médicas, lobistas e organizações políticas, muitas vezes de modo oculto. 

Centenas de médicos foram treinados e pagos para dar palestras sobre a vacina (Gardasil) - a 4.500 dólares cada uma - alguns tendo obtido centenas de milhares de dólares. Os políticos foram pressionados e convidados para recepções instando-os a legislar contra um “assassino global”. E ex- funcionários de governo foram recrutados para fazer lobby a seus antigos colegas. Gregory A. Poland, especialista em vacinas da Mayo Clinic, era um membro no painel do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) que recomendou o Gardasil em 2006, recebeu ao menos 27.420 dólares em honorários de consultoria da Merck entre 1999 e 2007.

O primeiro estado americano a aprovar uma lei exigindo a vacina para a entrada das meninas na escola foi a Virginia. Interessante: a Merck tem interesses econômicos importantes por lá - em 2006 anunciou um investimento de 57 milhões de dólares numa fabrica para produzir o Gardasil. Dois meses mais tarde, o governador Tim Kaine assinou a legislação que tornava obrigatória a vacina. Quatro meses depois, a Merck se comprometeu a investir mais $193 milhões na fábrica. Fatos semelhantes aconteceram no Texas. Os próprios participantes do painel de experts do CDC que recomendou a vacina concordam que é absurdo torná-la obrigatória. “Você realmente vai dizer a uma mãe que sua filha não pode cursar a escola porque não tomou esta vacina?".

O presidente do comitê do CDC, Dr. Jon Abramson, afirmou que “houve uma pressão incrível da indústria e da políticos”. Abby Lippman, professora da Universidade McGill, em Montreal e diretor da “Rede de Saúde da Mulher Canadense”, disse que a estratégia era “fazer as pessoas acharem que eram loucas, péssimas mães, se não vacinassem seus filhos". Estranhamente, a vacina Gardasil recebeu aprovação da FDA em seis meses. A maioria das vacinas leva três anos para obter esse tipo de autorização. Este período é justamente usado para detectar efeitos colaterais de médio prazo e aferir a eficácia da vacina.

Já na época, a reportagem expressava preocupações sobre efeitos colaterais que podem surgir a longo prazo, e com a duração da imunidade. As vacinas foram estudadas em ensaios clínicos em períodos de cinco a seis anos e meio, e ainda não está claro quanto tempo a proteção vai durar. E questionava o alarmismo repentino nos países desenvolvidos sobre o câncer do colo do útero. Nestes países, o câncer cervical é classificado como condição rara, porque é quase sempre evitável através de exames de Papanicolaou regulares. Por outro lado, é uma das principais causas de morte no mundo em desenvolvimento, particularmente na África, onde as vacinas não chegam devido a seu preço altíssimo. Então, será que Merck e Glaxo não poderiam usar parte de seus lucros gigantescos para vacinar as mulheres na África gratuitamente ou a preço de custo?

Enquanto isso, os proponentes da vacinas caminharam para a próxima fronteira: as mulheres mais velhas (que não se beneficiariam da vacina porque a grande maioria já entrou em contato com o HPV) e meninos. Já há recomendações para uso em ambos os grupos, inclusive no Brasil. O argumento é que muitas mulheres ainda não tiveram contato com o sorotipo das vacinas. Para o Ministério da Saúde, “não há indicação para que mulheres adultas sejam vacinadas contra o HPV. Não há evidência de que mulheres com vida sexual ativa tenham qualquer benefício com a imunização." Clínicas de vacinação tentam vender a vacina para meninos de 9 anos. As justificativas me parecem absurdas. Como disse um especialista em câncer cervical britânico, com o humor característico: "oh, darling.... se recomendarmos a vacina aos rapazes, toda a pretensão de valor científico e análise de custo será jogada pela janela." 

Como diz Cláudia Colucci na Folha, “só o tempo vai dizer se a imunização terá um grande impacto em termos de redução de casos de câncer e de mortes (isso nenhum estudo ainda demonstrou) ou ficará na história da medicina como mais uma jogada de marketing da indústria farmacêutica e avalizada pelas sociedades médicas”. 

Em suma: a vacina é questionável. 
Não protege completamente; pode ser causa de efeitos colaterais graves, ainda que raros; é extremamente cara; e não exclui a necessidade do exame preventivo, uma estratégia de prevenção eficaz e inócua. E demonstra de forma muito eloquente as relações entre indústria farmacêutica, medicina, governos e sociedade. 
Leia sobre o assunto, converse com seu médico e tome uma decisão baseada em fatos e no seu discernimento.

Aqui, alguns links de organizações ou críticos que se posicionam a favor da vacina:



O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso - por Simone Diniz

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Acaba de ser publicado no periódico Interface - Comunicação, Saúde, Educação um artigo que tem diretamente a ver como todos/todas que nutrem algum tipo de interesse pela questão da humanização do parto, do respeito ao parto e nascimento e da assistência obstétrica que é oferecida às brasileiras. E mesmo a quem não se interessa por isso, visto que "ter direitos"é questão universal, queira tê-los ou não.
Escrito por aquela que é, atualmente, uma das maiores pesquisadoras sobre assistência ao parto no Brasil e a quem tenho como modelo de profissional, pesquisadora, ativista e pessoa: Simone Diniz.
Ao invés de apenas compartilhar o link nas redes, incorporo agora essa publicação ao banco de textos deste blog, a fim de que seja de fácil acesso a todos que estiverem buscando informações sobre a situação atual da assistência ao parto no Brasil. Facilitar o acesso de todos à produção científica nacional é dever de todo pesquisador, especialmente em sua área de pesquisa.
Recomendo fortemente este artigo, por considerá-lo uma das leituras mais importantes dos últimos tempos no cenário da humanização, dos direitos das mulheres, do respeito ao parto e nascimento e do ciberativismo que vem impulsionando a discussão sobre o tema.



O renascimento do parto, e o que o SUS tem a ver com isso
Simone Grilo Diniz
Departamento de Saúde Materno-infantil, Faculdade
de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.

Palavras-chave: Parto. Humanização. SUS. Direitos das
mulheres. Direitos dos pacientes. Ciberativismo.
Interface - Comunicação Saúde Informação - 2014; 18(48):217-20


O que faz com que um filme seja tão valorizado pelo seu público que este se encarregue coletivamente do seu financiamento, divulgação e distribuição? O documentário O renascimento do parto bateu o recorde de crowdfunding mais rápido no Brasil: a meta inicial, estimada para sessenta dias, foi alcançada em apenas três, garantindo sua edição final. Divulgado amplamente nas redes sociais desde antes do seu lançamento em agosto de 2013, em outubro já havia sido visto por mais de dez vezes o número médio de espectadores de documentários no Brasil. Nos municípios menores, usuárias organizam campanhas para que o filme chegue até elas. O uso do filme como recurso educativo certamente se multiplicará com seu lançamento no formato DVD, esperado para fevereiro de 2014.

O Renascimento vem numa sequencia de fenômenos de mídia produzidos pelos movimentos sociais que lutam por mudanças na assistência ao parto no Brasil. Como o vídeo do parto domiciliar de Sabrina Ferigato (1), visto mais de quatro milhões de vezes, e que motivou desde muitas repercussões na imprensa, e até uma ameaça de processo contra o professor Jorge Kuhn (por ter declarado seu apoio ao parto domiciliar para pacientes selecionadas, prática prevista em vários países desenvolvidos). Esta ameaça, por sua vez, desencadeou dezenas de manifestações de rua em todo o Brasil em apoio
ao professor, e ao direito de escolha, pela mulher, do profissional e do local de parto.

O filme mostra que as intervenções que a grande maioria dos profissionais entende como o cotidiano “normal” da assistência (episiotomias e ocitocina não informadas e não consentidas, imobilização deitada de costas com as pernas abertas, negação de acompanhantes e de privacidade, manobra de kristeller, hospitalização obrigatória, imposição da cesárea por motivos fictícios, entre outros), passam a ser descritas pelas usuárias como formas de violência contra as mulheres. Estas novas narrativas causam espanto nos profissionais, como mostra o filme “Violência obstétrica – a voz das brasileiras” (2)  (melhor documentário no Seminário Internacional Fazendo Gênero, 2013), que denuncia em detalhes esta realidade, e que foi também feito coletivamente, a partir de uma pesquisa baseada na Internet, com as narrativas das mulheres feitas por elas mesmas, em suas casas (2).
Além de evidenciarem o vigor das novas estéticas, conhecimentos e projetos de saúde gestados coletivamente pelas redes sociais, estes filmes chamam a atenção para uma tendência nas relações médico-paciente nos próximos anos: pode acontecer de as usuárias conhecerem melhor as evidências científicas sobre segurança e efetividade das práticas de saúde que os profissionais. Com o advento da Internet, as usuárias e suas famílias conhecem a realidade de outros países, onde políticas públicas promovem o parto espontâneo e centrado na mulher. Entram em contato com a literatura científica e de direitos sobre o parto (em linguagem “livre de jargão”, dirigida a usuárias), o que leva a um choque
cultural frente às crenças dos profissionais de saúde. Ao se apropriarem da informação antes monopolizada pelo médico, as usuárias relativizam a autoridade do profissional, afirmam sua insatisfação com o que é oferecido, reinterpretam sua experiência, denunciam a violência a que se
sentem submetidas, e reivindicam seu direito de escolha e recusa informada (3).

O filme mostra que temos um discurso duplo, ambivalente, onde se afirma a superioridade dos desfechos do parto “normal”, porém o discurso subjacente, baseado na tocofobia (medo, aversão, nojo do parto), é hegemônico e autoritativo – é o que vale na prática. Não há discurso oficial, no setor público ou privado, que consiga contradizer a realidade de que a grande maioria das profissionais de saúde, gestores e formuladores de políticas tem filhos por cesáreas. Como conta uma médica no filme: “Ficaram muito espantados, me disseram que há dez anos nenhuma médica tinha parto normal neste hospital”. Para muitos profissionais, parece haver algo de essencialmente errado nas mulheres quererem um parto normal, pois elas deveriam “desejar” uma cesárea. No filme, a obstetra Melânia Amorim afirma que, “quando se entrevistam mulheres no pós-parto, elas muitas vezes acreditam que houve uma indicação real de cesariana. Quando se entrevistam os médicos, eles vão atribuir a culpa da cesariana a uma decisão da mulher”. Melânia e outros entrevistados listam dezenas de indicações de cesárea fictícias que são utilizadas para coagir as mulheres, com ameaças de desfechos adversos, para o bebê ou para elas, caso não obedeçam imediatamente. Os profissionais por sua vez, ainda se apegam a noções e práticas obsoletas e agressivas na assistência ao parto vaginal no setor público, e, no setor privado, aderem à concepção misógina de que o parto vaginal é primitivo, inconveniente, insuportavelmente doloroso, repulsivo em seus aspectos mais corporais, e danoso à saúde sexual da mulher – portanto deveria ser “prevenido” sempre que possível. Insistir em ter um parto espontâneo, para aquelas mulheres de classe média que podem evitá-lo, é motivo para estranhamento, e, não raro, para aberta hostilidade por parte dos serviços (3). 

O filme mostra as inúmeras mulheres que queriam um parto fisiológico, mas que se sentiram coagidas a fazer uma cesárea sob ameaça de abandono da assistência, ou de sequelas para o bebê (às vezes mediante fraude, como imagens de circulares de cordão no ultrassom forjadas para induzir à cesárea). Como mostra o Renascimento, ao contrário da crença prevalente no Brasil, o parto espontâneo é hoje considerado um momento privilegiado de promoção da saúde física e emocional, da mãe e do bebê, não apenas a curto prazo, mas com repercussões para toda a vida (4). Segundo os diretores, o objetivo do documentário é destacar a importância do parto normal – que, poderia ser feito em até 90% dos casos, contra 10% de gestações de maior risco – e do trabalho de parto.
Sabe-se hoje que um parto fisiológico bem- sucedido, cercado de respeito e segurança, pode propiciar, para a mulher, uma experiência existencial extraordinária, levando a um sentimento de competência como mãe e como pessoa, e a lembranças positivas associadas à maternidade, o que facilita a vinculação com o bebê e o início da amamentação. Sem mencionar a diferença de bem-estar físico e emocional por estar livre da dor intensa resultante das feridas cirúrgicas pós-parto, sejam resultantes de cesárea ou de episiotomia (5). Além disso, sabe-se que o parto vaginal propicia uma colonização saudável do microbioma do recém-nascido, levando a um risco diminuído de obesidade, diabetes, asma, alergias e outras doenças crônicas no decorrer da vida. Os nascidos de cesárea, por sua vez, tem seu microbioma inicialmente colonizado por bactérias hospitalares, o que aumenta seus riscos ao longo da vida (4).

A diferença de prognóstico quanto às enfermidades crônicas não transmissíveis relacionada à via de parto, hipótese trazida pelas ciências básicas e confirmada em estudos epidemiológicos, deve ser uma tema crucial para a Saúde Coletiva nos próximos anos. O Renascimento corajosamente aborda o
tema difícil dos conflitos de interesse, seu papel na epidemia de cesárea, e suas repercussões na
saúde materna e neonatal. “A gente tem muito mais internações em UTIs nas vésperas de grandes feriados” diz o pediatra Ricardo Chaves. Ele conta que muitas cesáreas são feitas por conveniência médica, em prejuízo dos bebês, o que permite, ao profissional, voltar para o consultório, pois as cirurgias são agendadas com antecedência e duram de 15 a vinte minutos, em vez de passar até 12 horas acompanhando um trabalho de parto.

Pode-se dizer, com razão, que o filme aborda, sobretudo, a realidade do setor privado. Estudos
mostram que, na cultura brasileira, as usuárias do SUS não tem reconhecido seu direito à autonomia, devendo se subordinar ao julgamento médico acerca do que seria melhor para a gestante e seu bebê, enquanto as mulheres do setor privado, além de serem pagantes, são consideradas “diferenciadas”, mais escolarizadas, portanto moralmente mais capacitadas, e teriam, assim, direito à escolha sobre as intervenções (6). Então, o que um filme sobre “direito à escolha” no parto tem a ver com o SUS? Tudo, se pensarmos a assistência à saúde considerando os princípios da equidade, do controle social, da
integralidade, e da humanização (7). 

Quanto à equidade, o filme deixa bem claro: apesar da crença dominante na preferência pela cesárea, o que as mulheres querem é ficar livres de maus-tratos, de abandono, de negligência, de solidão, de ataques à sua integridade física e sexual. Enquanto o parto chamado “normal” for assistido de forma tão agressiva e privada de direitos, a cesárea aparecerá com alternativa menos aflitiva, dolorosa e abandonada. Será uma escolha entre o ruim e o pior, e por isso a busca de tantas mulheres pelo setor privado. Como dizem os movimentos sociais: “Chega de parto violento para vender cesárea” (7).

Pode-se dizer também que o parto espontâneo e humanizado, acompanhado por profissionais
experientes na assistência ao parto fisiológico, tem se tornado um sonho de consumo, um privilégio
das mulheres mais ricas e escolarizadas. Porém em alguns poucos locais, as mulheres do topo da
hierarquia social procuram o SUS justamente pelo fato de ser mais próximo deste modelo que o
setor privado. Quem quiser saber detalhes, veja, por exemplo, o ótimo vídeo sobre o Hospital Sofia
Feldman e seu Centro de Parto Normal (CPN). Precisamos multiplicar o SUS que dá certo – o
que exige coragem e ousadia por parte dos gestores para mudar o modelo agressivo e obsoleto que impera no SUS, apostando na implementação de CPNs e na contratação de obstetrizes e enfermeiras obstetras para o cuidado de gestantes e parturientes saudáveis. Queremos equipes interdisciplinares e integradas ao sistema, com acesso automático e sem hostilidades aos níveis de complexidade necessários em caso de transferência, como em países desenvolvidos. Queremos que o SUS se diferencie do setor privado, que aderiu sem disfarces ao modelo da cesárea obrigatória.

Em termos do controle social, a participação do movimento nas instâncias do SUS tem sido de grande ajuda: por exemplo, em São Paulo, a Conferência Municipal aprovou a construção de cinco centros de parto normal, uma por região do município, o que pode fazer toda a diferença. A ouvidoria da Rede Cegonha tem oferecido um manancial de informação sobre as enormes distorções e sobre o que é preciso mudar, ouvindo diretamente as usuárias do SUS.

Quanto à integralidade, como o filme aborda, o parto é um fenômeno biopsicossocial, e espiritual, e a sua redução às dimensões biológicas não apenas empobrece e entristece a experiência, mas também, evidentemente, reduz a sua segurança e sua efetividade. O modelo do parto fisiológico, facilitado por um cuidado acolhedor, seguro e amigável à mulher, ao bebê e à família, propicia uma transição gravidez-puerpério, e fetal-neonatal mais fisiológica, saudável e satisfatória, reservando o uso de medicamentos e de cirurgia para sua utilização apropriada e seletiva, promovendo, assim, a saúde das gerações futuras.

Não custa lembrar que as propostas de humanização do parto inspiraram e anteciparam as propostas do SUS em, pelo menos, uma década, e que a Rede de Humanização do Parto e Nascimento (REHUNA), em 2013, completa vinte anos de influência nos movimentos sociais e em políticas públicas. E que está bem representada no filme - em personagens, como em ideário.

Referências

1. Scaggianti V, Schub S. Parto de Sabrina Ferigato, nascimento de Lucas. Fotografia e edução: Além d'Olhar. [acesso 2014 fev 23]. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=qiof5vYkPws

2. Zorzam B, Moreiras Sena L, Franzon AC, Brum K, Rapchan A. Violência obstétrica - a voz das brasileiras [acesso 2014 fev 23]. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=eg0uvonF25M

3. Salgado, HO, Niy Dy, Diniz CSG. Groggy and with tied hands: the first contact with the newborn according to women that had an unwanted C-section. J Hum Growth Dev. 2013; 23(2): 190-97.

4. Neu L, Rushing J. Cesarean versus vaginal delivery: long-term infant outcomes and the hygiene hypothesis. Clin Perinatol. 2011; 38:321-31.

5. Fenwick J, Hauck Y, Schmeid V. Dhaliwal S, Butt J. Association between mode of birth and self-reported maternal physical and psychological health problems at 10 weeks postpartum. Int J Childbirth. 2012; 2(11): 115-25.

6. Martinho RL. Humanização do parto: análise da teoria e implantação do programa em Salvador [tese] Salvador: Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia; 2011.

7. Diniz SG; D'Oliveira AFPL, Lansky S. Equity and women's health services for contraception, abortion and childbirth in Brazil. Reprod Health Matters. 2012; 20:94-101.







As crianças não estão mais doentes. Nós é que estamos menos hábeis para lidar com a infância.

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Essa semana, a jornalista Adriana Franzin, do Portal EBC, me procurou para uma entrevista sobre a
epidemia de diagnósticos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e de prescrição de metilfenidato (Ritalina, Concerta) às crianças.
Conversamos um pouco e, a partir dessa conversa, Adriana elaborou uma matéria que foi publicada hoje na seção "Para Pais" do Portal EBC.
Então, convido vocês para uma reflexão sobre o que essa epidemia medicalizante diz sobre nossas crianças, sobre nossos comportamentos enquanto mães, pais, educadores e profissionais da saúde e sobre nossa sociedade.
Nossas crianças estão mesmo mais doentes ou somos nós que estamos perdendo nossas habilidades de acolhimento? Elas estão mais doentes ou nós é que estamos mais interessados em nossas aspirações individuais? Elas estão mais doentes ou a escola está despreparada para reconhecer, aceitar, acolher e potencializar as diferenças? Por que é mais fácil aceitar uma doença do que um despreparo individual e coletivo para lidar com a infância e com as diferenças?
Abaixo, a matéria e uma parte da entrevista.

Aproveito, também, para recomendar a leitura do excelente artigo "A droga da obediência:
medicalização, infância e biopoder - notas sobre clínica e política", de autoria de Kely Magalhães Decotelli, Luiz Carlos Teixeira Bohre e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, todos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado no periódico Psicologia: Ciência e Profissão. Recomendo especialmente a leitura dos tópicos "A apropriação da infância pelo saber médico" e "A criança como ser consumidor", do referido artigo.


Ritalina torna criança apática e sem criatividade, diz especialista


O metilfenidato, vendido com o nome de Ritalina ou Concerta, é uma droga que estimula o sistema nervoso central aumentando a concentração da dopamina e da noradrenalina, neurotransmissores do cérebro, e é indicada para o tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O problema é causado pelo mau funcionamento de estruturas neurais e tem como sintomas mais comuns a dificuldade de concentração, inquietude e impulsividade.
A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 4% dos adultos e de 5% a 8% de crianças e adolescentes em todo o mundo tenham TDAH. No entanto, os dados sobre o comércio da droga no Brasil indicam uma discrepância no uso.
Leia também:
Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, de 2000 a 2008, a venda de caixas de metilfenidato saltou de 71 mil para 1.147.000, um aumento de e 1.615%. De acordo com dados fornecidos pela consultoria IMS Health do Brasil, de julho de 2012 a julho de 2013 foram comercializadas 2,75 trilhões de caixas com metilfenidato.
Especialistas afirmam que os números podem indicar a prescrição desnecessária do medicamento. Na opinião de Ligia Sena, que tem pós-doutorado em Farmacologia, o diagnóstico, muitas vezes, é baseado apenas em relatos de pais e educadores que consideram as crianças “agitadas”, “curiosas”, ou “que falam demais”.
Assista à entrevista completa:



“Hoje a gente está imerso em uma sociedade altamente medicalizada em que os problemas naturais do dia a dia são vistos como doença. Hoje a gente não diz 'estou triste', diz 'estou deprimido'. Não tem mais crianças espontâneas, ativas, brincalhonas, tem crianças hiperativas”, defende.
Segundo ela, o consumo sem necessidade pode fazer com que as crianças fiquem prostradas, apáticas, quietas, mas também pode haver um “efeito paradoxo”: “Ás vezes ela fica mais agitada, ansiosa e aí a família entra em desespero porque nem a droga conseguiu controlar”.
Mas no geral, o que se percebe, segundo Ligia Sena, que é autora do blog Cientista que
virou Mãe, é a perda da capacidade criativa, da eloquência, do interesse, e é aí que está o principal prejuízo. A droga, na opinião dela, interfere na personalidade e reduz o potencial inventivo de crianças que demonstram claramente ter um diferencial em relação às demais.
O problema, segundo ela, não está nas crianças, mas nos adultos: “Nós estamos cada vez menos hábeis a lidar com a infância da forma que ela é, com os anseios e necessidades naturais das crianças. A vida
está muito corrida, estamos trabalhando muito e não temos mais tempo para brincar com nossos filhos ou para desenvolver um método educativo que acolha realmente essas crianças de uma forma igualitária”.
Ela afirma que o fato da sociedade atual desejar crianças mais calmas e comportadas tem a ver com o despreparo para perceber as diferentes necessidades de cada ser humano. “O fato de eu querer que a minha filha fique ali boazinha enquanto eu estou trabalhando é um interesse meu, não é um problema dela. As crianças não estão ficando doentes. O que está acontecendo é uma redução da habilidade de mães, pais, profissionais de saúde e educadores de lidar com as diferenças naturais das crianças, de respeitar as diferenças", argumenta.

"Mulheres que merecem ser estupradas". "Homem cabeça do lar". "Toda mulher sonha se casar". Qual a parte que te cabe nesse latifúndio?

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Você ensina sua menina a ter "modos de menina"?
Você ensina seu menino a brincar de "brincadeiras de menino" e a se "portar como um homenzinho"? 
Você acredita quer há brincadeiras de meninas e brincadeiras de meninos?
Você acha que às meninas estão reservadas as bonecas e panelinhas e, aos meninos, carrinhos e armas?
Você compra de empresas que valorizam o sexismo na infância?
Você acha que devemos educar meninas diferente da maneira como educamos meninos?
Você estimula a adultização e sexualização precoce das crianças?
O fato de seu filho preferir a She-Ha ao He-Man é, para você, motivo de preocupação?
Preocupa-se com o quão másculo é o comportamento de seu filho?
Faz questão de excluir do enxoval da sua filha a cor azul? Ou do seu filho a cor rosa? Porque, afinal, é desde cedo que se ensina a diferença entre meninas e meninos?
Você diz que está passando de consumidor para fornecedor quando sabe que será pai de uma menina?
Ou cria seu filho para ser um "pegador"? Ou faz piadinhas como "Esse vai pegar muito..."?
Ou impede que seu filho faça as tarefas domésticas enquanto exige isso de sua filha?
Você seria incapaz de matricular seu filho na aula de dança e sua filha no futebol, a fim de que aprendam suas diferenças "inatas"?

65% dos brasileiros acham que mulher que usa roupa que mostra o corpo merece ser estuprada (essa foi a frase usada, nem mais, nem menos). Você deve ter lido isso na semana que passou. Faz parte dos resultados de uma pesquisa realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). 
Sobre isso, o relatório afirma:
"Por trás da afirmação, está a noção de que os homens não conseguem controlar seus apetites sexuais; então, as mulheres, que os provocam, é que deveriam saber se comportar, e não os estupradores. A violência parece surgir, aqui, também, como uma correção. A mulher merece e deve ser estuprada para aprender a se comportar. O acesso dos homens aos corpos das mulheres é livre se elas não impuserem barreiras, como se comportar e se vestir “adequadamente”. 
Tão chocante quanto é saber que a maior parte das pessoas que pensam isso são... mulheres. Mulheres acham que mulheres merecem ser estupradas. Mulheres culpam a si próprias pelo estupro que sofrem ou podem vir a sofrer. São gerações de culpabilização e esmagamento da mulher por um sistema patriarcal violento, fazendo com que mulheres aceitem a violência sofrida e culpabilizem as próprias mulheres...

"Se as mulheres soubessem como se comportar haveria menos estupros". Mais da metade dos entrevistados também acredita nisso.

"Casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família". Mais de 60% concorda com essa frase, bem como quase 90% acha que "roupa suja deve ser lavada em casa" e mais de 80% acha que "em briga de marido e mulher não se mete a colher".

Sim. A maioria da população brasileira também mantém a visão da família como sendo uma unidade patriarcal.

64% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a ideia de que "o homem deve ser a cabeça do lar"

Quase 80% apresenta uma visão bastante estereotipada de mulher, concordando com a ideia de que "toda mulher sonha em se casar" - o que significa dizer que a mulher somente alcançaria a plenitude através de um homem. Católicos concordam 1,5 vez a mais com essa afirmação. Evangélicos concordam 1,8 vez a mais. 

Mais ainda.

60% concorda com a ideia de que "uma mulher só se sente realizada quando tem filhos". Está no relatório do Ipea:
"O modelo é androcêntrico e heteronormativo: coloca o homem e o masculino como referência em todos os espaços sociais. O universal, o neutro é masculino; e o homem que deve deter o poder – de decisão, de mando, de recursos e sobre o corpo e a mente da mulher. A união entre pessoas do mesmo sexo aparece, portanto, como uma subversão em que homens ocupam lugares de mulheres. A adesão estrita ao modelo dá azo à homofobia, e assim, a rejeição à homossexualidade é esperada".
41% concorda total ou parcialmente com a ideia de que "a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade". Também neste caso, a religião tem papel importante: evangélicos tem 1,3 vez mais chance de concordar com essa afirmação. 

Mais de 50% concorda, em maior ou menor grau, com a afirmação "tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama" - ideia machista cultivada na mais tenra infância...

Isso tudo me chocou muito. Choca muito. Deve chocar. 
Choca, entristece, consterna e preocupa. Saber que milhares de pessoas aceitam e cultivam a ideia de que, sim, a mulher é um ser inferior, que deve se subjugar, ser subserviente, ser usada, ser violentada, ser secundária, é realmente consternador.

A você, que é mãe, pai, cuidador, que cria e educa crianças em meio a essa realidade, permeada por essas crenças, eu pergunto: qual a parte que te cabe nesse latifúndio?Qual a sua participação enquanto cidadão formador de novos cidadãos na manutenção - parcial ou total - de tais valores e crenças? Quanto a forma como você cria e educa contribui para que meninos e meninas cresçam achando que mulher que está de saia ou decote está "pedindo" para ser estuprada? Quanto a forma como você educa contribui para o respeito às liberdades individuais e à autonomia? Quanto de sexista há na sua forma de educar? 

Eu poderia incluir muitas outras perguntas às que abrem esse post. Mas aquelas me bastam para dizer que, se você respondeu "sim" (ou ficou em dúvida) a qualquer uma dessas questões, você faz parte, em maior ou menor grau, dessa grande parcela da população que acredita que a violência sofrida pela mulher é culpa dela.
Se achou que "ah, mas não é bem assim..." em algum dos casos, você também está nos 65%.
Basta que conheça os dados das pesquisas que mostram a relação entre sexismo, infância, machismo e violência contra a mulher. E que saiba que sexismo na infância é a porta de entrada para a aceitação e naturalização da violência contra a mulher na idade adulta.
Não há contemporização. Não há meio termo. Não há "vamos ser moderados".
Não há.
É por achar que há, que chegamos a esse número alarmante de 65% considerarem mulheres merecedoras de uma das formas mais extremas de violência.
Ou você se posiciona contra a violência ou está a favor dela. 
E quando nos tornamos pais, mães e cuidadores, nosso papel na formação dessa consciência crítica (ou acrítica) se intensifica.

#NãoMerecemosSerEstupradas #EuNãoMereçoSerEstuprada #NinguémMerece
Eu faço parte dos 35% dos brasileiros que sabem que a causa de um estupro é uma só: um homem que decidiu estuprar. E pensar assim não representa, para mim, nenhum tipo de orgulho. É o mínimo que se pode esperar de alguém que reconhece o outro como detentor de direitos a serem respeitados. O mínimo!
E se você não está nesses 35%, preciso que você saiba: nós não estamos do mesmo lado. 
E é o seu lado que eu combato.




As crianças não estão mais doentes. Nós é que estamos menos hábeis para lidar com a infância.

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Essa semana, a jornalista Adriana Franzin, do Portal EBC, me procurou para uma entrevista sobre a
epidemia de diagnósticos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e de prescrição de metilfenidato (Ritalina, Concerta) às crianças.
Conversamos um pouco e, a partir dessa conversa, Adriana elaborou uma matéria que foi publicada hoje na seção "Para Pais" do Portal EBC.
Então, convido vocês para uma reflexão sobre o que essa epidemia medicalizante diz sobre nossas crianças, sobre nossos comportamentos enquanto mães, pais, educadores e profissionais da saúde e sobre nossa sociedade.
Nossas crianças estão mesmo mais doentes ou somos nós que estamos perdendo nossas habilidades de acolhimento? Elas estão mais doentes ou nós é que estamos mais interessados em nossas aspirações individuais? Elas estão mais doentes ou a escola está despreparada para reconhecer, aceitar, acolher e potencializar as diferenças? Por que é mais fácil aceitar uma doença do que um despreparo individual e coletivo para lidar com a infância e com as diferenças?
Abaixo, a matéria e uma parte da entrevista.

Aproveito, também, para recomendar a leitura do excelente artigo "A droga da obediência:
medicalização, infância e biopoder - notas sobre clínica e política", de autoria de Kely Magalhães Decotelli, Luiz Carlos Teixeira Bohre e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, todos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado no periódico Psicologia: Ciência e Profissão. Recomendo especialmente a leitura dos tópicos "A apropriação da infância pelo saber médico" e "A criança como ser consumidor", do referido artigo.


Ritalina torna criança apática e sem criatividade, diz especialista


O metilfenidato, vendido com o nome de Ritalina ou Concerta, é uma droga que estimula o sistema nervoso central aumentando a concentração da dopamina e da noradrenalina, neurotransmissores do cérebro, e é indicada para o tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O problema é causado pelo mau funcionamento de estruturas neurais e tem como sintomas mais comuns a dificuldade de concentração, inquietude e impulsividade.
A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 4% dos adultos e de 5% a 8% de crianças e adolescentes em todo o mundo tenham TDAH. No entanto, os dados sobre o comércio da droga no Brasil indicam uma discrepância no uso.
Leia também:
Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, de 2000 a 2008, a venda de caixas de metilfenidato saltou de 71 mil para 1.147.000, um aumento de e 1.615%. De acordo com dados fornecidos pela consultoria IMS Health do Brasil, de julho de 2012 a julho de 2013 foram comercializadas 2,75 trilhões de caixas com metilfenidato.
Especialistas afirmam que os números podem indicar a prescrição desnecessária do medicamento. Na opinião de Ligia Sena, que tem pós-doutorado em Farmacologia, o diagnóstico, muitas vezes, é baseado apenas em relatos de pais e educadores que consideram as crianças “agitadas”, “curiosas”, ou “que falam demais”.
Assista à entrevista completa:



“Hoje a gente está imerso em uma sociedade altamente medicalizada em que os problemas naturais do dia a dia são vistos como doença. Hoje a gente não diz 'estou triste', diz 'estou deprimido'. Não tem mais crianças espontâneas, ativas, brincalhonas, tem crianças hiperativas”, defende.
Segundo ela, o consumo sem necessidade pode fazer com que as crianças fiquem prostradas, apáticas, quietas, mas também pode haver um “efeito paradoxo”: “Ás vezes ela fica mais agitada, ansiosa e aí a família entra em desespero porque nem a droga conseguiu controlar”.
Mas no geral, o que se percebe, segundo Ligia Sena, que é autora do blog Cientista que
virou Mãe, é a perda da capacidade criativa, da eloquência, do interesse, e é aí que está o principal prejuízo. A droga, na opinião dela, interfere na personalidade e reduz o potencial inventivo de crianças que demonstram claramente ter um diferencial em relação às demais.
O problema, segundo ela, não está nas crianças, mas nos adultos: “Nós estamos cada vez menos hábeis a lidar com a infância da forma que ela é, com os anseios e necessidades naturais das crianças. A vida
está muito corrida, estamos trabalhando muito e não temos mais tempo para brincar com nossos filhos ou para desenvolver um método educativo que acolha realmente essas crianças de uma forma igualitária”.
Ela afirma que o fato da sociedade atual desejar crianças mais calmas e comportadas tem a ver com o despreparo para perceber as diferentes necessidades de cada ser humano. “O fato de eu querer que a minha filha fique ali boazinha enquanto eu estou trabalhando é um interesse meu, não é um problema dela. As crianças não estão ficando doentes. O que está acontecendo é uma redução da habilidade de mães, pais, profissionais de saúde e educadores de lidar com as diferenças naturais das crianças, de respeitar as diferenças", argumenta.

Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.

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Março se despede deixando um gosto desagradável de "mês do estranhamento" ou "mês do mal estar". Inúmeras situações nos causaram imenso desconforto. Desconforto, estranhamento, mal estar, indignação, perplexidade e sentimento de incredulidade.
Porque, realmente, depois de tudo o que sofremos enquanto brasileiros, depois de todas as lutas, de todos os desafios ainda em superação, é pouco crível que ouçamos e leiamos manifestações como "Queremos os militares no poder novamente!", ou "Enquanto vocês, mulheres, estão aqui reivindicando direitos, a roupa se acumula pra lavar, quem as vai lavar?!". 
É quase inacreditável. 
No sentido de ser muito, muito difícil acreditar que consigamos desconsiderar a história de sofrimento de um povo na construção de sua nova biografia. Como alguém pode, em livre e sã consciência, manifestar esse tipo de pensamento servil?! 
Eis aí a questão primordial: consciência? Qual?
Somo um país de pessoas com pouca ou nenhuma consciência crítica. Que toma como sua a verdade massificadora das mídias. Que pouco ou nenhum esforço faz para manter viva a memória histórica do país. E que sistematicamente tenta legitimar a expressão presente no hino da (pseudo) independência: temor servil.
E ausência de senso crítico e memória histórica é porta aberta à manifestação da autocracia, da dominação e da opressão, velada ou explícita.
É à falta de historicidade e senso crítico que atribuo as manifestações do último mês.
Aqui em Florianópolis, vivemos a invasão da Universidade Federal de Santa Catarina por uma polícia despreparada, atrapalhada e sem qualquer tipo de inteligência, com a suposta justificativa de estar "combatendo o tráfico". Balela. O resultado da operação: 5 baseados apreendidos, pancadaria, bombas de efeito moral, muito gás lacrimogênio, alunos, professores e funcionários sendo coagidos e violentados, crianças da creche universitária saindo com máscaras para não se intoxicarem, em completo estado de pânico. Para que? Para que um delegado com pretensões eleitoreiras - e base religiosa - fizesse seu meio de campo e despertasse a fúria conservadora e reacionária da comunidade universitária florianopolitana/catarinense. 
Na última semana, tivemos também a divulgação dos resultados da pesquisa sobre tolerância à violência contra a mulher pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: mais da metade da população cultiva - e cultua - crenças machistas e misóginas que culpabilizam a mulher pela violência sofrida e mostra-se tolerante - e conivente - com a agressão física, moral, emocional e com o estupro.
Ainda neste mês, tivemos também um lamentável episódio de ressurreição daquilo que deveria estar morto, enterrado e decomposto: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma vexatória tentativa de relembrar, com louvor, um episódio histórico profundamente lamentável do Brasil, a marcha anticomunista e de apoio ao golpe militar. Golpe que, em 31 de março e 01 de abril de 2014, completa 50 anos. Foi com sentimento de alívio que acompanhei a cobertura de algumas mídias sobre este recente episódio estilo walking dead brasileiro: 500 pessoas na maior capital brasileira, 15 pessoas ali, 5 acolá, 3 em Florianópolis, nenhuma em Salvador. Mas foi também com grande incômodo que encontrei dezenas de manifestações pró-marcha, pró-retorno da ditadura, pró-intervenção militar. Fiz uma pequena seleção de fotos. E é muito importante que você as veja atentamente, antes de acompanhar o texto de fundamental relevância que segue abaixo delas, de autoria de Ana Castro.









De todas, a última é a que me causa maior desconforto. Talvez por reunir duas gerações. Ou talvez por ser uma mulher a segurar um dos cartazes. E porque sei, pelo menos a partir do que nos foi permitido saber, o que as mulheres viveram no período da ditadura militar no Brasil. Se hoje precisamos lutar a ferro e fogo contra as manifestações de misoginia, machismo, preconceito e discriminação, naquele período ser mulher representava ainda mais risco de ser violentada, torturada e humilhada de todas as formas. Especialmente se você era uma mulher em defesa da democracia e do respeito aos direitos. Se você era uma mulher mãe, então, seu horizonte tornava-se ainda mais temeroso.
Então, somente me resta crer que essas pessoas, especialmente mulheres, que permanecem em  defesa da ditadura tenham completa ignorância sobre o que outras mulheres viveram, sobre o que o Brasil passou, sobre toda a violenta e desumana luta que foi necessária para que reconquistássemos o direito de ter representatividade e sermos ouvidos. 

Neste 31 de março, completamos 50 anos dos eventos que tornaram possível o golpe militar que inaugurou um dos períodos mais terríveis da história do Brasil. O que esse período representou para mulheres em geral e, especialmente, para mulheres mães? Que histórias ignoram ou denigrem aqueles que defendem a volta da ditadura e da intervenção militar? O que não estamos contando a nossos filhos, a fim de que permaneça viva a memória do que vivemos enquanto povo? O que estão defendendo aqueles que querem de volta a violência máxima legitimada?
O texto a seguir é de autoria de Ana Castro. A quem agradeço muito por ter considerado este blog digno de divulgá-lo.

Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.
Por Ana Castro*


“(...) O interrogando ouviu os gritos de sua esposa e, ao pedir aos policiais que não a maltratassem, uma vez que a mesma estava grávida, obteve como resposta uma risada; [...] que ainda neste mesmo dia, teve o interrogando notícia de que sua esposa sofrera uma hemorragia, constatando-se posteriormente, que a mesma sofrera um aborto”


Depoimento do professor Luiz Andréa Favero, então com 26 anos.

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 “(...) que foi ameaçada de ter seu filho ‘arrancado’ à ponta da faca”

Depoimento da vendedora Helena Mota Quintela, então com 28 anos.

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 “(...) sofreu violências sexuais na presença e na ausência do marido”

Depoimento da revisora gráfica Maria da Conceição Chaves Fernandes, então com 19 anos.

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“na tarde desse dia, por volta das 7 horas, foram trazidos seqüestrados, também para a Oban, meus dois filhos, Janaína de Almeida Teles, de 5 anos, e Edson Luiz de Almeida Teles, de 4 anos, quando fomos mostrados a eles com as vestes rasgadas, sujos, pálidos, cobertos de hematomas [...]. Sofremos ameaças por algumas horas de que nossos filhos seriam molestados”.

Depoimento do motorista César Augusto Teles, então com 29 anos.

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Esses depoimentos que parecem ter saído de um filme de terror são trechos de relatos da violência sofrida por mães, pais e crianças durante a ditadura militar. Eles fazem parte do livro “Brasil Nunca Mais” lançado em 1985, que trazia pela primeira vez a confirmação de que o Estado usava da violência, da tortura, das ameaças como forma de ação cotidiana das polícias contra qualquer pessoa que fosse minimamente suspeita. 

O Nunca Mais do título tinha uma razão de ser. Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright acreditavam que publicar todos os horrores que aconteceram nos porões da ditadura faria com que aquilo nunca mais se repetisse: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça” era o lema. Infelizmente, depois de 30 anos do lançamento do livro, o apelo do “nunca mais” não foi cumprido.
Quando decidi largar um trabalho estável para fazer doutorado e me aventurar por outros caminhos, escolhi falar sobre o “Brasil: Nunca Mais”. Ficava impressionada como uma história tão forte, cheia de denúncias, uma grande reportagem sobre as violações dos direitos humanos, tinha sido tão rapidamente esquecida. Perguntava para os amigos, familiares, e praticamente ninguém sabia o que era “Brasil: Nunca Mais”. Como não repetir os erros se nem conhecemos o nosso passado?
E com esse questionamento, além do doutorado, nasceu o documentário “Coratio”. Uma produção independente minha e de do também jornalista Gabriel Mitani. “Coratio” quer contar a história do “Brasil: Nunca Mais” e ir além. Queremos pensar e debater quais são as consequências que esse descaso com o apelo do “nunca mais” trouxe para nós hoje. Para mim e para você. Porque sabemos que em qualquer história, seja coletiva, seja individual, se não tivermos a coragem de olhar para trás, de remexer nas feridas que ainda sangram, de lembrar para não esquecer, estamos fadados a cometer os mesmos erros. Repetidamente.
Nesse mês de março, vivemos este triste marco: os 50 anos do golpe militar. E por mais que 

quiséssemos que esses depoimentos fossem um pedaço trágico e findado de nossa história, estamos longe disso. A ditadura acabou, há mais de duas décadas vivemos em uma democracia, mas parte dos órgãos de segurança do Estado continua agindo da mesma forma. Se antes o inimigo era o subversivo, o comunista, o guerrilheiro, qualquer pessoa que pensasse diferente da ordem imposta, hoje quem vive esse cotidiano na pele são crianças, jovens, homens e mulheres que vivem nas periferias, em geral negros e pobres, e muitos daqueles que decidiram ocupar as ruas para manifestar sua indignação nos últimos meses.
A continuidade desses crimes cometidos por quem deveria nos proteger deve-se muito à impunidade. O fim da ditadura veio com o sabor amargo de uma anistia que perdoou as vítimas(vejam só!) e também os algozes. Mesmo sabendo-se os nomes de torturadores, de médicos que forjaram atestados de óbito, de policiais e políticos que apoiaram a prática da tortura, esses criminosos nunca foram acusados, processados e julgados. Muitos, ainda vivos, se aposentaram e recebem pensão com o meu, o seu, o nosso dinheiro. 
A impunidade de antes deu carta branca para a violência de hoje. As forças policiais, muitas vezes sobre a justificativa de que no Brasil “não há justiça”, “ a gente prende o malandro e no dia seguinte ele tá solto”, “na rua somos nós ou eles” tornam-se a própria justiça: acusam, julgam e executam a seu bel prazer. E nesse ciclo de violência, de justiceiros, ninguém está a salvo, nem mesmo os próprios policiais. Não são poucas as notícias de policiais executados. E toda vida é uma vida inteira.
O que desejamos com o documentário não é defender um lado, numa hipotética batalha entre o bem e o mal (que muda conforme o lado em que você se coloca). O que queremos é mostrar como a ideologia da segurança pública, baseada no armamento, no enfrentamento bélico, a militarização das polícias, a impunidade do passado e de hoje, nos tornaram refém de uma história sem fim de tragédias, medo e insegurança. Temos o dever de cobrar do Estado a responsabilidade dele. A mudança tem que acontecer no sistema que alimenta esse ciclo.  
Não nos cabe discutir se as pessoas que estavam sob custódia da polícia eram culpadas de crimes ou não. Até porque muitas delas não foram nem presas formalmente, foram “sequestradas” de suas casas, torturadas e mantidas em cárcere privado sem nenhum tipo de mandado judicial, processo ou denúncia. Taí o caso do pedreiro Amarildo que não nos deixa mentir. Também não achamos que a violência do Estado justifica a morte e execução de policiais em uma vingança contínua. O que nos move é um direito básico, que deve ser garantido para todos, sem exceção: o respeito aos Direitos HumanosNinguém, sob hipótese alguma, seja criminoso, policial, jovem, criança, mãe, pai, deveria sofrer algum tipo de tortura. A tortura é o caminho mais curto para dobrar o espírito das pessoas, negar sua existência como um ser que mereça respeito, desfazer sua identidade humana. A tortura não traz à tona a verdade. Mas saber a verdade sobre a tortura pode nos trazer liberdade.
Até agora o documentário foi feito com recursos próprios, mas chegamos em uma fase em que precisamos de um aporte financeiro para finalizar as gravações e fazer um trabalho profissional. Optamos por um financiamento coletivo. Achamos que essa era a melhor maneira de conseguirmos o dinheiro, porque cada centavo depositado ali é resultado de uma escolha pessoal de alguém que embarcou no nosso projeto. E isso é muito legal. 

No final da apresentação do livro, Dom Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright fazem um pedido: 
que ninguém termine a leitura deste livro sem se comprometer, em juramento sagrado com a própria consciência, a engajar-se numa luta sem tréguas, num mutirão sem limites, para varrer da face da Terra a prática das torturas. Para eliminar do seio da humanidade o flagelo das torturas, de qualquer tipo, por qualquer delito, sob qualquer razão”.
Se você tiver estômago, leia o depoimento da jornalista Rose Nogueira. Ela foi presa em 1969, quando vivia um dos momentos mais lindos e difíceis da vida, o puerpério. Já tinha sofrido violência no parto, que foi a fórceps e rompeu uma parede da bexiga, por isso ficou 20 dias internada. Seu filho tinha um mês de vida quando ela foi levada. Na prisão era chamada de Miss Brasil, nome de uma vaca que havia ganhado um concurso leiteiro. Isso porque de seus seios ainda jorrava leite. Leia aqui

Se você quiser se engajar nessa luta e saber mais sobre nosso projeto, visite a nossa página: www.catarse.me/coratio.


*Ana Caroline Castro, jornalista, doutoranda em comunicação e, principalmente, mãe da pequena Tarsila que me encoraja a lutar por um mundo melhor.
Desde criança, eu, Ana Castro, escutava histórias na família sobre o avô materno, comunista, que ficou desaparecido alguns dias durante a ditadura militar e quando voltou para casa queimou alguns livros e escondeu outros tantos debaixo do assoalho. Jornalista há quase 15 anos, já trabalhei na Revista Época, TV Globo, Agência Pública de Jornalismo e Reportagem Investigativa. Ganhei mais de sete prêmios e tive a honra de participar do livro “Amazônia Pública”, lançado em 2013. Também faço doutorado na ECA-USP e, o mais importante, sou mãe da pequena Tarsila, menina corajosa que me inspira a lutar por um Brasil mais justo.
Além disso, posso dizer que desde a gestação e parto da Tarsila, eu mudei muito. O empoderamento do parto natural, de saber-se capaz de dar à vida, de testemunhar o desenvolvimento da minha pequena, me deram muita força para mudar completamente de vida. 
Eu trabalhava há 12 anos como produtora e editora na TV Globo. Estava em um momento muito bom da carreira profissional, mas não estava trabalhando com o que eu sonhava. Eu sabia que poderia fazer mais. Mais pela Tarsila, mais por mim e mais pelos outros. Então pedi demissão. Agora fico mais com a minha filha, faço doutorado na USP e estou produzindo este documentário. Hoje faço exatamente o que gostaria de estar fazendo. Trabalho com o que eu acredito e tento fazer a minha parte por um mundo mais humano, justo e amoroso. 

- Depoimentos da historiadora Dulce Pandolfi e da cineasta Lucia Murat sobre as torturas que sofreram, para a Comissão Estadual da Verdade, no Rio de Janeiro, em março de 2013.
- Mais de vinte depoimentos de mulheres torturadas na ditadura militar.
- Depoimentos de Ieda sobre o que ela, sua irmã Iara e sua mãe Fanny viveram no centro de tortura em São Paulo.
- "O martírio da jovem Nilda Carvalho Cunha, 17 anos, nos porões da ditadura"
- Estreou no dia 27 deste mês o documentário "Em busca de Iara", que conta a história de Iara Iavelberg, psicóloga, professora, que foi assassinada pela ditadura em agosto de 1971 em Salvador. A morte de Iara foi dada como "suicídio" pelos militares, mas a família questionou desde sempre. Iara foi companheira de Carlos Lacerda. Assista ao trailer.


- Abaixo, o documentário "Que bom te ver viva", produzido por Lucia Murat, que retrata a situação da tortura vivenciada durante a ditadura militar por mulheres que lutaram pela democracia.




Se manter viva na memória essa parte tão triste da história do Brasil também for importante para você, sugiro que contribua para a produção de Coratio. Não deixar que a sociedade brasileira se esqueça do que representa um regime ditatorial, violento e cruel, é dever de todos nós.
Para que não nos esqueçamos.
Para que nunca mais aconteça.


Em trabalho de parto, levada por policiais armados e obrigada a fazer uma cesariana que não queria: não é mentira. Aconteceu em Torres, RS

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"Vieram buscar a gestante em casa, com policiais armados, ambulância e mandato judicial para preservar a vida do nascituro, a pedido da médica, dra. burra que além de não saber fazer parto pélvico (dado SUPER duvidoso), disse que o bebê nasceu mal com circulares de cordão e mecônio mesmo chorando e respirando bem, depois de negar ao pai o direito (concedido por uma lei federal) de acompanhar a cirurgia!Estivemos no hospital durante a tarde para uma avaliação com direito a eco obstétrica de urgência e tudo onde constataram placenta e líquido amniótico normal, bebê com sinais vitais bons e mãe em perfeita saúde. A mãe de recusou a ser internada, assinamos um termo de responsabilidade e fomos liberadas. A noite, em franco trabalho de parto, luzes apagadas, velas acesas só esperando o momento certo de ir ao hospital batem na porta, um bando de pessoas loucas com argumentos vazios. QUESTIONEI: quando médico mata bebês dentro do mesmo hospital a justiça não trabalha com tanta rapidez!! Estou em luto, por mais um parto roubado no Brasil e o terceiro pra essa mesma mulher, guerreira e batalhadora que teve o direito sobre seu próprio corpo arrancado a ferro, por quase 10 policiais armados! LUTO ETERNO!"

Esse depoimento é de autoria da doula Stephany Hendz a respeito do que viveu a gestante a quem atendia. Se você ainda não entendeu, é isso mesmo: uma gestante foi retirada de dentro de sua casa, em trabalho de parto, e foi obrigada a fazer uma cesariana, tendo sido levada à força por policiais armados.
Contra seu direito de escolha. Contra seu direito à livre autonomia. Contra sua vontade. Em solicitação a um pedido feito por uma obstetra. O Estado apropriou-se de seu corpo e fez com ele o que achou que deveria ser feito.
Isso, que realmente parece mentira embora não seja, aconteceu dia 01 de abril deste ano, na cidade gaúcha de Torres.
Quem decidiu isso? Duas obstetras mulheres. Quem autorizou a busca armada da gestante? Uma juíza.
A obstetriz e ativista pela humanização do parto Ana Cristina Duarte divulgou seus nomes:

- juíza: Liniane Maria Mog da Silva
- obstetra que atendeu gestante à tarde e quis interná-la: Andreia Castro
- obstetra citada no mandado de concessão de liminar, condução e intimação: Joana de Araújo

O movimento de mulheres usuárias dos sistemas de saúde em defesa da humanização do parto e nascimento no Brasil manifesta seu extremo REPÚDIO frente a essa ação que fere os direitos das mulheres, os direitos humanos e mancha para sempre a assistência obstétrica brasileira.

As advogadas e ativistas da organização não governamental Artemis, que atua no combate a todas as formas de violência contras as mulheres incluindo a violência obstétrica, já se encontram em plena atividade no sentido de levar adiante todas as medidas cabíveis.

Como ativista, pesquisadora da área de saúde coletiva no Brasil, cidadã e mãe desejo apenas uma coisa: que a justiça prevaleça e puna exemplarmente todas as profissionais e demais envolvidos neste grave e hediondo caso. E que as instâncias de poder manifestem-se em defesa dos direitos desta e de tantas outras gestantes o quanto antes. Antes que sejam obrigadas a isso por organismos internacionais. A exemplo do caso de Alyne Pimentel, que morreu grávida no ano de 2002 vítima do precário atendimento da rede de saúde do Rio de Janeiro, e que somente teve seu caso considerado pelos órgãos competentes após o Brasil ser condenado pelo comitê internacional em defesa das mulheres CEDAW/ONU - o mesmo que também condenou o país no caso de Maria da Penha.

Estamos em estado de luto.



Encaminhamentos sobre o caso da gestante retirada de casa e obrigada por força policial a fazer uma cesariana contra sua vontade

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Por Equipe ARTEMIS - Aceleradora Social

Sobre a decisão judicial proferida pela juíza Liniane Mog da Silva, titular da Vara Criminal de Torres/RS, que atuando em Plantão no dia 31/03/2014 determinou o encaminhamento da gestante ADELIR CARMEN LEMOS DE GOES ao hospital local para realização de cirurgia cesariana

Nos sensibilizamos profundamente com o ocorrido, e passamos a atuar em duas frentes:


Primeiro no encaminhamento do casal que teve seu direito violado ao atendimento do Centro de Referência de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul para devido acolhimento e assessoria jurídica.

Em seguida, através de contatos durante todo o dia de hoje e envio de denúncia aos seguintes órgãos:

- Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;- Dique Denúncia de Direitos Humanos;- Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados;- Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul- Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República- Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Porto Alegre- Comissão de Direitos Humanos da OAB/ Rio Grande do Sul


Em todas as denúncias encaminhadas, o pedido foi a Intervenção do Órgão para APURAÇÃO das VIOLAÇÕES aos DIREITOS HUMANOS mencionados, bem como a realização de uma AUDIÊNCIA PÚBLICA para a discussão urgente da questão da VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA e a REPARAÇÃO cabível ao casal violado.


A escolha da via de parto constitui um DIREITO HUMANO DA PARTURIENTE no que tange à sua integridade pessoal, liberdade e consciência, protegido pela CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Pacto de San Jose da Costa Rica) de 22/11/1969, ratificada pelo Brasil em 25/09/1992, especialmente abarcando os seguintes direitos:art. 7º. - direito à liberdade pessoal;art. 12º – direito à libertada de consciência;art. 17º – direito à proteção da família.


Condicionar o direito da gestante de escolher o local de parto à eventual determinação do poder público, na prática, impede o exercício desses direitos da mulher e abre caminho para uma interpretação equivocada de que qualquer nascimento dependeria da aprovação do Estado. A imposição da cirurgia cesariana se configura ainda VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, a violência praticada contra a mulher no momento do parto. 

Essa conduta ilegal é tipificada em diversos países, como na Argentina (Lei Nacional 25.929 e Lei Nacional 26.485) e na Venezuela (Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a una Vida Libre de Violência de 19/03/2007), legislações diretamente decorrentes da ratificação por esses países da CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER de 1979.


É apenas o começo de um trabalho para mantermos nosso compromisso com a promoção da autonomia feminina e prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres, através da garantia de seus direitos e implantação de políticas e serviços que assegurem a mudança efetiva do cenário atual, em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.Seguindo nossos princípios estatutários, a saber:- A promoção da autonomia da mulher, defendendo seus direitos constituídos e a efetivação dos mesmos;- O respeito aos direitos humanos;- O repúdio aos preconceitos e discriminações de quaisquer natureza, conforme definidos em lei;- A legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade, a economicidade e a eficiência; e- O respeito à Constituição Federal Brasileira, unidade e soberania do Brasil.

Associação Artemiswww.artemis.org.br

Caso você não tenha acompanhado este caso, de gritante desrespeito aos direitos humanos:

- Em trabalho de parto, levada por policiais armados e obrigada a fazer uma cesariana que não queria: não é mentira. Aconteceu em Torres, RS.



Denúncia do caso Adelir (Torres-RS) já está na Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Presidência da República

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Nota pós-publicação.
Após nossa publicação, Adelir ( obrigada a passar por uma cesariana sem seu consentimento) divulgou o resultado da ultrassonografia obstétrica com perfil biofísico fetal que fez na tarde em que esteve no hospital.
Ele foi incorporado ao final desta postagem. 
Como pode ser visto, o exame atestou 40 semanas de gestação e não com 42, como a obstetra havia informado. Ou seja, o pós-datismo alegado não procede. Todos os demais argumentos utilizados - apresentação pélvica e cesáreas anteriores - são rebatidos com o auxílio de recomendações de organizações internacionais reconhecidas e fazem parte da denúncia formalizada, que você pode ver abaixo.


A  ARTEMIS - ACELERADORA SOCIAL PELA AUTONOMIA FEMININA informa que a denúncia referente ao caso de Adelir Carmen Lemos de Góes, retirada de sua casa na madrugada do dia 01/04/2014, em trabalho de parto, por policiais armados, e obrigada a fazer uma cirurgia cesariana sem seu consentimento já se encontra junto à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Presidência da República, que já providenciou o devido encaminhamento para providências.

Para conhecimento, segue a denúncia formalizada.

















Entrevista com Adelir Carmen Lemos de Góes (que foi obrigada a uma cesariana em Torres-RS) - por Anelize Moreira, Rede Brasil Atual

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A jornalista Anelize Moreira, da Rede Brasil Atual, entrevistou Adelir Carmen Lemos de Góes. Ouça a entrevista, onde ela conta que  não fugiu do hospital e que, inclusive, consta em seu prontuário que retornaria, aguardando apenas o avançar do trabalho de parto.
Anelize também entrevistou a obstetra Carla Andreucci Polido - que é médica obstetra, mestre em Tocoginecologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, doutoranda em Ciências da Saúde também na Unicamp, e professora do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos - e o obstetra Ricardo Jones.
Além de Adelir, Carla e Ricardo, Anelize também entrevistou Raquel Marques, sanitarista e presidente da ARTEMIS, instituição responsável pelo encaminhamento da denúncia do caso junto à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Presidência da República.

Ouça.





(Estou há três dias sem conseguir publicar comentários no blog em função do alto fluxo de pessoas. Peço desculpas por esse inconveniente)

Pesquisa sobre VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: participe! Conte o que você viveu.

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Em 25 de novembro de 2011, em uma grande ação com a colaboração de dezenas de pessoas em quase todas as mídias sociais, e aproveitado a data - Dia Internacional de Combate a Todas as Formas de Violência Contra a Mulher - divulguei o convite à participação na minha pesquisa de doutorado.
Nós esperávamos um grande número de mulheres interessadas em contar seus relatos de violência no parto. Mas não imaginávamos a enormidade de pessoas que demonstrariam interesse em relatar o que viveram...
Então, nós (eu e meu orientador) fizemos uma grande pausa a fim de nos prepararmos para incluir todas as centenas de mulheres que demonstraram interesse, remodelamos o estudo, modificamos as estratégias, incluímos outros referenciais teóricos e reavaliamos objetivos. Incorporamos dicas preciosas oferecidas por outros pesquisadores e aqui estamos.

Até o momento, já são mais de 700 mulheres que manifestaram interesse em participar da pesquisa. Mas já faz bastante tempo que esse convite foi feito e avançamos muito na discussão coletiva sobre a violência que tantas brasileiras estão sofrendo no parto e nascimento de seus filhos. Com a quebra (ainda que parcial) de sua invisibilidade, centenas de mulheres passaram a problematizar a questão e a se reconhecerem como violentadas pela assistência que receberam em seus partos. E, nesse intervalo, centenas de outras mulheres também, infelizmente, passaram por experiências violentas dentro de maternidades. O envolvimento da mídia estimulou a discussão, o ativismo ampliou suas atividades, muito mais gente está disposta, preparada e quer falar.

Assim, decidimos fazer um novo convite à participação, a fim de abraçar tantas mulheres quantas quiserem contar o que viveram. Não só para que tenhamos grande participação social, mas também para que essas mulheres, contando o que viveram, possam começar a ressignificar suas experiências.

Você já deve ter visto por aí - em camisetas, banners, perfis de mídias sociais, etc - a ilustração que acompanha essa postagem. Ela foi feita especificamente para representar minha pesquisa e chamar as mulheres a participar dela, embora depois nós tenhamos autorizado seu amplo uso para fins de ativismo e militância no combate à violência obstétrica no Brasil.

Estamos em um momento crucial nesse contexto. Com quase todos os meios de comunicação divulgando notícias a respeito do que aconteceu com Adelir Carmen Lemos de Góes, na cidade de Torres, Rio Grande do Sul. Com muitas pessoas falando sobre violência obstétrica. Com muitas mulheres querendo contar o que viveram.

Se você já sabe que viveu violência obstétrica, fica o convite a participar da pesquisa. Ela será feita inteiramente via internet, com a devida aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da universidade da qual faço parte, e receberá informações pormenorizadas sobre todas as etapas. De maneira geral: eu irei "ouvir" o que você tem a dizer em dois diferentes momentos. E quero te ouvir!

Para participar, basta clicar aqui ou na imagem deste post. Um novo link irá se abrir, com um formulário. Nele você vai inserir apenas seu nome completo e e-mail de contato. Leia o pequeno texto que está lá. Dentro de aproximadamente 1 mês a contar de agora (início de abril) todas as mulheres que já se inscreveram ou se inscreverão receberão um e-mail contendo tudo o que será necessário saber.

Se você, felizmente, não passou por esse tipo de experiência mas quer ajudar de alguma forma, preciso da sua ajuda, a fim de alcançar ainda mais mulheres. DIVULGUE a pesquisa. Basta incorporar a imagem em seu site/blog/mídia social acompanhada do link do formulário-convite (http://goo.gl/VJYgNj). Ou compartilhar, ou enviar por e-mail, ou avisar quem você sabe que passou por isso. Toda ajuda será muito bem vinda.

Desde já agradeço às centenas de mulheres (entre outros apoiadores) que querem falar sobre a violência que viveram. Meu compromisso, já explicitado em tantos outros momentos, é público: divulgar e tornar acessível todo e qualquer material decorrente dos dados que as entrevistas irão produzir. Inclusive, transmitir minha defesa em tempo real a todo mundo que quiser assisti-la.

Muito obrigada pela confiança. Espero retribuir à altura.



Um agradecimento a todo o movimento de mulheres que luta contra a violência obstétrica!

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GOVERNO FEDERAL MANIFESTA APOIO A ADELIR CARMEN LEMOS DE GÓES E À LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Quando, há três anos, decidi mudar de área de pesquisa, de trabalho e de vida, eu sabia o que queria. Talvez não soubesse como, de fato, faria. Mas sabia o que queria. Assim como aconteceu com tantas outras mulheres nesse mesmo período. Como aconteceu com tantas outras mulheres muito antes disso.

Quando decidi deixar a Farmacologia e me dedicar à Saúde Coletiva, pesquisando e trabalhando especificamente com a questão da violência obstétrica, nem o termo "obstétrica" era ainda muito usado. Falava-se em "violência no parto". Cheguei a ser repreendida por usar esse nome, uma vez que a medicina ou o direito não o reconheciam. Ainda assim, a maioria das pessoas rejeitava essa nomenclatura ("violência no parto") - ou mesmo a ideia ou contexto que ela representava.

O que eu queria, eu sabia: ajudar as mulheres a refletirem sobre o que haviam vivido; levar essas vozes para além da experiência individual; tirar a violência que as mulheres estavam vivendo no parto da invisibilidade; forçar o reconhecimento da sociedade sobre o fato de que ela era mais comum do que queriam aceitar; explicitar as diferentes formas de violência obstétrica; levar a questão até outras instâncias que não apenas a acadêmica, de forma a ser reconhecida pelo governo e, a partir de então, que políticas públicas efetivas pudessem começar a ser discutidas visando a erradicação dessa forma institucional de violência.
Uma violência que tem múltiplas raízes: passa pela questão de gênero e pela naturalização de práticas machistas; passa pela questão da formação de profissionais da área da saúde, pela forma com que estudantes de medicina e enfermagem, principalmente, estão sendo formados para lidar com o evento do parto e nascimento; passa pela violência institucional a que muitas vezes esses mesmos profissionais também são submetidos; passa pela falta de esclarecimento das mulheres sobre seus direitos reprodutivos; passa pela falta de esclarecimento das mulheres a respeito das melhores práticas de assistência obstétrica; passa pela perpetuação de crenças populares que cercam o evento da gestação e parto; passa pela medicalização absoluta do corpo feminino e do nascimento; passa pela aceitação acrítica de uma suposta hegemonia do saber médico; passa pela falta de empoderamento coletivo a respeito de suas próprias escolhas; passa pela questão mercadológica da saúde; passa pelo fato da reestruturação da assistência obstétrica brasileira ser uma questão ainda muito recente nas políticas públicas de saúde da mulher; passa por ainda muitas outras questões.
Nos últimos três anos, houve um avanço exponencial da discussão sobre o assunto no Brasil, impulsionado prioritariamente por um movimento: o ativismo e a militância do movimento de mulheres em luta pela humanização do parto e contra a violência obstétrica. Um movimento envolvendo majoritariamente mulheres da classe média brasileira, voltado para a defesa dos direitos de todas as mulheres. É sobre isso, inclusive, o artigo que eu e Ana Carolina Franzon (jornalista, mestre em Saúde Pública e doutoranda em Saúde Materno-Infantil, co-autora, comigo e outras companheiras, do Teste da Violência Obstétrica e do documentário Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras, ambos de 2012) estamos escrevendo com afinco neste momento.

Portanto, não posso deixar de me emocionar com a nota divulgada ontem, 11 de abril de 2014, pela Secretaria de Direitos Humanos e pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Uma nota que apoia Adelir Carmen Lemos de Góes em função do absoluto desrespeito que ela viveu por ter sido forçada a uma cesariana por ordem judicial, emitida após parecer médico discutível - tão discutível que nem mesmo as associações de medicina obstétrica puderam chegar a um consenso. Uma questão que vai muito além da questão da via de parto - se parto normal ou cirurgia cesariana - e atinge em cheio a questão dos direitos humanos e do direito alienável que cada um de nós tem à própra autonomia. Uma nota que não só apoia Adelir, mas reconhece a violência obstétrica como uma forma de desrespeito aos direitos humanos e dos direitos à saúde.

Isso somente foi possível mediante trabalho duro e dedicado - de anos - de pessoas que fizeram desta causa suas vidas. Mediante envolvimento total das mulheres de um movimento que ainda está longe de ser homogêneo, mas que é ativo e atuante. Mediante um ato nacional que foi realizado em mais de 30 cidades no exato dia em que a Secretaria de Direitos Humanos divulgava sua nota.

Agradeço, como mulher, cidadã, pesquisadora, mãe, a cada uma das centenas de pessoas envolvidas nesta causa e nesta luta. Especialmente àquelas que se tornaram indispensáveis - e que se reconhecem como tal (porque é preciso se reconhecer!). Meu desejo mais sincero é nomeá-las aqui e direcionar a todas, nominalmente, meu mais profundo agradecimento. Mas, certamente, minha memória não conseguiria contemplar a todas, o que seria muito injusto. Agradeço por suportarem com retidão os ataques pessoais sofridos - por vezes impregnados de rancor, ódio e violência -, por transformarem indignação em declarações e manifestos, por oferecerem apoio às milhares de mulheres que viveram situações de violência em seus partos, por se colocarem em evidência para discutir a questão, por dispenderem quantias financeiras às vezes muito além de suas possibilidades, pelo tempo dedicado a tirar dúvidas e a orientar mulheres em grupos de parto e nascimento, por organizarem apresentações públicas de documentários, por aplicarem seus conhecimentos profissionais em defesa de tantas mulheres, por tudo o que têm feito diariamente em defesa desta que é uma causa coletiva.
Ainda temos muito trabalho pela frente. Mas é preciso reconhecer e comemorar cada pequeno ou grande avanço. E ver o Governo Federal declarar seu apoio a essa causa de relevância já reconhecida internacionalmente é um grande avanço!

Abaixo, a íntegra da declaração das Secretarias de Direitos Humanos e Política para as Mulheres da Presidência da República e algumas fotos dos atos contra a violência obstétrica de 11 de abril de 2014 em diferentes cidades.

Obrigada a todas e todos por seus tempos, suas dedicações, seus esforços, seus trabalhos, seus ativismos e militâncias em prol de um direito que é de todas as mulheres. E vamos em frente porque ainda há muito a ser feito!


Governo manifesta solidariedade a Adelir Carmem Lemos de Goes


11/04/2014
As Secretarias de Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e o Ministério da Saúde vêm a público se solidarizar com Adelir Carmem Lemos de Goes, que foi submetida, contra sua vontade, a uma cesárea por decisão da Justiça no dia 1º de abril na cidade de Torres (RS). Na oportunidade manifesta também apoio às medidas adotadas pelo governo do Rio Grande do Sul. A situação vivida por Adelir – parto cirúrgico sem consentimento – aponta para uma série de questões que envolvem os Direitos Humanos na Saúde e coloca as seguintes reflexões para nossa sociedade.

1. Os princípios de Direitos Humanos preconizam que todas gestantes têm direito a acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério, e que a assistência seja realizada de forma humanizada e segura. A mulher tem o direito de escolher como será o parto de seu filho, a posição do parto, e quem deve acompanhá-la nesse momento. Isso é Lei no Brasil. A não observância dessas questões – e outras – se configura em flagrante violação de direitos. A Resolução nº 50, da Organização das Nações Unidas (ONU), reconhece que Direitos Humanos são parte dos princípios e valores inerentes à saúde.

2. Sabidamente o Brasil é um dos países que mais realiza partos cirúrgicos, correspondendo a mais da metade dos nascimentos, situação que nos faz refletir sobre a cultura da cesárea em nosso país.

3. A atenção obstétrica humanizada e segura é foco de ação do governo federal, que em 2011 apresentou para sociedade brasileira a Rede Cegonha. Essa estratégia atua para qualificar a atenção à mulher, articulando o planejamento reprodutivo, o cuidado à gravidez, parto e puerpério, e a atenção à criança desde o nascimento, estendendo os cuidados até os dois anos, período decisivo para o seu desenvolvimento. Assim, a atenção obstétrica e neonatal no SUS caminha para outro modelo, que considera que parto pertence à mulher, que deve ser respeitada, assistida e amparada.

4. É importante que profissionais de saúde saibam manejar conflitos e sejam capazes, sem prejuízo ético e técnico, direcionar sua ação para a produção de consensos que permitam chegar a uma condução terapêutica, contemplando interesses e necessidades de ambas as partes.

O Brasil deve aproveitar esse fato para ampliar o debate sobre o cuidado obstétrico e neonatal, incluindo a violência obstétrica em todas as suas formas e a observância de Direitos Humanos na Saúde, sem o qual o direito à saúde, consagrado em nossa Constituição, não se faz valer plenamente.

Brasília, 11 de abril de 2014.

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Secretaria de Políticas paras as Mulheres
Ministério da Saúde


Porto Alegre - foto Lucia d'Aquino

Salvador - foto de Felipe Fernandes e Sandra Muñoz - Rede Feminista de Saúde de Salvador
também declara seu apoio à Adelir e à luta contra a violência obstétrica

Rio de Janeiro - foto Maíra Libertad

Rio de Janeiro - entrega da nota pública e da denúncia ao Procurador de Justiça da
Comissão de Direitos Humanos do MPE-RJ, Márcio Mothé - foto Maíra Libertad 


São Paulo - vigília no Largo São Francisco - foto Ana Cristina Duarte

São Paulo - vigília no Largo São Francisco - foto Anne Pires Braga

São Paulo - Largo São Francisco - foto Anne Pires Braga


São Paulo - Largo São Francisco - coral da Unifesp também declara seu apoio
 foto Thielly Soengas Manias

Cuiabá - foto Damaris Carvalho


Florianópolis - entrega da denúncia ao Ministério Público do Estado de Santa Catarina



Uma conversa com Adelir e Emerson: "- "Eu quero dizer às mulheres que estudem, estudem muito. Às ativistas, quero dizer que 'Obrigada'é pouco".

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Há duas semanas, Adelir Carmen Lemos de Góes recebeu em sua casa, durante a madrugada e estando em trabalho de parto, a visita de um oficial de justiça acompanhado de policiais armados que a forçaram, e ao marido, a acompanhá-los ao hospital para que fosse submetida a uma cesariana contra o seu consentimento. A ordem judicial se baseou na opinião de uma médica, que afirmava que Adelir estaria colocando em risco sua própria vida e a de seu bebê, usando como argumentos o pós-datismo (quando a gestante ultrapassa 42 semanas de gestação), um bebê em posição sentada no útero e o fato de Adelir ter vivido duas cesáreas anteriores. Segundo a médica, ela não teria qualquer condição de viver o parto normal para o qual tanto se preparou, e insistir nesse objetivo traria obrigatoriamente um desfecho fatal.


Durante todos esses dias, muitos profissionais conceituados que atuam na área obstétrica manifestaram-se colocando em cheque a opinião da médica, não apenas baseados em sua opinião pessoal, mas em dados cientificamente comprovados, em suas próprias práticas obstétricas e grande experiência na assistência a partos normais após cesáreas e apresentação pélvica de bebês.


Muitas outras informações também surgiram, como o fato de que o suposto pós-datismo não procedia, uma vez que o exame feito por Adelir na tarde em que esteve no hospital, algumas horas antes de receber a visita do oficial de justiça e dos policiais, indicava gestação absolutamente normal e saudável de 40 semanas.


Nas próximas postagens deste blog, você poderá ler ponderações, explicações ou comentários feitos por médicos, obstetras e obstetrizes, cujos trabalhos em defesa do respeito ao parto e ao nascimento são nacionalmente reconhecidos e respeitados, a respeito tanto da recomendação questionável da cesariana quanto do próprio desfecho em si, marcado por grande violência e desrespeito aos direitos humanos.


Também durante todos esses dias, muito se falou e se agiu a respeito do ocorrido. A Artemis – Aceleradora Social Pela Autonomia Feminina, encaminhou à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Presidência da República uma denúncia formal sobre a violação dos direitos humanos e a violência obstétrica que marcaram o caso. O Deputado Federal Jean Wyllys acolheu a denúncia encaminhada e em breve haverá uma audiência pública sobre violência obstétrica junto à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em Brasília. Na última sexta-feira, atos de repúdio ao ocorrido e em defesa de Adelir aconteceram em mais de 30 cidades, culminando em uma vigília no Largo São Francisco, em São Paulo. Exatamente neste dia, as Secretarias de Direitos Humanos e de Políticas Para as Mulheres da Presidência da República manifestavam-se formalmente em defesa de Adelir e apoiando a luta contra a violência obstétrica no Brasil. Dezenas de notícias foram veiculadas pela mídia, escrita ou televisiva. Definitivamente, a violência obstétrica ganhou palco para discussão ampla nos coletivos. Finalmente, está-se falando sobre o assunto. Finalmente, a questão foi reconhecida como grave problema social, de saúde e de desrespeito aos direitos humanos e reprodutivos das mulheres.


E tudo isso por que?

É sobre isso que falo hoje.


Tudo isso porque uma mulher de vida simples e pacata, lutando pelo direito de ter seu filho com

respeito e orientada, durante a gestação, por profissionais sérios, foi cruelmente desrespeitada e forçada a uma cirurgia sem necessidade, contra sua decisão autônoma.

Durante todos esses dias, dividi-me entre a satisfação de ver o tema acolhido por órgãos e instâncias superiores e uma forte angústia: como Adelir estaria lidando com tudo isso? Como estaria sua vida? O que todo esse movimento, essa discussão, esses holofotes acesos para seu caso, estavam produzindo nela como mulher, como pessoa, em sua família, em sua rotina? Não é possível lutar por direitos humanos e esquecer das pessoas... Não é possível atropelar o sujeito pela causa que ele representa. Cada vez que eu ouvia ou lia comentários absolutamente vazios, desprovidos de qualquer conhecimento sobre o tema, baseados em moralismos ou opiniões pessoais, muitas vezes ofensivos, eu me lembrava de Adelir. E temia pela possibilidade, remota ou não, dela estar sendo novamente violentada, ainda que nossas intenções fossem – e sejam – as melhores.


Então, no sábado, 12 de abril, procurei por ela e seu esposo, Emerson. Ambos prontamente me atenderam ao telefone – ela tendo acabado de tomar um banho e de cuidar da sua bebê, Yuja, então com 12 dias. Perguntei se eles poderiam e gostariam de conversar comigo ou se preferiam que eu os procurasse em outro dia. Emerson me disse: “Hoje é um ótimo dia! Ela está voltando a sorrir. Fez até um bolinho hoje...”.


Então, Adelir e eu conversamos por quase uma hora.


E eu disse a ela que tinha todo o tempo do mundo para ouvi-la, mas que o motivo de tê-la procurado era um só: eu queria saber como ela estava, como estava sua vida, como ela estava emocionalmente, como estava recebendo toda essa movimentação ativista, militante, apaixonada e engajada. Eu estava preparada para ouvir qualquer tipo de resposta, e levar adiante qualquer depoimento dela. Queria saber como estavam as crianças, se havia algo a mais que pudesse ser feito para ajudá-los.


Então, depois de conversarmos um pouco sobre a bebê, depois de saber que Flora – sua segunda filha, que tem hoje 2 aninhos – está apaixonada pela irmãzinha e não quer nem que cheguem perto dela porque só ela quer cuidar, Adelir desabafou: 
“Eu não seria nada... Nesse momento, eu não seria nada sem esse apoio. Esse, que vocês todas estão me dando. Eu não seria nada, nós não seríamos nada, porque nem nossa família está nos apoiando. Eu não seria nada... Nosso nome estaria na lama se não fossem vocês”.


Então ela me contou tudo o que eles têm vivido desde então, e um pouco do que viveram no exato dia em que ela foi obrigada a ser operada.


Adelir é mãe de Angelo, Flora e Yuja. Toda a família morava em Canoas, RS, mas se mudaram há dois

anos para Torres, também no Rio Grande do Sul. Canoas é uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre e tem mais de 400 mil habitantes. Torres tem pouco mais de 30 mil habitantes e fica há mais de 200 km da capital do estado. A família se mudou porque buscava mais tranquilidade para viver e uma qualidade de vida melhor, que de fato encontraram na pequena cidade. Mas depois do que aconteceu com ela, tudo mudou. Hoje, eles são apontados na rua ou ofendidos por pessoas em função do que a grande mídia tem mostrado e em função de suas escolhas. Eles moram numa área rural e levam uma vida simples, e as pessoas da região pouca ou nenhuma informação têm acerca das possibilidades que uma mulher tem para receber o filho que gerou.

Adelir somente agora está encontrando força e coragem para sair com mais frequência, e nos primeiros dias esteve tão abalada emocionalmente que, certa noite, entrou em pânico por ouvir buzinas insistentes em frente à sua casa, achando que alguém poderia invadi-la e atentar contra eles – como de fato viveram dias antes, com a chegada da polícia. Talvez por todo esse abalo emocional, a cicatriz da cirurgia pela qual passou está encontrando dificuldade para cicatrizar e chegou a inflamar. O que trouxe a ela novo medo:
Tudo o que eu não quero é voltar naquele hospital. Não posso nem imaginar o que pode acontecer comigo lá. Nunca mais voltei, mas tenho que voltar em breve para marcar o teste da orelhinha da bebê. Mas estou com muito medo. Eles me maltrataram muito naquele dia, imagine agora que o que fizeram foi revelado e está sendo discutido”.


Desde então, o acompanhamento médico que ela tem recebido vem unicamente do postinho de saúde do seu bairro. E é lá, inclusive, que ela está encontrando talvez o único apoio e fortalecimento em sua própria cidade. Todas as enfermeiras do posto a estão tratando com muito cuidado e amor e sempre se manifestam em sua defesa. Talvez porque, segundo ela mesma contou, muitas já sabiam de outros casos de maus tratos recebidos por outras mulheres na região quando foram dar à luz no mesmo hospital.
Lá eu sou cuidada, sabe? Elas me abraçam, me beijam, perguntam como estou. Elas estão cuidando de mim, não estão me chamando de assassina nem nada. Elas entendem minhas escolhas”.


Pedi a Adelir que contasse como foi que tudo aconteceu durante sua gestação. Sua preparação para o

parto, porquê havia decidido por um parto natural após ter vivido duas cesarianas, quem a tinha apoiado e orientado, como ela tinha conseguido informação.
Adelir viveu uma cesariana no nascimento de seu primeiro filho, Angelo. Ele nasceu em um hospital particular, com pagamento pelo convênio que eles tinham. Com 39 semanas de gestação, o médico não deixou que ela seguisse em frente e marcou a cesárea.


Foi médico particular, né? Aí que eles não deixam passar de 39 mesmo. - disse ela.


Naquela época, ela ainda não tinha ouvido falar ou lido a respeito do parto normal, dos benefícios, das possibilidades. Quando ficou grávida de Flora, chegou a buscar informação. Mas não conseguiu tanto quanto queria por falta de tempo para estudar sobre o assunto. Ela tinha uma lancheria, fazia trufas para gerar renda e trabalhava bastante, fazendo cerca de 60 trufas por dias. Foi na gestação de Flora que ouviu falar pela primeira vez em violência obstétrica e em parto humanizado, mas não conseguiu se aprofundar tanto quanto gostaria. Então, às 41 semanas, o médico que a atendia (e de quem ela gostou muito, por ter sido muito bem tratada e acolhida), afirmou que os batimentos cardíacos da bebê estavam lentos. Adelir chegou a ver em um monitor os batimento cardíacos caindo e, então, consentiu com a cirurgia. Após o nascimento, o médico disse que, por algum procedimento de sutura ter sido feito de maneira não recomendada na primeira cesariana, seria muito arriscado passar por uma terceira. Que se ela engravidasse novamente, talvez buscar outras opções para o nascimento fosse melhor do que viver uma nova cesariana, pois seria muito mais arriscado.


A gravidez de Yuja foi inesperada. Ao se saber grávida, uma das primeiras coisas que Adelir lembrou foi da recomendação do médico sobre o risco de viver uma terceira cesárea. Então, decidiu buscar informação. Buscar alternativas. Eles já viviam em Torres e ela tinha mais tempo disponível, pois não estava trabalhando fora, estava em casa cuidando dos dois filhos pequenos. Então, entrou no Facebook. E lá, encontrou o grupo “Cesárea? Não, obrigada!”. O grupo possui hoje quase 10.000 participantes, mulheres em busca de orientação e profissionais dispostos a oferecê-las. É um grupo ativamente moderado por ativistas, professores, obstetras e obstetrizes conhecidos e engajados na luta contra a epidemia de cesarianas, a violência obstétrica e a medicalização do parto. E foi lá que o estudo de Adelir em busca de um parto normal após suas cesarianas começou.
Foi lá que eu comecei a estudar. Foi quando soube que muitas médicas e outras profissionais estavam quebrando mitos. Elas tinham dados, informações. Foi lá que encontrei a doula que tanto me ajudou”.


Adelir assistiu ao documentário O Renascimento do Parto e se preparou muito para seu parto natural. No final de sua gestação, seu marido, Emerson, fez um acordo com seu empregador e passou a ficar em casa junto com ela, também se preparando para apoiá-la e ajudá-la na hora do parto. Ambos estudaram. Ambos se prepararam. E ela diz que não foi em busca de um parto normal por ser “irresponsável”, como tantos a chamaram. Mas porque tinha medo de morrer em uma cirurgia que, de acordo com o médico anterior, seria muito arriscada. E, também, porque se lembrou muito de seu pai e do que ele a ensinou. Adelir perdeu os pais aos 14 anos e tinha muito medo de que seus próprios filhos ficassem órfãos.
Meu pai era um educador. Ele me ensinou a nunca repetir o que os outros falavam, me ensinou a ir atrás da verdade. Nós não somos papagaios, não podemos só repetir o que dizem por aí, temos que estudar, temos que decidir o que é melhor para a nossa própria vida. Eu nunca descartei uma cesárea! Jamais! Eu só estava em busca de uma opção melhor, mais saudável, para mim e minha filha. Então quando dizem por aí que eu estava colocando meu bebê em risco iminente, é mentira! Não estava! Se um médico me disse que havia um problema com minha cicatriz, eu queria ir atrás de outra opção e encontrei”.


Adelir foi tirada de casa pelos policiais na frente de seu enteado, um garoto de 15 anos, que ficou tremendamente assustado e nervoso, precisando ser amparado pela doula. E a despeito de todo o transtorno e humilhação de ter sido tirada de sua família na madrugada, em trabalho de pato, Adelir diz que isso não foi o pior. Pior que isso foi o que ouviu da médica que fez a cesárea sem seu consentimento:
Enquanto ela me operava, dizia que eu era uma irresponsável, uma assassina, uma louca. Que se eu tivesse marcado a cesárea antes, nada disso precisava ter acontecido. Se eu tivesse marcado a cesárea, meu marido podia estar ali tirando foto agora. Que por minha causa agora eu estava sozinha e ele lá fora. Eles não deixaram meu marido entrar, eu fiquei sozinha...”.


Nesse momento, Emerson interrompeu para dizer o que ele também havia vivido. Ele foi impedido de entrar como acompanhante para o nascimento da filha. Ele acredita que foi impedido porque seria testemunha do que seria feito com a esposa.


 “Se eles tivessem me deixado entrar, eu ia poder ver se realmente tinha mecônio. Se realmente a bebê estava em sofrimento como ela dizia. Se realmente ela estava sentada e não encaixada como Adelir sentia. Por que não me deixaram entrar? A bebê nasceu bem. E se ela nasceu bem, então ela não estava em sofrimento. Mentiram pra gente. – disse Emerson.


Adelir também falou de seu pré-natal:
Foi ótimo, tudo o que pediram que eu fizesse, eu fiz. Foram 9 consultas, então quando dizem que eu não me cuidei, estão tentando manchar meu nome. Sempre esteve tudo bem com a gestação. Tanto que no exame do dia 31/03 – todo mundo pode ver – estava tudo ótimo com a gente. Batimentos cardíacos ótimos, placenta íntegra, líquido adequado, tudo ótimo. Como que de uma hora pra outra tudo ficou ruim? Só porque eu não quis fazer o que queriam! A única coisa que não batia era isso deles dizerem que eu estava de 42 semanas, porque não batia nas minhas contas. E depois o exame mostrou que eu realmente não estava, estava de 40 semanas”.


Adelir, ao contrário do que as pessoas divulgaram, não é cigana. Emerson é que é descendente de

ciganos. Ela é órfã e somente tem contato com os tios. Deles, apenas 1 tio ligou para saber como eles estavam, se precisavam de algo. Seu tio e sua irmã, Talita, foram os únicos da família que a apoiaram. Perderam contato com muitos outros familiares, que não os apoiaram quando o caso chegou à mídia, sequer telefonaram para saber da bebê ou de Adelir. Adelir e Emerson estão chateados e magoados porque gente a quem consideravam muito os estão ofendendo. E quando eu perguntei o que eles esperam com todo esse movimento, ambos responderam juntos:

Uma retratação! A gente quer uma retratação do hospital! Para que as pessoas aqui da nossa comunidade e da nossa família vejam que não estávamos errados e que fomos maltratados”.


Sobre o medo que ela sente de voltar ao hospital, recomendei que ela não vá sozinha, nem somente com o marido. Que alguém de sua confiança os acompanhe, talvez a doula, e que gravem ou filmem com o celular o atendimento que receberem, a fim, quem sabe, de evitar que sejam novamente maltratados.


Por fim, Adelir deixou um recado às mulheres que pretendem engravidar, às que já estão grávidas e às ativistas:




 “Eu quero dizer às mulheres que estudem. Que estudem muito. Que busquem informação, toda informação que puderem. Porque a venda de cesárea é muito grande. E eles fazem a gente acreditar que não sabemos de nada. Tenham uma doula, uma doula ajuda muito. Às ativistas eu quero dizer que ‘Obrigada’ é muito pouco, sabe? Eu não tenho palavras pra dizer o que você estão fazendo por mim, por nós. Eu não teria força, meu marido não teria força, se não fossem vocês. Obrigada por nos ajudarem, por estarem do nosso lado. Sem o apoio de vocês eu não seria ninguém agora, depois do que eu passei. Estou conseguindo melhorar porque vocês estão me ajudando. Hoje [1 dia depois do ato nacional] eu consegui até bater um bolinho pra gente! O que eu falo? Falo obrigada! Mas ainda é pouco”.


Essa foi a nossa conversa. Uma conversa sincera, de mãe para mãe, de mãe para pai, de pai para mãe. Entre pessoas fisicamente distantes e tão próximas em nossos ideais. Não sei como isso será possível, mas espero sinceramente que Adelir e Emerson recebam a retratação que esperam e merecem. Isso não vai fazer desaparecer o que ela viveu. A cicatriz de sua terceira cesariana sempre existirá. Mas talvez dê a ela um pouco de paz para seguir com sua família.


De nossa parte, é preciso empatia, acolhimento, compreensão, não julgamento e apoio. Uma família teve toda sua vida alterada em função, apenas, de ter exercido sua liberdade, seu direito à escolha informada e sua autonomia.
Se a nós, cidadãos e cidadãs, for negado esse direito tão básico, o que mais faltará acontecer?
Não somente por isso mas também por isso, somos todxs Adelir. Somos Adelir, Emerson e toda sua família.

Sobre Páscoa, contexto e olhos muito brilhantes

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Essa foi / está sendo uma Páscoa um pouco difícil. Entremeada por lembranças bonitas e pela dor da
saudade. Uma saudade que, espero, em breve perca seu caráter doloroso, sendo substituída apenas pelo conforto de saber que alguém concluiu sua história nessa experiência de vida.
É natural que sintamos falta de quem nos é caro e que esteve ao nosso lado fisicamente nas Páscoas de anos anteriores. Resta o gostinho rançoso do "E agora?". E, mesmo natural, não deixa de ser difícil...
Senti falta do meu pai em cada momento deste feriado prolongado. Ainda mais em decorrência de um grande amigo também ter se despedido de seu pai nesta sexta-feira "santa". O mesmo amigo que nos presenteou, a mim e minhas irmãs, com a linda ilustração deste texto, quando da partida do meu pai, há exatos três meses.
O processamento das emoções trazidas por este feriado tem sido difícil...
Tentei me conectar, muitas vezes, ao significado místico atribuído de modo geral a essa data: celebração, comunhão, fertilidade do amor, libertação, transmutação. E foi difícil conseguir. Em parte pela dor do luto, que ainda me acompanha, em parte pela dificuldade de conciliar uma face difícil da realidade com suas faces mais belas.

Senti grande vontade, durante todos esses dias, de voltar a ver a Páscoa com outros olhos. Um desejo genuíno de voltar a sentir o espírito de comunhão, seu significado holístico, a lembrança de algo maior que nos conecta a todos.
Mas essa busca pela libertação - em suas múltiplas formas - que iniciei há quatro anos tornou-me crítica demais, um tanto seca, um tanto cética, bastante desconfiada e em constante avaliação racional das diferentes situações.
Acredito que isso também seja natural... Talvez outras pessoas, mais experientes e amadurecidas que eu, e que já trilharam essa mesma busca, esse mesmo caminho, possam dizer que isso é natural. E que é assim mesmo, até que eu encontre uma forma gentil de conciliar as múltiplas visões e facetas de um ser humano e de sua condição. E quero encontrar. Sei que encontrarei.
Felizmente, tenho apenas 35 anos e muito o que aprender - espero ter... E se eu pudesse escolher algo, uma coisa só, para aprender, seria isso: aprender a conciliar harmônica e dialogicamente as faces difíceis da realidade com seu lado ameno e belo, e não deixar que as primeiras se sobreponham à segunda. Como diz alguém que tem me orientado informalmente nessa nova vida: "Lembre-se sempre de não permitir que a violência que você estuda encubra a beleza que você vive".
Estudar a violência, em sua vertente marcada por viés de gênero, de institucionalização do poder, de redução dos sujeitos a meios para um fim, lembra-me da frase de Nietzsche: "Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". Torna-se muito difícil acreditar em verdadeira comunhão e celebração de nobres valores quando se lida com o gritante desrespeito de um ser humano por outro... Tudo tende a parecer uma grande hipocrisia, uma pseudocomunhão baseada apenas em aparências, mas na verdade inexistente... Até que se consiga reajustar o próprio foco e ver que não, que o lado difícil da realidade não se sobrepõe às suas faces belas. Que é apenas mais uma, entre tantas outras. Não a única. Não a mais importante. Não a prevalente. Apenas uma. Mas para assim enxergar, é necessário o constante exercício de ajuste e reajuste de foco.

Meu pai foi alguém que me lembrava todos os dias, na gentileza com que me tratava, que a vida era mais bonita do que se mostrava - embora ele mesmo tivesse dificuldade para aceitar verdadeiramente isso. E na véspera de Páscoa, enquanto eu arrumava minha casa - na tentativa de, reorganizando o espaço externo, reorganizar o interno -, em um momento extremo de saudade, deixei tudo o que estava fazendo, fui até o jardim, sentei-me e, quando veio a vontade de chorar, foi como se eu pudesse ouvir a sua voz... E lembrei-me com perfeição de uma frase inteira que ele me disse, pouco tempo antes de partir, quando conversávamos exatamente sobre como estava sendo difícil para mim ler tantos depoimentos de violência. E ele me disse:
"Olhe além. Há beleza até nisso. Não perca o foco: o contexto é maior que o texto".
Eu estava com certa dificuldade de lidar com a questão da Páscoa com relação à minha filha. E havia decidido que o domingo de Páscoa seria um dia de domingo como outro qualquer, sem celebrações ou outro tipo de comemoração.

"Olhe além..."

Mas então, à noite, em uma agradável conversa com queridas amigas, lembrei-me de uma coisa importante, que move meus dias e me infla de energia e motivação: os olhos brilhantes da minha filha frente à descoberta do novo.

"Não perca o foco..."

E foi durante a conversa, que decidi: no dia seguinte, domingo de Páscoa, ao acordar, Clara conheceria alguém importante. Alguém que ainda não havia sido apresentado a ela. Que é muito amigo da Maricota. Conhecido do Boi-de-Mamão. Primo irmão do Papai Noel. Ao acordar, Clara conheceria ele, essa figura bizarra que tem pelo, bota ovos e não é um ornitorrinco: o Sr. Coelho.
Então, na madrugada, após o jantar e a conversa com nossas amigas, ele nos visitou.
E com patinhas sujas de tinta preta lama, em pegadas que partiam da porta do quarto dela, descendo as escadas e indo em direção à cadeira que foi do vovô, Sr. Coelho deixou um rastro. E embaixo da cadeira, deixou uma lembrancinha improvisada com amor, tule e fita de cetim (feita pela mamãe) e um potinho de amendoins doces (feitos pela amiga).

Nesta manhã de Páscoa, ela acordou e foi para minha cama. Dormimos mais um pouco juntinhas, enquanto o pai já estava acordado. Ao acordar, depois de muitos beijos e abraços, desceu da cama e foi em direção ao corredor. Levantei-me um pouco para ver a cena. Abriu a porta. E deu um gritinho:

- PEGADAS! Mãe, tem pegadas aqui! Meu deus do céu, acho que o coelho me visitou...

Ela não sabia quem era o coelho até esta semana, quando uma senhora perguntou a ela sobre e eu precisei explicar.
Levantei-me da cama e fui acompanhando sua descoberta.
O rostinho iluminado, os olhos pequenos e puxados arregalados.
Desceu as escadas. Deu de cara com o pai:
- Pai, pegadas! Pegadas!
Muito cautelosamente, viu que as pegadas iam até a cadeira vermelha. Olhou atrás e encontrou a lembrancinha:
- Mãe, o coelho me deixou uma Páscoa! Olha mãe! Uma Páscoa! Eu também ganhei uma Páscoa!

Então eu passei aqui neste blog hoje, bem rapidinho, antes de irmos almoçar, apenas para dizer que desejo sinceramente a todos o que desejo a mim mesma. Que a gente se lembre, sempre, que "o contexto é maior que o texto".

Se existe mesmo um espírito de Páscoa, hoje ele esteve aqui. Em forma de dois olhos arregalados e brilhantes, cabelos despenteados, de pijama e pés descalços.
Uma feliz Páscoa a quem é de Páscoa.


Gata, eu quero ver você parindo!

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Aviso 1: Contém inúmeras vezes a palavra "vagina".
Aviso 2: Contém fotos de cicatrizes. Seja forte. Coragem.

"Então eu olhei aquela foto, aquela mãe com um bebê saindo de sua vagina, feliz, radiante, olhos arregalados, boca aberta, pai eufórico, parteira amparando, mãe segurando as costas do bebê em nascimento, e pensei: 'Tem alguma coisa errada... Por que eu tenho dois filhos e nunca imaginei que isso seria possível? Por que eu não sabia que parto não precisava ser daquele jeito azul, branco, frio?"
"Cheguei na casa da minha vizinha pra levar uns livros que ela tinha me emprestado. A filha dela de 16 anos estava assistindo um parto no Youtube! Um parto parto mesmo, mulher gemendo, pernas abertas, vaginaà mostra. Choquei. Eu  nunca tinha visto um parto na vida! Fiquei meio sem jeito... e achei estranho estar sem jeito. Por que eu estava sem jeito de ver uma mulher dando à luz pela vagina? Eu não tenho filho nem vou ter, mas era só uma vagina, uma mulher em diferentes posições mas uma vagina. Pedi pra menina se eu podia ver também, ela disse que sim, fiquei por ali. Aí nasce o bebê... Eu não sei como nem porquê, mas fiquei emocionada. Eu nunca tinha visto um bebê sair pela vagina, nem a reação de uma mulher num nascimento daquele. Comecei a chorar. Senti uma alegria... Foi aí que comecei a ler sobre parto, caí no seu blog, caí na blogosfera partolesca, curto muito. Minha cunhada engravidou e tenho muito orgulho de ter sido eu a orientá-la durante a gestação, porque ninguém na minha família conhecia essas coisas. Nasceu num super parto lindo, com meu irmão e eu do lado. 'Parto vaginal', eu sempre conto, porque aprendi a importância disso".
"Foi de tanto ver foto de parto bonito que percebi que tinha sofrido uma violência irreparável".
"Minha filha tem 8 anos e adora ver vídeo de parto comigo. A gente faz "Óinnn" quando o bebê chega, a gente se abraça, é lindo. Quero mostrar pra ela que parto faz parte da vida, é natural, ao contrário do que foi comigo".
"Durante a gestação dela, quando a gente contava que eu estaria junto, que iria ver meu filho nascer, que iria ajudá-la no trabalho de parto, todo mundo da família me repreendia, dizendo que era ruim, que eu não veria minha esposa mais da mesma maneira, que as partes íntimas dela estariam diferentes, enfim. Perguntavam como eu tinha coragem, que grande parte dos homens desmaiava, ou não aguentava e saía. Realmente, na minha família, quase todos os homens passaram mal nos nascimentos dos filhos, mas porque ver cesárea deve mesmo ser foda. E todo mundo teve bebê por cesárea na minha família. Não, minhas avós não, mas o pessoal novo, todo mundo. Imagina! Cortar 7 camadas de tecido, músculo, sei lá mais o que, sangue, ponto, deve ser difícil. Mas não era o nosso caso, já que o Igor ia nascer naturalmente, por via vaginal. E eu fiquei, ajudei e tal. Só não ajudei mais porque chorei que nem menino pequeno. O Igor saindo e eu chorando de alegria. Minha esposa contou depois que eu apertei tanto os joelhos dela que ela até desconcentrou da dor do expulsivo, rsrsrs. E vi meu filho sair da vagina da minha mulher. Eu realmente nunca mais a vi como antes... Sempre tive muita admiração por ela. Ter visto meu filho nascer, ali, na dura, na real, me fez olhar com ainda mais admiração, com quase reverência. Tava ali uma coisa que eu não sabia fazer e nunca saberia, e ela fazia como se sempre tivesse feito: deixar meu filho sair. Que mulher, eu pensava. Num segundo estava dizendo que doía e no outro, tendo o filho parido no braço, estava rindo às gargalhadas. Dá até uma coisa contando..."

Infelizmente, por conta do meu trabalho/pesquisa atual, vejo/leio muito mais sobre partos trash repletos de violências terríveis e sobre cesarianas desnecessárias, em tom de revanche médica e repleta de tecnologia fria e impessoal, do que eu gostaria. Vejo fotos de mulheres amarradas à maca, ou inconscientes no exato momento do nascimento do filho, ou com o bebê no braço e um choro de quem se viu violentada. Tudo isso no momento que era para ser de extrema beleza, alegria, êxtase.
Vejo e leio relatos infindáveis da mais genuína dor, de mulheres que foram enganadas, humilhadas, xingadas, ludibriadas e que perderam o parto do próprio filho e que hoje carregam cicatrizes físicas e emocionais que não foram frutos de uma escolha.

Então, quando abro a rede social e dou de cara com uma vagina parindo, sinto uma puta alegria. Quando, nos grupos maternos, alguém posta a foto do nascimento ou escreve: "Eu pari!", é como se uma pequena dose do antídoto necessário pra dar conta do tranco de estudar a violência no parto me fosse dada.
Por tudo isso, tenho a exata noção das coisas: sei exatamente qual dessas circunstâncias - parto violento xvagina parindo com moça sorrindo - representa a visão do inferno, e não é a segunda alternativa. Nunca pensei na vagina como uma visão do inferno... Por que eu pensaria isso sobre a minha própria vagina, uai?! Gosto dela. Tenho carinho por ela. Somos amigas, puxa vida. Amigas muito íntimas. E entendo a amizade das outras mulheres com as próprias vaginas. A vagina alheia não é uma inimiga para mim. E seria ótimo se todo mundo vivesse essa love story vaginal. Talvez houvesse muito mais respeito por aí. Além, claro, de evitar coisas como isso que aconteceu, de chegarmos ao ponto de alguém publicar, num jornal de grande circulação, aos quatro ventos, o seu ódio pela vagina alheia. 

Li o texto da Tati Bernardi publicado na Folha de São Paulo com o título de "Gata, eu não quero ver a sua xota" e depois vi uma foto em que ela aparecia abraçada em um pênis de pelúcia (escrever "pênis de pelúcia" me dá uma super vontade de rir, acho que é a sonoridade da expressão). A primeira coisa que pensei, assim de cara, foi: "Caraca... Qual será o problema dela com a vagina, gente?!".
Aí fui ler o texto de novo.
E ela não usa a palavra VAGINA uma única vez!
Usa: xota; xoxota; xuranha; prexeca sofrida; ximbica e xereca.
Zero vagina.
Vagina zero (parece até o nome de um movimento... Imagina: '''Vagina Zero - Movimento de Valorização da Direita no Brasil").

Então eu vim aqui apenas para fazer um pedido: GATAS, EU QUERO VER VOCÊS PARINDO! 
Tá, eu sei que não sou ninguém, não publico em jornal de grande circulação e tal. Mas por favor, gatas, eu quero ver vocês parindo!
Não liguem para a Tati Bernardi. Alguma coisa lá não tá legal. Compaixão, minha gente!

Muita gente que está hoje na luta pela humanização do parto - alheio ou próprio, vagina sua ou vagina
alheia - está nessa justamente por um dia ter visto uma foto de parto, um vídeo de parto, onde - olha que surpresa! - tinha uma vagina parindo. Como as pessoas dos relatos que abrem esse texto. Não é surpreendente que encontremos vaginas em partos ainda hoje?! Muito surpreendente. Principalmente em um país onde os hospitais (aqueles lá mesmo que ela mencionou, os que "poderiam estar num guia de hotéis três estrelas de Miami. Quanto mais brega, mais eu confio: com salão de beleza e "concerto de piano" na recepção") batem os 98% de cesarianas. 
Ver um parto vaginalé, mesmo, um evento em extinção. E eu, como bióloga que sou, tenho uma queda por salvar o que está em extinção. 
Então, repito: gatas, não escondam suas vaginas parindo! Nós queremos ver!
Postem suas fotos, subam seus vídeos, mostrem seus partos!
Marquem o tio Miltinho de Passos de Itu! Deem um print na alegria que a vó Carminha de Serra Negra manifestou na timeline dela por ver que você deu a luz como ela! 
Libertem suas vaginas paridas!

E, moça, você que é uma escritora pop, por favor: deixe em paz a vagina alheia! Ela não te fez nada...

Ah, sim. Antes de finalizar. Ver vaginas parindo na rede social, em um país tão moralista quanto o nosso, de mentalidade tão misógina, onde mulheres são constrangidas por amamentar em público, onde dar à luz naturalmente é ainda, muito infelizmente, um privilégio, é um grande avanço. Mostra que - sim! - estamos no caminho certo. Principalmente quando lembramos que cada foto de vagina parindo que vemos é uma cicatriz a menos. Especialmente aquelas que não foram desejadas.






















Medicalização, consumismo infantil, criação com apego e licença maternidade: conversanso sobre infância

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Como e por que estamos transformando nossas crianças em "doentes"? Por que o foco atual das famílias parecer ser buscar a padronização das crianças? O que nos leva a aceitar com facilidade explicações médicas para coisas naturais de nossas vidas? Qual o contexto por trás da aceitação coletiva da medicalização da infância? Afinal, o que é medicalizar a infância?
Em quais situações, ainda que não percebamos, estamos incentivando o consumismo nas crianças? Quais os efeitos a curto, médio e longo prazo do consumismo infantil? O que o apelo comercial produz nas crianças? O consumismo na infância faz parte de qual contexto maior, de quais valores, da falta ou do excesso de que?
O que é a Criação com Apego e o movimento Attachment Parenting International? São regras ou não são regras? No que se baseia? Que tipo de vínculo procura fortalecer? Quais as verdades e os mitos que a cercam?
Licença maternidade e paternidade no Brasil:  quais os limites das atuais licenças? Os dilemas enfrentados por mães e pais na volta ao trabalho após o nascimento dos filhos. Quais soluções estão sendo encontradas por diferentes empresas para permitir o maior contato das mães e dos pais com os filhos após o retorno ao trabalho? O que dizem diferentes personagens no Brasil sobre as licenças e suas possibilidades? É uma questão corporativa, governamental ou que envolve todos nós?

Esses temas tão atuais e de fundamental importância serão analisados e discutidos no workshop "Conversando sobre Infância", que vai acontecer nos dias 24 e 25 de maio, no Rio de Janeiro - RJ. Um fim de semana dedicado a desconstruir e construir coletivamente conceitos, valores e experiências a respeito da infância e de sua construção atual. Serão 12 horas de atividades organizadas em torno de rodas de bate papo, apresentação de documentários, construção coletiva, problematização e, principalmente, comunhão em torno de uma só ideia: a infância precisa ser edificada sobre bases mais sólidas, amorosas, cooperativas e solidárias do que vem sendo, se quisermos verdadeiramente contribuir para a mudança da realidade. Isso tudo em um espaço construído sobre os mesmos princípios: acolhedor, comprometido com a construção de um novo mundo e que tem como intenção inspirar pessoas a seguirem seus sonhos, auxiliar na transformação interior como forma de mudar o exterior, criar nossa própria realidade e contribuir para a construção de um mundo consciente: a CASA SOU.L, que fica em Santa Teresa, no Rio.

Eu, Daniel Becker, Thiago Queiroz, Bia Siqueira e Guilherme Abrunhosa facilitaremos vivências e redescobertas a respeito do valor da infância e de novas/velhas formas de cuidado.
Um evento que está sendo moldado com amor, cuidado, carinho e pensando em cada uma das pessoas que estará presente.

Convido você a participar deste fim de semana especial. Estamos todos destinando o nosso melhor para que seja um grande, delicado e harmonioso encontro. São poucas vagas, a fim de garantir uma experência rica e intimista.

Para mais informações, basta acessar a página do evento ou enviar e-mail para conversandosobreinfancia@gmail.com.

Esperamos vocês!
Avise os amigos!







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